O Estado de São Paulo (2020-05-25)

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A10 Metrópole SEGUNDA-FEIRA, 25 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Roberta Paraense
ESPECIAL PARA O ESTADO


“Foi tudo muito rápido e deses-
perador. Ele apresentou os sin-
tomas e, após dois dias, morreu.
Passei quase 22 horas ao lado do
meu pai no hospital até ver o
seu fim”, lembra o contador
George Pinto Gonçalves, de 38
anos. O aposentado Pedro Da-
masceno Gonçalves, de 67
anos, é uma das vítimas fatais
do coronavírus no Pará.
Ele travou uma luta não ape-
nas contra o vírus, mas com o
sistema de saúde do Estado.
Aos familiares, além da dor da
perda, restou a impotência e o
sentimento de revolta. Depois
de cinco dias já morto, um servi-
dor do hospital que o aposenta-
do foi atendido, em Belém, li-
gou para saber como ele estava.
Foi na cidade de São Caetano
de Odivelas, no nordeste pa-
raense, que Pedro Damasceno
começou a sentir os sintomas.
Foi levado à Unidade de Saúde


do município, quando o médico
que o atendeu disse à família
que teria de ser atendido na ca-
pital, devido aos poucos recur-
sos da cidade de 17 mil habitan-
tes. Seu filho George, que mora
em Belém, foi então buscá-lo.
Após percorrer 114 quilôme-
tros até Belém, o aposentado
deu entrada no Hospital Abelar-

do Santos, no distrito de Icoara-
ci, no fim da noite do dia 1.° de
maio. Ele piorou. “A saturação
chegou a 25% e não foi entuba-
do. Usava oxigênio que, por três
vezes, o médico cubano que o
atendeu, repassou para outros
pacientes. Revoltante, não?”,
comentou George ao Estadão.
À medida que as horas avança-

vam, o desespero tomava con-
ta. “Vi cinco pessoas morrendo
no corredor. Estava um caos.
Os médicos e enfermeiros esta-
vam perdidos, sem saber o que
fazer. As pessoas não paravam
de chegar”, recorda. Mas, foi à
noite que o pior aconteceu.
“Meu pai já não estava respiran-
do, e comecei a gritar, pedir por
socorro. Fui colocado para fora,
até que depois me chamaram
com a notícia da sua morte.”
Quando George foi ao cartó-
rio para dar entrada na certidão
de óbito, a guia estava sem a assi-
natura e o registro profissional
do médico. “Voltei ao hospital e
um médico assinou e colocou
insuficiência respiratória. Re-
tornei ao cartório e, novamen-
te, tive de ir ao hospital liberar o
corpo, que já não estava lá. De-
pois da procura, informaram
que estava no IML”, detalha.
Do necrotério, o corpo se-
guiu direto ao cemitério, sem di-
reito a uma despedida. Foram
dez minutos ao lado do caixão.

O aposentado morreu no dia
2 de maio, e no dia 7, um funcio-
nário do hospital Abelardo San-
tos, em Belém, ligou para a famí-
lia perguntando por Pedro.
Silencioso, o coronavírus, as-
sim como assolou parte da famí-
lia de George, deixa um rastro
de destruição no Pará: interrom-
peu sonhos, devastou o sistema
público e privado de saúde, co-
lapsou o serviço funerário, ar-
ruinou a economia e enclausu-
rou mais de 3,5 milhões de pes-
soas. A partir de hoje, o Estado
se prepara para juntar os cacos,
unir forças e retomar a vida.
Quando os números da doen-
ça eram tímidos no Pará, e pou-
cos casos estavam confirma-
dos, o governo reagiu com medi-
das de distanciamento social,

