O Estado de São Paulo (2020-05-24)

(Antfer) #1

Aliás,


Guilherme Evelin


Dia sim, dia não, o presidente
dos Estados Unidos, Donald
Trump, diz que o “vírus chi-
nês” está causando um massa-
cre mundial e brande ameaças
à Organização Mundial de Saú-
de (OMS), que ele vê sob a tute-
la da China. Aproveitando-se
do vácuo aberto pelos Estados
Unidos em meio à maior crise
de gerações, a China de Xi Jin-
ping abandona sua postura tra-
dicionalmente retraída e ocu-
pa espaços na cena internacio-
nal. A pandemia do novo coro-
navírus acelerou uma tendên-
cia que já estava no horizonte
com a ascensão da China: uma
disputa entre chineses e norte-
americanos pela condição de
potência mundial hegemôni-
ca. Os especialistas em Rela-
ções Internacionais falam em
nova Guerra Fria.
Antes da pandemia, em um
livro lançado no ano passado
no Exterior e que acaba de sair
no Brasil, Capitalismo sem Ri-
vais – O Futuro do Sistema que
Domina o Mundo (Editora Toda-
via, 376 páginas, R$ 84,90, em
pré-venda pela internet), o eco-
nomista Branko Milanovic re-
tratou a disputa entre Estados
Unidos e China, não apenas co-
mo uma disputa geopolítica,
mas como um choque de ‘capi-
talismos’. Da colisão dessas
duas placas tectônicas em mo-
vimento, argumenta o econo-
mista, o futuro da economia
global emergirá.


Cisma. Milanovic parte da
constatação de que o capitalis-
mo venceu. Tornou-se o único
modo de produção no mundo,
ao contrário de outros perío-
dos da humanidade, em que di-
ferentes sistemas conviviam.
Mesmo na China oficialmente
”comunista”, mais de 80% da
produção é controlada pelo se-
tor privado, o Estado não
impõe decisões a respeito de
preços e a maior parte dos traba-
lhadores vende sua força de tra-
balho em troca de salários.
Além disso, os valores do capita-
lismo foram de tal forma inter-
nalizados pelas pessoas que até
seus momentos de tempo livre
viraram commodities e passa-
ram a ser comercializados.
Tal como no grande cisma do
cristianismo, que rachou entre
as igrejas católicas de Roma e
de Constantinopla, ou do isla-
mismo, dividido entre sunitas e
xiitas, o capitalismo tem hoje,
porém, duas vertentes. Uma é o
“capitalismo político”, cujo
protótipo é a China, mas que
pode ser encontrado também
no Vietnã, na Rússia, no Azer-
baijão, em Angola e na Argélia.
No “capitalismo político”, não


há democracia. O autoritaris-
mo das elites políticas é legiti-
mado pela geração de cresci-
mento econômico e elevação
dos padrões de vida das popula-
ções. A outra vertente é o “capi-
talismo meritocrático liberal”,
presente no Ocidente, cujo mo-
delo são os Estados Unidos. Na
classificação estabelecida por
Milanovic, ele é sucedâneo do
“capitalismo clássico” e do “ca-
pitalismo social-democrata”,
predominantes nos séculos 19
e 20. No “capitalismo merito-
crático liberal”, há democracia,
e o mérito, em tese, é a chave da
ascensão às elites, que são sub-
metidas ao Estado de Direito.
Como observa Milanovic, o ex-
traordinário sucesso econômi-
co da China nas últimas déca-
das coloca em xeque, porém, o
argumento ocidental de que o
capitalismo necessita de insti-
tuições políticas liberais para
se desenvolver.

