O Estado de São Paulo (2020-05-24)

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A8 Política DOMINGO, 24 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


VERA


MAGALHÃES


“D


eixai toda a esperança,
vós que entrais!” A ins-
crição aparece quando o
poeta italiano Dante Alighieri cruza
o Portal do Inferno em sua epopeia
A Divina Comédia. Vale para quem se
arrisca a assistir à representação da
obra nos tempos de pandemia e
pós-verdade. Sim, estou falando da
reunião ministerial do governo Jair
Bolsonaro de 22 de abril, para a qual
o único adjetivo possível é dantesca.
O fato de que alguns críticos
anestesiados por tanto horror pro-
duzido por este governo tenham
conseguido minimizar o que se pas-

sou ali nos leva de novo à obra do poe-
ta italiano: são pessoas que estão ali
no Vestíbulo, pouco antes do Primei-
ro Círculo do Inferno.
É o lugar dos covardes, fracos e inde-
cisos, no qual se encontram hoje um
bom número de homens públicos, al-
guns pretensos formadores de opinião
e uma parcela letárgica da sociedade.
Mas há os que já desceram a alguns
dos Nove Círculos do Inferno percor-
ridos por Dante em sua viagem. Nos
seis primeiros estão os que cometem
pecados involuntários, nos quais há
culpa, mas não dolo.
A coisa começa a ficar mais grave

quando se passa aos três últimos círcu-
los, com seus vales, fossas e esferas. É
nesses lugares sombrios que estão os
participantes da reunião macabra capi-
taneada por Bolsonaro, o capitão da ver-
são pandêmica do inferno dantesco.
O Sétimo Círculo é o lugar dos vio-
lentos. Bolsonaro prega abertamente
a criação de uma milícia paramilitar ar-
mada até os dentes para resistir a go-
vernadores, prefeitos e ordens judi-
ciais. É a defesa da criação de um Esta-
do paralelo, diante de ministros abso-

lutamente silentes.
Os dez fossos do penúltimo círcu-
lo do inferno são a morada dos sedu-
tores, aduladores, simoníacos (trafi-
cantes de coisas divinas), adivinhos,
corruptos, hipócritas, ladrões, maus
conselheiros, semeadores de discór-

dia e falsificadores.
Todas essas figuras aparecem na reu-
nião, sem filtro. Ricardo Salles fala em
aproveitar a “tranquilidade” da pande-
mia para barbarizar na desregulamen-
tação de áreas como meio ambiente e
agricultura. Chega a quase salivar de
excitação, aos olhos de um incrédulo e
novato Nelson Teich, que conseguiu
ficar no vestíbulo do inferno bolsona-
riano, antes de se afogar em seus rios
de cloroquina.
Damares Alves está lá, nos fossos do
Oitavo Círculo, se esmerando para mos-
trar serviço ao chefe e falando em usar
sua pasta para prender (!) prefeitos e
governadores. É estarrecedora a distor-
ção de realidade que ela demonstra,
num semitranse, ao elencar notícias fal-
sas para justificar que iria “pegar pesa-
do” dali por diante. Bolsonaro adorou.
Abraham Weintraub, então, pode fa-
zer um rodízio entre os fossos, pois
preenche todos os requisitos para cha-
furdar naquele inferno pelo resto dos
seus dias. Para júbilo de um Bolsonaro

que exige de seus ministros a capitu-
lação absoluta aos pecados logo na
abertura da comédia dantesca, fala
em prender “vagabundos”, entre os
quais os ministros do STF.
O Nono Círculo do Inferno é o
dos traidores. É o lugar de Bolsona-
ro, e será também o dos que insisti-
rem em seguir com ele diante da evi-
dência de crimes (interferir na Polí-
cia Federal para proteger familiares
de investigações, como fica compro-
vado pelo vídeo e pelas declarações
e ações posteriores do presidente),
autoritarismo e absoluta falta de hu-
manidade, empatia e preocupação
com uma pandemia que ceifa vidas
de brasileiros aos milhares enquan-
to o presidente da República e seus
asseclas atentam contra o bom sen-
so, a saúde pública, a ética e a Consti-
tuição à luz do dia e em horário de
expediente. O Inferno descrito por
Dante talvez não contenha círculos
suficientes para descrever o que se
passou em Brasília em 22 de abril.

E-MAIL: [email protected]
TWITTER: @VERAMAGALHAES
POLITICA.ESTADAO.COM.BR/COLUNAS/VERA-MAGALHAES/

O Inferno de Dante


Rayssa Motta


Ao tornar público o vídeo da
reunião ministerial de 22
abril comandada pelo presi-
dente Jair Bolsonaro, o minis-
tro Celso de Mello, decano do
Supremo Tribunal Federal
(STF), citou o caso Waterga-
te como precedente para le-
vantar o sigilo total da grava-
ção. “Aquela alta Corte (dos
Estados Unidos) acentuou
que o chefe de Estado (tal co-
mo sucede no Brasil) não está
acima da autoridade das leis
da República”, escreveu o de-
cano em sua decisão.


Celso de Mello citou o vere-
dicto unânime da Suprema Cor-
te americana que determinou
que Richard Nixon entregasse
gravações em fita e outros mate-
riais de natureza probatória –
incluindo conversas internas
da Casa Branca – no contexto
de uma investigação criminal
que terminou com a renúncia
do republicano, em 1974. Nixon
era suspeito de ter mandado es-
pionar a sede do Partido Demo-
crata em Washington.
A decisão, nas palavras do de-
cano, “deixou assentado que o
presidente não pode proteger-
se contra a produção de prova

em um processo criminal com
fundamento na doutrina do pri-
vilégio executivo”. Celso de
Mello defendeu ainda “não ha-
ver, nos modelos políticos que
consagram a democracia, espa-
ço possível reservado ao misté-
rio”. Para o ministro, “a supres-
são do regime visível de gover-
no – que tem na transparência a
condição de legitimidade de
seus próprios atos e resoluções


  • sempre coincide com os tem-
    pos sombrios em que declinam
    as liberdades e transgridem-se
    os direitos fundamentais dos ci-
    dadãos”. Ele ainda destacou “a
    ausência de decoro, materializa-


da em expressões insultuosas,
ofensivas ao patrimônio moral
de terceiros, e em pronuncia-
mentos grosseiros impregna-
dos de linguagem inadequada e
imprópria” de alguns partici-
pantes da reunião.
O advogado-geral da União,

José Levi Melo, havia pedido o
levantamento do sigilo apenas
das declarações do presidente
durante a reunião, de modo que
fossem preservadas referências
a outros países e manifestações
dos demais participantes. O pri-
meiro pedido foi atendido por

Celso de Mello, mas os minis-
tros não foram poupados.
O decano entendeu que não
havia “qualquer expectativa de
privacidade” por parte dos par-
ticipantes da reunião, “destina-
da a examinar questões de inte-
resse geral”.

Celso de Mello lembra


Watergate em decisão


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DIDA SAMPAIO/ ESTADÃO

Reunião ministerial é a
representação da obra do poeta
nos tempos de pós-verdade

Decano citou o caso que culminou com renúncia de Richard


Nixon nos EUA como precedente para levantar sigilo de reunião


Lanche
em

Brasília


Sob vaias e
frases de apoio,
o presidente
Jair Bolsonaro
comeu cachor-
ro-quente on-
tem na Asa
Norte. Antes,
visitou o filho
Jair Renan e
teve reunião
com o ministro
Luiz Eduardo
Ramos.
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