anunciou a construção de hospi-
tais de campanha, criou leitos,
colocou atendimento itineran-
te e comprou equipamentos.
Aos poucos, agora, as filas nas
portas das unidades de saúde es-
tão desaparecendo, no sistema
público e privado. As atividades
não essenciais estão sendo reto-
madas. Ontem, terminou o pra-
zo do lockdown, que teve início
dia 7 em dez cidades e depois
em outras seis, totalizando 3,
milhões de pessoas dos 8,5 mi-
lhões do Estado. Mais de 3,8 mil
multas foram aplicadas. Os 16
municípios em lockdown tive-
ram média de 49,28% de isola-
mento. O Pará, hoje, tem 390
leitos de Unidades de Terapia
Intensiva (UTIs) adulto, com
taxa de ocupação em 94.8%.
O sistema funerário colap-
sou. Desde 5 de abril, quando
morreu a primeira pessoa com
na capital, dezenas de famílias
aguardam por mais de um dia a
liberação dos corpos dos seus
entes. À frente do local, tendas
foram montadas para amenizar
a espera. Os cemitérios não
comportaram a demanda de en-
terros. Faltaram caixões.

Felipe Resk / RECIFE


No meio da madrugada, a mas-
sagista Flávia Ferreira, 47 anos,
acordou aos sustos com a grita-
ria na casa da frente. “Meu pai
vai morrer! Meu pai vai mor-
rer!”, desesperou-se uma vizi-
nha diante da imagem do pai,
um senhor de 70 anos, que con-
vulsionava sobre a cama, após
três dias de dor de cabeça, dor
no corpo e falta de ar. Por se
tratar de caso suspeito de co-
vid-19, Flávia conteve a vontade
de ir até lá. Da janela, confor-
mou-se em acalmar a amiga.
Como a rua fica perto de um
hospital, normalmente a ambu-
lância aparece em minutos.
Mas daquela vez o socorro de-
morou mais de uma hora para
chegar à Campina do Barreto,
bairro na periferia do Recife, pa-
ra angústia dos moradores que
não sabiam como ajudar.
Segundo Flávia, houve um
momento que um taxista até as-
sumiu o risco e se prontificou
em levá-lo à unidade médica,
mas já não dava mais tempo.
Eram 3h16 quando, sem assis-
tência, ele parou de respirar.
“Os paramédicos chegaram,
todos com aquelas roupas de
proteção, pareciam homens da
Lua. Constataram o óbito, en-
tregaram um papel e foram em-


bora”, relata a massagista. O
corpo só foi removido ao ama-
nhecer, pela funerária. “Foi
uma cena triste. Depois disso,
passei três dias com todas as ja-
nelas e portas fechadas com me-
do de o vírus entrar em casa.”
O episódio aconteceu na sex-
ta-feira, dia 15, e é um dos refle-
xos da iminência de colapso do
sistema de saúde em Pernambu-
co, onde os diagnósticos de co-
vid-19, só de abril para cá, salta-
ram de 95 para 27.759 casos –
46% destes, de paciente graves.
Com hospitais lotados e até
fila por leito de UTI, o Estado
também ultrapassou a marca
de 2 mil mortes, sem indicativo
de desaceleração da curva.
De acordo com a gestão Pau-
lo Câmara (PSB), 97% dos 600
leitos de UTI para Síndrome
Respiratória Aguda Grave (S-
RAG) estão ocupados. Familia-
res de pessoas infectadas, no en-
tanto, relatam esperar até mais
de uma semana para conseguir
internação. Na outra ponta,
médicos e enfermeiros descre-
vem uma rotina de unidades so-
brecarregadas, com equipes
exaustas pelo trabalho e por ter
de comunicar cada vez mais,
por telefone, todas as mortes.
Unidades de Pronto Atendi-
mento (UPAs), destinadas a ca-
sos menos complexos, já preci-

