O Estado de São Paulo (2020-05-24)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-9:20200524:
O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 24 DE MAIO DE 2020 Política A


VERIFICA


J. R.


GUZZO


A única arma contra a peste
é a honestidade.
Albert Camus, em A Peste

E


is aí o que mais está faltando
ao Brasil destes tempos de
epidemia, morte e miséria.
Há gestores que não acabam mais –
um em cada esquina, do Oiapoque
ao Chuí. Há a multiplicação geomé-
trica de palpites que se transfor-
mam em decisão de governo. Há au-
toridades que querem acabar com o
vírus produzindo feriados, filas de
ônibus ou congestionamentos de
trânsito. Rodízios de carro são fei-

tos, desfeitos e refeitos; a única certe-
za que deixam é de que as autoridades
que decidem sobre eles não têm ideia
do que estão fazendo. A cada meia ho-
ra aparece alguma nova facção obceca-
da em defender alguma coisa, ou em
guerrear contra ela – da cloroquina à
proibição da abertura dos armari-
nhos. Mas a coragem de assumir posi-
ções honestas está desaparecida há
três meses no Brasil.
Nunca foi muito presente. Hoje em
dia, sumiu de vez. Entra de tudo neste
cozido. O público teve direto, inclusi-
ve, a uma declaração realmente ex-
traordinária do ex-presidente Lula,

que se juntou à multidão de celebrida-
des com algum manifesto essencial a
lançar sobre a covid-19. “Ainda bem
que a natureza, contra a vontade da
humanidade, criou esse monstro cha-
mado coronavírus”, disse Lula. O lado
bom da tragédia, segundo ele, seria o
efeito didático do vírus. “Esse mons-
tro está permitindo que os cegos come-
cem a enxergar que apenas o Estado é
capaz de dar solução a determinadas
crises”, disse Lula. Que solução? Se a
covid está provando alguma coisa nes-

se país, é justamente a incapacidade
terminal do Estado em lidar com o pro-
blema. Basta olhar para a lista de mor-
tos que cresce desde março – ou o que
acontece dentro dos hospitais públi-
cos onde a epidemia é tratada.
E a roubalheira, então? A primeira

consequência da majestade do “Esta-
do” perante a covid foi a suspensão das
licitações públicas para despesas rela-
cionadas com o combate ao vírus; a par-
tir daí, rouba-se com inédita ousadia
em todos os Estados e 5.500 municí-
pios, sem que o Ministério Público in-
comode realmente ninguém.
Mas é nisso mesmo que está a verda-
deira alma do atual debate: a realida-
de que vá para o diabo. A única coisa
que interessa é aproveitar o vírus pa-
ra vender o seu peixe ideológico, po-
lítico ou financeiro.
A população brasileira precisa, mais
do que nunca, de uma trégua; só então
se abriria mais espaço para a competên-
cia, a eficácia e a seriedade científica
no trato da calamidade que está arrui-
nando o País. Mas nenhuma trégua se-
rá possível sem honestidade – mesmo
com todas as declarações de bons pro-
pósitos como as que foram feitas outro
dia pelo presidente da República, os 27
governadores e os presidentes do Sena-
do e da Câmara, em sua reunião vir-

tual. O problema real é que os políti-
cos – e milhões de cidadãos – acham
que hoje só existe um tipo de fato: o
que confirma as suas próprias opi-
niões, crenças ou convicções sobre
a epidemia. Mas não é assim. Há fa-
tos independentes entre si que con-
vivem ao mesmo tempo; a existên-
cia de um não anula a existência de
outro. O medo de morrer é um fato
que está acima de dúvida. O medo
de ficar sem dinheiro para sobrevi-
ver é outro, do mesmo tamanho.
Na maioria dos países do mundo
há um inimigo comum – o vírus. No
Brasil, o inimigo é quem defende
um ponto de vista diferente do seu.
O resultado é essa aberração que es-
tá aí, na qual o confinamento deixou
de ser um meio para combater a epi-
demia e se transformou numa meta
política que divide o poder público
em dois campos opostos. É o ideal
para fazer o que estão fazendo: ma-
tar cada vez mais gente e, ao mesmo
tempo, destruir o País.

