O Estado de São Paulo (2020-05-24)

(Antfer) #1

André Cáceres


Peste, guerra, fome e morte – os
quatro cavaleiros do Apocalipse
podem ter significados variados
a depender da crença de cada
um, mas, para o historiador aus-
tríaco Walter Scheidel, profes-
sor da Universidade de Stan-
ford, essas condições significam
uma coisa: redução das desigual-
dades econômicas.
Em seu mais recente livro, Vio-
lência e a História da Desigualdade



  • Da Idade da Pedra ao Século 21
    (ed. Zahar), Scheidel defende
    que o nivelamento das rendas só
    se deu, em toda a história huma-
    na, por meio de grandes catástro-
    fes, que ele chama de Quatro
    Grandes Niveladores – uma das
    poucas exceções, de acordo com
    o pesquisador, foi a América Lati-
    na nos anos 2000, que reduziu
    disparidades por métodos pacífi-
    cos e democráticos, mas que não
    se provaram duradouros.
    Scheidel utiliza-se de farta do-
    cumentação histórica para de-
    monstrar como as guerras, epi-
    demias, crises e revoluções fo-
    ram eventos niveladores. Após a
    Peste Negra, por exemplo, o con-
    tingente de trabalhadores ficou
    tão reduzido que a mão de obra
    se tornou valiosa ao ponto de re-
    duzir as injustiças sociais duran-
    te vários séculos. Mas esse tipo
    de nivelamento não deve aconte-
    cer, segundo ele, após a atual
    pandemia de covid-19.
    Leia a entrevista que Walter
    Scheidel concedeu ao Estadão:


lA atual pandemia trará efeitos
similares ao das grandes epide-
mias do passado, como a redu-
ção de desigualdades?
Estou muito cético quanto a is-
so por várias razões. O maior
motivo é que a atual pandemia
será muito menos severa em
termos de mortalidade do que
as grandes pestes do passado.
Mesmo no pior cenário, a mor-
talidade será muito menor, em
termos de porcentagem da po-
pulação, e deve afetar ainda me-
nos a força de trabalho, porque
a maioria das vítimas é compos-
ta de pessoas mais velhas. Salá-
rios não devem subir como re-
sultado dessa pandemia, por-
que a mão de obra não se torna-
rá escassa. Então esse efeito
não deve aparecer desta vez. Es-
sa pandemia deve aumentar
em vez de reduzir a desigualda-
de, pelo menos a curto prazo, o
que já estamos testemunhan-
do. Há certos grupos de pes-
soas que estão relativamente
protegidas, seus empregos es-
tão seguros, eles podem conti-
nuar a trabalhar, e outras pes-
soas que estão muito mais ex-


postas em determinados seto-
res ou perdendo seus empre-
gos. Então, o desemprego está
mal distribuído pela população.
Entre crianças, há algumas ca-
pazes de estudar online e ou-
tras sem acesso a esses recur-
sos, e isso deve aumentar as in-
justiças educacionais também.
Na crise de 2008, os ricos per-
deram inicialmente, porque o
valor de seus investimentos de-
caiu, mas eles os recuperaram
em um período razoavelmente
curto de tempo. Já se vê tendên-
cias semelhantes nas bolsas de
valores, que não estão mais in-
do tão mal, então há uma boa
chance de que, de novo, os ri-
cos se recuperem mais rapida-
mente que a maioria da popula-
ção. Ainda que haja algum po-
tencial de nivelamento, isso de-
pende de como políticos, legis-
ladores e eleitores responderão
a essa crise e seus efeitos.

