O Estado de São Paulo (2020-05-24)

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H6 Especial DOMINGO, 24 DEMAIODE 2020 OESTADODES.PAULO


Problemas de pele e cabelo podem estar relacionados ao estresse do isolamento


E RECLAMA QUANDO


A SAÚDE MENTAL


NÃO ESTÁ EM DIA


Maria Fernanda Rodrigues


Beatriz Albuquerque não comia
doce depois das refeições. Gos-
tava de beber alguma coisa al-
coólica, mas isso não era um
hábito. Não jogava. Isolada em
casa há mais de dois meses, ela
está incomodada com o rumo
que as coisas estão tomando.
“Hoje eu como doce numa
quantidade muito maior e já de-
vo ter engordado. E bebo todos
os dias. Duas cervejas na hora
do almoço. Ou vinho. Não é
uma dose excessiva e não fico
alcoolizada, mas bebo todos os
dias. E passei a jogar buraco pe-
lo telefone horas a fio”, diz, aos
68 anos, a professora de fotogra-
fia aposentada.
Fumante dos 13 aos 60 anos,
com algumas idas e vindas no
vício, ela acredita ter alguma
tendência compulsiva, que se
expressa agora nesses novos
hábitos de novos tempos. “Eu e
meu marido somos grupo de ris-
co. Minha filha que vive na Fran-
ça vai ter bebê e eu, que ia passar
três meses lá, não vou poder co-
nhecer minha primeira neta tão
cedo. E não quero morrer antes
de conhecê-la”, diz.
Ela, que sempre foi muito ati-
va, que gostava de ler e tudo o
mais, sente a depressão se apro-
ximando, e comenta que esta
entrevista pode ser um divisor
de águas no isolamento. “Fa-
lando sobre isso agora, vejo
que preciso mudar. Só está di-
fícil sair dessa roda viva. Sinto
que estou na pior fase, no olho
do furacão.”
O que acontece com Beatriz
não é muito diferente do que se
passa, hoje, na casa de milhares
de pessoas mundo afora. O me-
do e a insegurança diante do
avanço do coronavírus, a ansie-
dade por não saber aonde isso
tudo vai nos levar e o estresse
da quarentena se refletem nes-
sa vontade maior de comer e be-
ber. E também na nossa pele, na
queda de cabelo, nas unhas que-
bradiças, na coceira, no agrava-
mento da psoríase e do vitiligo,
e por aí vai.
Uma sugestão de especialis-
tas para o tratamento para qual-
quer um desses distúrbios? Mu-
dar o foco. Cuidar da saúde men-
tal e da alimentação.


Órgão de expressão. Uma pes-
soa que era extremamente mi-
nuciosa em seu trabalho se pe-
ga agora limpando todos os
cantos da casa. Os efeitos po-
dem ser vistos em sua mão, em
uma dermatite de contato, que
a leva a constatar que sempre
teve um transtorno obsessivo
compulsivo (TOC). Outra,
que estava conseguindo con-
trolar a queda de cabelo, relata
agora que o problema voltou.
Voltaram a aparecer lesões em
uma mulher que
estava com o viti-
ligo controlado.
Em outro caso,
uma pessoa con-
ta que tem sensa-
ções diferentes
na pele sem ne-
nhuma causa or-
gânica. E uma mulher está com
uma crise de urticária também
sem causa.
Esses casos são relatados pe-
la médica Márcia Senra, coorde-
nadora do Departamento de Psi-
codermatologia da Sociedade


Brasileira de Dermatologia, que
conta que aumentou a procura
por tratamento de problemas
de pele durante a pandemia. “A
ansiedade está tão alta que a pes-
soa não raciocina: vai descarre-
gar isso na pele”, alerta. “A pele
é um órgão de expressão de mui-
ta coisa, porque ela vem do pró-
prio sistema nervoso. O cére-
bro está ligado à
pele”, explica.
Márcia comen-
ta que o momen-
to é delicado e
que algumas pes-
soas que já ti-
nham patolo-
gias psiquiátri-
cas, mesmo que escondidas, es-
tão sentindo no corpo por não
terem mais a rédea da própria
vida. Mas não é, exatamente,
que o estresse cause essas doen-
ças. “A pessoa já tem uma condi-
ção ou uma genética, e o estres-

se ou o trauma exacerbam is-
so”, explica.
O que fazer, então? Aprender
a cuidar de si, responde a derma-
tologista. “O médico tem de en-
sinar o paciente a cuidar da vida
e da saúde. E isso é obrigatório
agora. As pessoas vão ter de mer-
gulhar dentro de si para ver o
que podem fazer para baixar es-
sa ansiedade.”
Márcia Senra gosta das técni-
cas de atenção plena, conta que
já utilizou com pacientes der-
matológicos e que têm sido tam-
bém ensinadas a crianças.
“Com ela, aprendemos a não
brigar com os sintomas, mas
aceitá-los. Está comprovado
em vários trabalhos científicos
que isso muda áreas do cére-
bro.” Muitas dessas doenças
são crônicas – têm controle,
mas não têm cura – e ficar revol-
tado só vai piorar, alerta.