Maria de Lourdes Arruda Villela


1916 - 2020


O Itaú Unibanco comunica,


com pesar, o falecimento de


Maria de Lourdes Arruda Villela,


viúva de Eudoro Libânio Villela,


filha de Alfredo Egydio de Souza Aranha,


fundador do Banco Itaú, e mãe


de Milu Villela e Alfredo Villela (falecido).


Nossos sinceros sentimentos


à família Villela.


Paula Reverbel


Em apenas cinco dias de ativi-
dade – de segunda à sexta-fei-
ra passada –, o perfil do Twit-
ter Sleeping Giants Brasil, de
ação anti-fake news, ganhou
mais de 215 mil seguidores e
obteve a cooperação de pelo
menos 35 empresas de reno-
me. O sucesso foi registrado
em post da versão original da
iniciativa, vinda dos Estados
Unidos, quando foram atingi-
dos 68 mil seguidores: “Nos
quase levou um ano para che-
gar a esse resultado”. O site
incomodou o vereador Car-
los Bolsonaro (Republica-
nos-RJ) e o secretário de Co-
municação do governo fede-
ral, Fábio Wajngarten.
O modo de atuação é simples:
eles verificam que anúncios es-
tão sendo alocados – por meio
de uma ferramenta publicitária
do Google – em sites de fake
news. É então feito um alerta às
empresas anunciadas, que mui-
tas vezes só especificam qual
perfil demográfico de leitor que-
rem atingir e não sabem que sua
propaganda foi parar em um
portal de notícias falsas. A com-
panhia, então, informada do
que está acontecendo, cadastra
o endereço indesejado em uma
lista negra, para que sua propa-
ganda não seja exposta lá.
A prática é chamada de “des-
monetização”, já que o site colo-
cado nessa lista fica sem a verba
do anunciante. Se muitas em-
presas desmonetizam o mesmo
portal, ele passa a ser financeira-
mente insustentável. A estraté-
gia foi primeiro adotada pelo pu-
blicitário americano Matt Ri-
vitz – do Sleeping Giants origi-
nal – há mais de três anos, e foi
responsável pela perdição finan-
ceira do Breitbart News, de Ste-
ve Bannon. Projetado para rece-
ber ¤ 8 milhões (quase R$ 50
milhões), em 2016, ele perdeu
90% dos anunciantes, segundo
o que o próprio ex-estrategista
de Donald Trump relata no do-
cumentário The Brink, de 2018.
Com a identidade revelada
por veículos conservadores, Ri-
vitz recebeu ameaças de morte.
A versão brasileira do perfil
nasceu tanto no Twitter como
no Facebook – em duas equipes
anônimas independentes – lo-
go depois da publicação de uma
reportagem do El País que con-
ta a história de Rivitz. “Não hou-
ve qualquer coordenação”, es-
creveu ao Estadão o responsá-
vel pela conta no Facebook. Ele
afirmou que o perfil no Twitter
estava disponível e foi tomado
enquanto ele criava a versão no


Facebook. Ou seja, a ação de am-
bos foi simultânea. “Já estava lá
essa outra iniciativa, que é óti-
ma, por sinal. Já entrou com
muita informação. Então, devi-
damente creditada, ela foi repli-
cada no Facebook.”
Já o perfil no Twitter é gerido
por duas pessoas e recebe ajuda
por mensagens e em uma rede
de confiança no WhatsApp. O
principal administrador disse
ser oriundo de universidade pú-
blica, onde passou a se interes-
sar pelo tema de fake news.
Questionado sobre como os al-
vos são selecionados, respon-
deu: “Utilizamos o incrível ma-
terial que as agências de fact
cheking desenvolvem. Busca-
mos sempre ter como foco o
principal veículo que atente
contra a democracia”.