Desigualdade. Nascido em
Belgrado, capital da Sérvia, nos
tempos da extinta Iugoslávia
do Marechal Tito, Milanovic,
66 anos, radicou-se nos Esta-
dos Unidos, onde trabalhou co-
mo alto funcionário do Banco
Mundial e atualmente dá aulas
como professor da Universida-
de da Cidade de Nova York
(Cuny). Nos anos 1990, Mila-
novic notabilizou-se por ser o
primeiro economista a medir,
com alguma precisão, a desi-
gualdade global. Em 2016, ele
publicou um livro considerado
seminal, Desigualdade Global:
Uma Nova Abordagem para a
Era da Globalização. A obra aju-
dou, junto com o livro do fran-
cês Thomas Piketty, O Capital
no Século 21 (Editora Intrínse-
ca), a deslocar para o centro
das discussões o tema da desi-
gualdade, antes relegado a se-
gundo plano pelos economis-
tas liberais mais ortodoxos.
No livro de 2016, Milanovic
demonstrava como a globaliza-
ção e a liberalização mundial
dos mercados financeiros gera-
ram, dos anos 1980 em diante,
novas dinâmicas que aumenta-

ram a desigualdade interna em
quase todos os países. Nos Es-
tados Unidos, o coeficiente de
Gini, que mede a desigualdade
de renda numa escala de 0 a 1 e
que denota maior desigualda-
de quanto mais próxima de 1,
subiu de 0,35, em 1979, para
0,45. Na China, o coeficiente
de Gini saltou de 0,30, em 1985,
para cerca de 0,50 – próximo
aos níveis encontrados na
América Latina. A despeito de
a globalização ter tirado da po-
breza uma massa de trabalha-
dores, principalmente na Ásia,
os vencedores dos últimos 40
anos foram os super-ricos,
principalmente os executivos
de grandes corporações e os ho-
mens das finanças. As classes
médias dos Estados Unidos, da
Europa e da América Latina es-
tagnaram ou declinaram, com
a desindustralização de suas
economias.

Lacuna. Milanovic diz que es-
creveu Capitalismo sem Rivais
com a ambição de suprir uma
lacuna da historiografia: expli-
car qual foi o papel histórico
dos regimes comunistas, já que
eles não levaram as sociedades
ao socialismo imaginado por
Marx. Numa tese instigante, Mi-
lanovic sustenta que, em países
como a China e o Vietnã, os par-
tidos comunistas, associados a
fortes movimentos nacionalis-
tas, levaram a cabo, no poder,
uma série de mudanças que li-
quidaram resquícios de antigas
estruturas semifeudais e permi-
tiram a transição para o capita-
lismo. Desempenharam assim
um papel semelhante às classes
burguesas no Ocidente duran-
te o século 19.
Capitalismo sem Rivais pode
ser lido também como uma se-
quência do livro anterior de Mi-
lanovic sobre o crescimento da

desigualdade. Na nova obra, ele
explora outros desdobramen-
tos da globalização e as falhas
estruturais de cada modelo de
capitalismo.
As fragilidades do “capitalis-
mo político” são a necessidade
de provar constantemente as
vantagens e a maior eficácia de
seu modelo para justificar o au-
toritarismo; a dificuldade de fa-
zer correções de rota em políti-
cas equivocadas; a aplicação ar-
bitrária das leis, quase sempre
em benefício das elites; e a cor-
rupção disseminada, pela falta
de Estado de Direito. No “capi-
talismo liberal meritocrático”,
segundo Milanovic, os proble-
mas estão ligados à criação de
uma espécie de uma classe supe-
rior cada vez mais isolada do
restante da sociedade.

Mulheres. Por conta da heran-
ça da fase anterior social-demo-
crata, as elites, no “capitalismo
liberal democrático”, se torna-
ram mais diversificadas. Passa-
ram a ser compostas por mu-
lheres e por profissionais alta-
mente educados das mais dife-
rentes áreas
que traba-
lham e cuja
renda alta é re-
sultado desse
trabalho.
Mas, por trás
do véu do
mérito, diz
Milanovic, as-
sociadas à di-
minuição da
mobilidade
social, estabe-
leceram-se di-
nâmicas, co-
mo a maior ta-
xa de casamentos entre pes-
soas do mesmo status, que cria-
ram uma autorreprodução des-
sa elite em modo contínuo.
Ao mesmo tempo, os ricos
passaram a investir pesada-
mente em sua prole e em esta-
belecer controle político. Ao in-
vestir na educação de seus fi-
lhos em escolas cada vez mais
seletivas, eles permitem que
suas futuras gerações mante-
nham a alta renda e o status
associado ao conhecimento.
Com o investimento em in-
fluência na política, por meio,
por exemplo, de financiamen-
to de campanhas eleitorais,
“compram” políticas econômi-
cas que favorecem menos regu-
lações, menor tributação da
renda e a transmissão de capi-
tal entre gerações. O risco é a
criação, diz o economista, de
uma elite dirigente apartada da
sociedade e que trabalha exclu-
sivamente para atender seus
únicos interesses.