sam lidar com pessoas em está-
gio avançado de insuficiência
respiratória. Sem tantos ventila-
dores mecânicos à disposição,
socorristas se revezam para, na
mão, manter o doente respiran-
do. “O profissional fica bom-
beando manualmente com
uma bolsa, para evitar que o pa-
ciente morra. Passa 30 minutos
bombeando, depois troca para
outro profissional e assim por
diante”, conta um médico.
Embora seja dinâmica, não é
raro que a fila por vaga em UTI
supere 200 pessoas em Pernam-
buco e o próprio governo admi-

te que precisa selecionar qual
paciente deve ser transferido
primeiro. “A priorização é reali-
zada a partir da discussão técni-
ca entre o médico solicitante e o
médico regulador, levando em
consideração, primeiramente,
a gravidade do caso, a estrutura
disponível e a qualidade do su-
porte clínico nas unidades de
saúde onde cada paciente se en-
contra”, informa em nota.
Referência no tratamento da
covid-19 no Recife, o Hospital
Oswaldo Cruz opera em 100%
da capacidade da UTI pelo me-
nos desde o início de abril.
“Quando abre uma vaga, a de-
mora é só para fazer a limpeza
do leito e o transporte do pa-
ciente. Entre a gente, o jargão é
que não se espera nem esfriar o
colchão”, diz o infectologista
João Paulo França, contratado
para atuar na pandemia.
Mesmo em hospitais de refe-
rência, há relatos de momentos

em que falta medicação. No co-
municado, o governo de Per-
nambuco diz que todas emer-
gências públicas têm capacida-
de de atender os casos mais gra-
ves. Também informa ter refor-
çado unidades de atenção pri-
mária, como as UPAs, com equi-
pamentos e profissionais.
“Neste sentido, os pacientes
que estão aguardando a transfe-
rência para centros de referên-
cia do coronavírus são assisti-
dos em unidades de saúde que
geralmente contam com estru-
tura de salas de estabilização,
inclusive com pontos de oxigê-
nio e respiradores”, afirma. “A
Secretaria de Saúde de Pernam-
buco reconhece a gravidade do
momento em todo o País e res-
salta que vem tomando medi-
das para aumentar a estrutura
da rede estadual.”
Responsável pela maioria
dos casos notificados, a região
metropolitana do Recife é o epi-

centro da doença em Pernam-
buco. Para tentar conter o avan-
ço, o governo decretou blo-
queio na capital e em quatro ci-
dades, o chamado lockdown.
Com alto índice de transmis-
são comunitária no Recife, o co-
ronavírus pegou até o alto esca-
lão da administração pública.
Só na última semana, foram
diagnosticados com covid-19 o
governador Paulo Câmara, a vi-
ce Luciana Santos, o chefe de
gabinete Milton Coelho e o se-
cretário da Saúde André Longo.
Na capital, a prefeitura abriu
sete hospitais de campanha e
anunciou a construção de 313
leitos de UTI desde o início da
crise, mas só 114 (ou 36,4% do
total), de fato, funcionam. Nos
demais, faltam médicos. “Ja-
mais imaginei passar por isso. A
doença se espalhou muito rápi-
do e mudou a vida de todo mun-
do. A cada dia, a letalidade se
aproxima mais da gente”, des-
creve o advogado Lucas Men-
des, 28 anos, que perdeu um
amigo, de 36 anos e sem comor-
bidades, para o coronavírus. Se-
gundo conta, quatro familiares
também contraíram a doença.
Hoje, a preocupação maior
de Mendes é com a avó – idosa
de 86 anos, com problemas de
artrose e portadora de Alzhei-
mer – que vive no mesmo espa-
ço dos outros parentes que fo-
ram infectados. Com sinais de
interiorização da doença, a ges-
tão Câmara anunciou constru-
ção de hospitais de campanha
em municípios de referência co-
mo Caruaru, no agreste, e Petro-
lina, no sertão. Ao menos 153
das 185 cidades do Estado já no-
tificaram casos da doença.