Apetite e emoção. O sedenta-
rismo e a má alimentação são
dois fatores a serem observa-
dos com mais atenção durante
a quarentena, alerta o médico
Madson Queiroz, professor da
Faculdade de Medicina da USP
e membro da Sociedade Brasi-
leira de Endocrinologia e Meta-
bologia. Para ele, os hábitos ali-
mentares são influenciados pe-
la ansiedade e ganhar peso tem
sido uma rotina neste período
de isolamento.
“Está todo mundo em casa,
mais tenso e ansioso, e uma con-
sequência disso é o aumento da
ingestão calórica que, na maio-
ria das vezes, são calorias de
péssima qualidade, como car-
boidrato e gordura”, diz.
Se existe uma “fome emocio-
nal”? “A fome é uma só, mas o
apetite é diretamente relaciona-
do a questões emocionais. Es-
ses transtornos de ansiedade
pelo qual todos estamos passan-
do geram um mecanismo de
compensação e a forma mais fre-
quente de se procurar uma com-
pensação é na alimentação.”
Madson Queiroz também in-
dica a mudança de foco. Respei-
tar o isolamento social e ter
consciência de tudo o que está
acontecendo, mas não viver es-
sa pandemia 24 horas. É preci-
so, ele diz, desconectar um
pouco, ler, ver filmes, procu-
rar na internet circuitos de ati-
vidades físicas, como alonga-
mento e ioga.
“Tentar fazer, na medida do
possível, algum exercício em ca-
sa é fundamental. Além do bene-
fício físico, isso atenua a ansie-
dade, tira um pouco o foco des-
sa situação estressante que esta-
mos vivendo e acaba se refletin-
do nos hábitos alimentares.”

Fatores de risco. Queiroz ex-
plica que o excesso de peso im-
portante está relacionado a des-
compensações
clínicas, como pio-
ra do diabetes e
do controle da hi-
pertensão, e isso
tudo é muito preo-
cupante porque
são fatores de ris-
co para desfechos
graves do coronavírus. Nessa si-
tuação, alerta, a orientação é
que as pessoas entrem em con-
tato com seu médico, conver-
sem e recebam alguma orienta-
ção de dieta.
O médico também recomen-

da que pessoas com diagnósti-
co de hipertensão tenham algu-
ma forma de monitorar isso, pa-
ra não precisarem se deslocar a
um pronto-socorro sem neces-
sidade. E que diabéticos este-
jam ainda mais atentos à ali-
mentação e não se esqueçam
de medir a glicemia e procurar
um médico se ela estiver des-
controlada.
E para quem entrou nesta
quarentena saudável, sem ne-
nhuma doença identificada?
“Neste caso, cuidar da saúde
mental é o mais importante.
Procure um tempo para
outras atividades que
não sejam só ficar em
grupos de What-
sApp e lendo fake
news, não passe o
dia todo só ou-
vindo notícia
da pandemia.
O cuidado da
saúde mental
é extrema-
mente impor-
tante e passa
também por
encontrar
formas de la-
zer, manter
algum nível
de atividade
física e bons
hábitos alimenta-
res”, finaliza o endocrino-
logista.

Quarentena açucarada.
Não é de hoje que ter uma
alimentação saudável dá
trabalho, e não é de hoje
que ela pode servir de pre-
venção para muitos proble-
mas – e de solução também.
A mudança na rotina imposta
pelo isolamento fez com que as
pessoas mudassem, também, a
alimentação. Vinculado a isso,
diz Angélica Marques de Pina
Freitas, presidente da Associa-
ção Paulista de Nutrição, tem a
ansiedade do momento que es-
tamos vivendo.
“Essa ansiedade gera, por um
mecanismo fisiológico que te-
mos, uma busca por alimentos
que nos confortam. E, muitas
vezes, esses alimentos são aque-
les relacionados à infância ou à
família, fazendo com que deixe-
mos de lado o padrão de alimen-
tação saudável que tentamos se-
guir no dia a dia”, diz.
Doce... o vilão da quarentena.
“Ninguém vai dizer: estou ner-
voso, vou comer uma salada”,
brinca Angélica. E é preciso
identificar a origem dessa von-
tade maior de consumir açúcar
e tentar controlá-la, buscando
substitutos ou um equilíbrio.
No caso de uma vontade muito
específica, como o pudim da
mãe, nada vai substituí-la –
nem mesmo o pudim que essa
pessoa fizer para se lembrar da-
quele que ela co-
mia quando
criança. Mas tu-
do bem comer
uma fatia de
dois dedos, diz a
nutricionista.
Fora isso, é
preciso saber
que café, chá preto e chá mate
ajudam a piorar a ansiedade. Pa-
ra quem está abusando do café,
por exemplo, a nutricionista
orienta que o ideal é tomar de 2
a 3 xícaras (das de café mesmo,
não de chá ou de leite) por dia. E

saber também que alimentos
com muita gordura terão uma
digestão mais difícil e deveriam
ser evitados agora.