Retirada. O primeiro alvo de
desmonetização foi o Jornal da
Cidade Online, um dos veículos
mais populares nas eleições de
2018 e citado como dissemina-
dor de informações falsas pelo
Projeto Comprova – coalizão
de 24 veículos de imprensa, in-
cluindo o Estadão, criada para
desmentir boatos.
“Excluímos o site em questão
que está sendo acusado publica-
mente de propagar inverda-
des”, informou o Mercado Li-
vre ao Estadão. A empresa foi
uma das alertadas pelo Slee-
ping Giants Brasil. “O Mercado
Livre esclarece que mantém fil-
tros para bloqueio automático
de sites que propagam conteú-
do impróprio. No que se refere
à veiculação de notícias falsas,
às quais repudiamos veemente-
mente, os bloqueios podem
também ocorrer de maneira rea-
tiva a partir de denúncias, anali-
sadas caso a caso”, afirma a no-
ta da empresa.
O Sleeping Giants Brasil tam-
bém retuitou a resposta oficial


  • confirmando a desmonetiza-
    ção do Jornal da Cidade Online

  • das empresas McDonald’s, De-
    cathlon, Serasa, Philips, Fast
    Shop, Claro, Insper, FGV, Dell,
    Submarino, entre outras. O Tri-
    bunal de Contas de Mato Gros-
    so do Sul fez o mesmo.
    O Jornal da Cidade Online
    classificou a ação do Sleeping


Giants Brasil de “calúnia” e dis-
se que “imprecisões” em notí-
cias foram, posteriormente, cor-
rigidas. “O crime de calúnia tem
que ser a atribuição falsa de algo
que seja crime a uma pessoa físi-
ca especificada, com a intenção
de ofender a reputação dessa
pessoa”, disse ao Estadão o cri-
minalista Rogério Taffarello.
“Narrar um fato com a mera in-
tenção de informar não consti-
tui crime, e isso é algo totalmen-
te pacífico nos tribunais.”

Críticas. Os grandes defenso-
res do portal de fake news fo-
ram Carlos Bolsonaro e Wajn-
garten. Ambos têm vínculos
com o “gabinete do ódio”, nú-
cleo de assessores responsáveis
pelas redes sociais da Presidên-
cia que defendem a pauta de cos-
tumes e incentivam a adoção de
um estilo beligerante.
Carlos e Wajngarten reclama-
ram quando o Banco do Brasil
retirou seus anúncios do Jornal
da Cidade Online, a ponto de
conseguir reverter a decisão. O
filho de Bolsonaro escreveu em
suas redes sociais que a institui-
ção “pisoteia em mídia alterna-
tiva que traz verdades omiti-
das”. Em seguida, a área de
marketing do BB, comandada
por Antonio Hamilton Rossell
Mourão, filho do vice-presiden-
te Hamilton Mourão, alegou
que o bloqueio foi exagerado e
retomou os anúncios.
“As mídias alternativas são
veículos independentes que con-
tribuem para a informação”, afir-
mou ao Estadão o responsável
pelo Sleeping Giants Brasil no
Twitter. “Os sites como o que
ele defende são nada mais nada
menos que divulgadores de notí-
cias falsas e discurso de ódio di-
recionado a instituições impor-
tantes para uma democracia.”
A International Fact
Checking Network (IFCN), as-
sociação mundial de verificado-
res de fatos, afirmou que “esses
grupos de interesse têm um for-
te papel na conscientização da
sociedade em relação a esses
grupos que desinformam o pú-
blico e constroem um discurso
controverso”. “A desinforma-
ção está cada vez mais entrelaça-
da com discurso de ódio, xeno-
fobia e discriminação contra co-
munidades desfavorecidas”,
disse o diretor da IFCN, Bay-
bars Örsek. / COLABOROU DANIEL
BRAMATTI

E-MAIL: [email protected]
J.R. GUZZO É JORNALISTA E ESCREVE
AOS DOMINGOS

(11) 99263.

FOTOS REPRODUÇÃO/TWITTER

No Brasil, o inimigo é
quem defende um ponto
de vista diferente do seu

Quem é o inimigo


Ação e reação. Após alerta, Banco do Brasil retirou publicidade de site; Carlos Bolsonaro criticou e BB voltou a anunciar

Recebeu algum boato
pelo WhatsApp?
Envie para o Estadão Verifica

Perfil contra


fake news


incomoda


Planalto


Sleeping Giants Brasil obteve a cooperação


de pelo menos 35 empresas em cinco dias

Free download pdf