Plutocracia. “A alta desigual-
dade tende a minar a democra-
cia, porque os ricos tendem a
querer preservar seu poder. O
risco da apropriação do poder

político por uma plutocracia é
migrarmos de um sistema em
que uma pessoa representa um
voto, para um sistema em que
uma pessoa representa um dó-
lar ou um real”, disse Milano-
vic, em conversa com o Esta-
dão, no começo de março. Um
possível cenário futuro que po-
de resultar do choque de capita-
lismos, segundo Milanovic, é a
convergência do modelo libe-
ral meritocrático para algo
mais próximo do capitalismo
político, com uma elite econô-
mica insularizada exercendo o
poder livre de restrições. A esse
cenário temerário, Milanovic
contrapõe a defesa de um “capi-
talismo do povo”, uma espécie
de versão atualizada do capita-
lismo social-democrata, me-
nos focado em redistribuição
de renda, e mais na democrati-
zação da educação e do acesso a
bens financeiros.

Pandemia. Como a pandemia
afetará esse conflito entre capi-
talismos? A China está vencen-
do a nova Guerra Fria, como
perguntou, numa capa de 18 de
abril, a revista
The Econo-
mist? “É difícil
prever. Esta-
mos ainda no
escuro”, disse
Branko Mila-
novic, ao falar
das incerte-
zas que cer-
cam os rumos
da pandemia.
Mas ele ava-
lia, que se con-
firmada a ten-
dência de que
os países
asiáticos vão se recuperar mais
rapidamente, enquanto o Oci-
dente se debate com um segun-
do dramático choque em 15
anos após a crise de 2008, o des-
locamento do centro gravita-
cional da economia global para
a Ásia se acentuará. A disputa
entre os dois modelos, com a
crescente assertividade da Chi-
na em exportar sua influência,
também deverá se agudizar.
Ele acredita ainda que crises
tendem a centralizar o poder e
será mais difícil tirá-lo das
mãos de quem, como no caso
dos dirigentes chineses, procla-
ma, com alguma credibilidade,
que conseguiu evitar o pior.
Não são bons presságios para
quem preza as liberdades e re-
jeita os autoritarismos.

Economia*


CHOQUE ENTRE EUA E


CHINA MOLDA FUTURO


GUERRA


Economia*


Em ‘Capitalismo sem Rivais’, economista Branko Milanovic


diz que a disputa entre os dois países não é só geopolítica


REUTERS

Sérvio. Autor levou a desigualdade para o cerne do debate

TODAVIA

Economia. Livro de Branko Milankovic propõe eliminar lacuna na historiografia ao analisar o verdadeiro legado dos regimes comunistas em um cenário no qual o capitalismo foi vencedor


‘A DESIGUALDADE TENDE
A MINAR A DEMOCRACIA,
POIS OS RICOS QUEREM
PRESERVAR SEU PODER’

MESMO NA CHINA
‘COMUNISTA’, MAIS DE
80% DA PRODUÇÃO ESTÁ
NO SETOR PRIVADO

CAPITALISMO
SEM RIVAIS
Autor: Branko
Milankovic
Trad.: Bernardo
Ajzemberg
Editora:
Todavia
376 páginas,
R$ 84,90, R$
40 em e-book

%HermesFileInfo:C-11:20200524:
O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 24 DE MAIO DE 2020 Especial H11

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