lO mundo contemporâneo é re-
pleto de guerras, revoluções, cri-
ses e epidemias. Por que não ve-
mos esse efeito nivelador hoje?
Há muitas guerras, revoluções
e epidemias hoje, isso é verda-
de em certa medida, mas se
compararmos com grandes rup-
turas do passado, o que esta-
mos vivendo atualmente no
mundo não chega perto da mag-
nitude do que já ocorreu. Ape-
nas guerras muito grandes, co-
mo as mundiais, reduziram as
desigualdades na Europa,
América ou Ásia. O fato de a
América Latina nunca ter passa-
do por nada como as guerras
mundiais ajuda a explicar por
que sua disparidade ainda é
muito alta. Nunca houve ruptu-

ras realmente violentas. O mes-
mo é verdadeiro para revolu-
ções, não temos nenhuma gran-
de revolução desde a maoista e
suas derivadas em meados do
século 20. Estados não entram
mais em colapso; eles eventual-
mente caem em certas partes
do mundo, como a África Cen-
tral e o Oriente Médio, mas em
nenhum outro lugar, nem mes-
mo na Venezuela, pelo fato de
serem muito mais resilientes. E
essa pandemia é muito menos
severa do que a Gripe Espanho-
la há um século ou as grandes
pragas do passado. Eu falo em
meus livros sobre os quatro
grandes niveladores, e eu acho
que temos hoje quatro grandes
estabilizadores. O primeiro é
que boa parte do
mundo é muito
mais rica do que
era, o que evita
colapsos sociais
ou guerras civis,
muito mais co-
muns no passa-
do. O segundo
são as redes de seguridade so-
cial, que, claro, estão desenvol-
vidas desproporcionalmente
em diferentes partes do mun-
do, mas mesmo no Brasil há al-
gum grau de segurança que não
havia antes, evitando que a po-
breza chegue a níveis que fa-
çam as pessoas se radicaliza-
rem. Também há a habilidade
de bancos centrais criarem di-
nheiro para manter a economia
girando, o que não era possível
na década de 1930, por exem-
plo, durante a Grande Depres-
são. E o quarto fator consiste
na ciência moderna e na tecno-
logia, que ajudam a estabilizar a

ordem existente, seja o fato de
podermos trabalhar remota-
mente pela internet, o que não
poderíamos fazer há dez ou vin-
te anos, ou o fato de sermos ca-
pazes de sequenciar o RNA do
vírus em apenas algumas sema-
nas e termos mais de uma cen-
tena de medicamentos ou trata-
mentos em teste pelo mundo.
Sociedades, economias e tecno-
logias evoluíram de modo a
manter a ordem existente.
Quanto maior a estabilidade,
mais a disparidade é favoreci-
da, porque há menos pressão
por mudanças.

lO senhor menciona em seu li-
vro a América Latina dos anos
2000 como um caso bastante
singular de redu-
ção de desigualda-
des sociais sem
grandes choques
ou rupturas, mas
boa parte das con-
quistas sociais
obtidas no início
do século se per-
deram nos últimos anos. O que o
caso latino-americano pode nos
dizer sobre desigualdade social
no século 21?
O caso latino-americano é fasci-
nante, porque, como eu disse,
não houve grandes choques na
história recente, o que explica
que a desigualdade, que é histo-
ricamente alta por conta do co-
lonialismo e outros fatores, te-
nha se mantido elevada duran-
te o século 20, enquanto redu-
ziu em outras partes do mun-
do. E, depois de 2000, vemos
muitos países experimentarem
uma redução pacífica de injusti-
ças, o que foi muito interessan-

te, porque parece contrariar mi-
nha tese, de que rupturas vio-
lentas são necessárias para que
isso ocorra. O que houve na
América Latina nesse período
foi o resultado de uma combina-
ção incomum de circunstâncias
favoráveis. Houve uma recupe-
ração de crises econômicas an-
teriores, uma forte desregula-
mentação nos anos 1990, abrin-
do essas economias para o mun-
do, mais investimento em edu-
cação, transformações políticas
e a explosão das commodities
na China, então as exportações
cresceram. Todos esses fatores
se alinharam na medida certa
para reduzir a disparidade, não
drasticamente, mas de forma
significativa. Não estava claro
naquela época se esse processo
era sustentável e poderia se
manter por muito tempo. E ele
não pôde. Por causa da crise
econômica no início dessa déca-
da, e pela reação política de for-
ças conservadoras para derru-
bar os proponentes de mudan-
ças progressistas no Brasil e em
outros países. E, é claro, houve
locais em que os próprios pro-
gressistas se radicalizaram, co-
mo na Venezuela e no Equador,
e houve reação política contra
isso. Agora a situação é ainda
pior, porque a atual crise deve
amplificar esses problemas.
Não tenho esperanças de ver
uma nova redução de desigual-
dades na América Latina em
um futuro próximo, graças à cri-
se do coronavírus.