Sem solução mágica. Para
quem busca algo para fortale-
cer o sistema imunológico, a res-
posta é a mesma: frutas, legu-
mes e verduras, sempre. Alguns
alimentos ajudam, como os ri-
cos em vitamina C (cítricos), vi-
tamina D (leite e derivados,
além da exposição ao sol) e ôme-
ga 3 (peixes).
“Eles podem ajudar, uma vez
que a pessoa já tenha um pa-
drão de alimentação saudável.
Não adianta comer tudo proces-
sado e achar que se chupar uma
dúzia de laranja vai estar imu-
ne. As pessoas procuram por
uma solução mágica, mas não
existe. Nosso hábito alimentar
é que vai gerar um resultado lá
na frente.”
E aqui voltamos ao começo, à
necessidade e à dificuldade de
ter alimentos frescos em casa
durante a quarentena, e a nutri-

cionista diz que é
possível que a ali-
mentação saudá-
vel seja, sim, práti-
ca. É claro que va-
mos investir tempo
lavando folha por
folha, maçã por ma-
çã, mas depois é só
abrir a geladeira e es-
tá tudo à mão, pron-
to para o consumo.
“Se conseguir-
mos ter uma alimen-
tação saudável, com-
posta por alimentos
in natura, como fru-
tas, legumes e verdu-
ras; por grãos, como arroz e fei-
jão; e complementada com car-
ne fresca, ovos, peixes, isso vai
contribuir para a nossa saúde
física, porque ela não vai ser
um ponto de desequilíbrio que
poderia causar um excesso de
peso ou ocorrência de alguma
deficiência nutricional, como
uma anemia, e também vai con-
tribuir para o nosso bem-estar
mental”, afirma Angélica.

‘O CÉREBRO ESTÁ
DIRETAMENTE

LIGADO À PELE’,
AFIRMA MÉDICA

Vidas em Quarentena*


DICAS DE BEM-ESTAR

‘O APETITE É
RELACIONADO ÀS

EMOÇÕES’, DIZ
ENDOCRINOLOGISTA

O CORPO FALA


l Preste atenção ao pensa-
mento que está escolhendo ter.
“Todo mundo está sentindo algu-
ma coisa, e isso vai repercutir na
pele, no estômago, no coração”,
diz a médica Márcia Senra.

l Tente retomar atividades
criativas que gostava de fazer e
deixou de lado por algum motivo.

l Reserve um tempo para
ficar em um ambiente tranquilo e
colocar em práticas técnicas res-
piratórias e fazer meditação.

l Faça exercícios de forma
moderada, escolhendo algo que
dê prazer. Dance, faça tai-chi-
chuan ou ioga, por exemplo.

l Tire o foco da comida. Te-
nha horários e rotina, mantenha
refeições principais e estabeleça
horários para lanches. Mude o
foco quando perceber que a von-
tade de comer for compulsão,
para compensar o estresse.

l Evite alimentos com muita
gordura, que têm digestão mais
difícil. E é melhor ingerir legu-
mes congelados, se for a única
opção, do que não comer ne-
nhum tipo de legume.

l Fique atento: se a vontade
de ingerir açúcar vier sempre no
fim do dia, pode ser um indício de
que a alimentação está desequili-
brada. “Pode ser que faltem vita-
minas, minerais e carboidrato”,
afirma Angélica Marques de Pina
Freitas, presidente da Associa-
ção Paulista de Nutrição. Tam-
bém pode ser sede.

l Beba muito líquido, de prefe-
rência água. Evite suco natural
em excesso. É saudável, mas
calórico. Não tome refrigerante,
suco de caixinha. E reduza a bebi-
da alcoólica ao mínimo possível.
“Assim como algumas pessoas
vão canalizar a ansiedade para a
comida, outras podem fazer isso
aumentando a ingestão de ál-
cool. Está todo mundo em casa.
O sábado passou a ser igual à
segunda, à terça, quarta... Essa é
uma preocupação relevante. Te-
mos de controlar a ingestão de
álcool”, afirma o endocrinologis-
ta Madson Queiroz.
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