lÉ possível haver no futuro me-
canismos pacíficos de redução
de desigualdades?
É possível teoricamente, mas

não parece acontecer muito na
prática, então seria ao menos
muito difícil. Não é que as pes-
soas nunca reduziram a dispari-
dade por meios pacíficos, não
está limitado ao exemplo lati-
no-americano. Tem acontecido
em pequenas proporções por
todo o mundo. Mas nunca ocor-
re em larga escala. Para a redu-
ção maciça da desigualdade em
um período curto de tempo, é
preciso um choque violento.
Com mudanças políticas pacífi-
cas, a transformação será gra-
dual e lenta, e por isso enfrenta
um grande risco de ser desar-
mada por obstáculos como cri-
se econômica, reação política e
outros fatores. Dito isso, há so-
ciedades no mundo que são tão
injustas hoje que não é preciso
muito esforço para reduzir um
pouco de sua disparidade. Se
você vive na Suécia, não há mui-
to o que se pode fazer, porque a
desigualdade já é muito baixa.
Mas no Brasil, na África do Sul
ou nos Estados Unidos, há me-
didas que se pode tomar pacifi-
camente que teriam um efeito
real e sem ser radicais ou dra-
máticas. A melhor chance que
temos é que tais medidas sejam
identificadas e implementadas.
Certamente temos um modelo
no que ocorreu na América Lati-
na nos anos 2000.

lExiste um ponto de equilíbrio
na desigualdade de um país que,
se atingido, a impede de voltar a
crescer a níveis prejudiciais?
Pode ser que o nível de equilí-
brio varie entre países. Se você
olhar para países nórdicos, que
são, ou costumavam ser, muito
homogêneos em termos de sua
população, poderia ter sido
mais fácil há 50 anos estabele-
cer Estados de bem-estar social
redistributivos. Se você vive em
sociedades como o Brasil ou a
África do Sul, que são mais hete-
rogêneos, onde há legados de
racismo e todo tipo de iniquida-
de estrutural, o ponto de equilí-
brio pode simplesmente ser
mais elevado. Talvez não seja
possível baixá-lo a níveis escan-
dinavos por causa da maneira
pela qual a sociedade está esta-
belecida. Não quer dizer que se-
ja impossível reduzir disparida-
des, mas talvez seja necessário
ajustar as expectativas do que é
politicamente ou socialmente
viável em cada contexto. Não
basta apontar para a Dinamar-
ca e perguntar por que não so-
mos como eles. Deve-se levar
em conta todas as variáveis. En-
tão a pergunta é: “Qual é o ní-
vel realista de desigualdade pa-
ra o Brasil, dadas condições
que não mudarão do dia para a
noite ou em nossos tempos de
vida?” Certamente haverá algo
a ser feito, não na mesma esca-
la de outros países.

Entrevista*


A SOCIEDADE


DO ABISMO JÁ É


AMEAÇA REAL


Nivelamento não deve


ocorrer após pandemia,


segundo historiador


Walter Scheidel, Walter Scheidel, historiador austríaco historiador austríaco

COVID AUMENTARÁ
DESIGUALDADES EM
VEZ DE REDUZIR,
COMO PESTE NEGRA

Cético. “Não
acho viável a
redução do
desequilíbrio
na América
Latina”

FILIPE ARAÚJO/ESTADÃO

ROGER CREMERS/ZAHAR

Contrastes.
Luxo e a favela
do Real Parque

Aliás,


VIOLÊNCIA E
A HISTÓRIA
DA DESIGUAL-
DADE
Autor: Walter
Scheidel
Tradução:
Vera Ribeiro
Editora: Zahar
616 pp., R$ 110,
R$ 45 em e-book

%HermesFileInfo:A-10:20200524:
H10 Especial DOMINGO, 24 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

Free download pdf