Wilson Tosta / RIO


Leandro Lima, 33 anos, mora-
dor de Nova Iguaçu, na Baixada
Fluminense, vive, em meio à
pandemia de covid-19, um tri-
plo luto. Em onze dias, entre
abril e maio, perdeu o pai e dois
irmãos. Como ele, outros tan-
tos lamentam a perda de entes
queridos no Rio. Nas últimas se-
manas, com o crescimento nos
números de mortos e infecta-
dos, as unidades públicas de saú-
de aproximaram-se perigosa-
mente do esgotamento.
Perplexo, Leandro – que, iro-
nicamente, é agente de saúde –
lembra que, a um quilômetro de
sua casa, deveria funcionar um
dos sete hospitais de campanha
prometidos pelo Estado. “Acre-
dito que, se os hospitais estives-
sem prontos, dentro do prazo,
talvez (houvesse uma chance pa-
ra que os três superassem a doen-
ça). O hospital de Nova Iguaçu
ainda está em construção.”
Cinco unidades de campa-
nha, prometidas pelo governa-
dor Wilson Witzel (PSC), tam-
bém estão atrasadas – e algu-
mas talvez nem sejam abertas.
O Maracanã foi inaugurado e
funciona com problemas.
Segundo números da Secreta-
ria de Estado de Saúde, na quin-


ta, no SUS, esperavam transfe-
rência para UTIs 340 pessoas, e
para enfermarias outras 238. Os
leitos estavam ocupados, a não
ser no Hospital Zilda Arns, em
Volta Redonda. Havia ainda lei-
tos nos hospitais de campanha
Lagoa-Barra e Parque dos Atle-
tas, erguidos e operados pela Re-
de D’Or. No Zilda Arns, a ocupa-

ção era de 89% na enfermaria e
86% na UTI. No Estado, os mes-
mos indicadores estavam em
79% e 86%, respectivamente.
Na capital fluminense, epi-
centro da doença, a situação era
igual. Não havia, na rede munici-
pal, uma única vaga para pacien-
tes da covid-19. Aguardavam
transferência para UTIs (85%

ocupadas) 254 pacientes, e 182
para enfermarias (74% com
doentes). No Estado e na capi-
tal, nos leitos ocupados, há rota-
tividade de vagas por causa de
altas e óbitos. Os números apon-
tam perspectivas de piora. Os
casos de contaminados e mor-
tes se aceleram, dobram a cada
doze dias. Esse aumento se deu

em um cenário de queda gradati-
va da taxa de isolamento social.
Segundo o Monitor Esta-
dão/InLoco para isolamento
social, após atingir o auge de
62,2% no início da quarentena,
em 22 de março, o indicador re-
cuou e chegou a 42,2% na quin-
ta-feira. Desde que a circulação
nas ruas foi restrita, o patamar
mais baixo foi em 8 de maio:
40,8%. O ideal, dizem os espe-
cialistas, é que seja de 70%.
Em meio às dificuldades para
combater a doença, a Polícia Fe-
deral e o Ministério Público de-
sencadearam a Operação Favo-
rito em 14 de maio. A ação levou
à cadeia Mario Peixoto, empre-
sário de negócios com o Estado,
e o ex-presidente da Assem-
bleia Legislativa Paulo Melo. As
apurações envolvem suposto in-
teresse ilícito em ações nos hos-
pitais de campanha. O escânda-
lo causou a queda de Edmar San-

tos da Secretaria de Saúde.
Pelo Twitter, o governador
prometeu que erros “serão con-
sertados”, e irregularidades “se-
rão devidamente apuradas”.
“Quem se aproveitou desse ter-
rível momento para se benefi-
ciar deve ser julgado e punido.”
Santos informou ter atuado
“de forma transparente”. O Es-
tadão não localizou Peixoto.

Morte. O aposentado José Go-
mes de Lima, de 80 anos, mor-
reu em 24 de abril no Hospital
da Posse, onde horas antes fora
internado. Nos dias anteriores,
tinha procurado ajuda médica
duas vezes, mas, mesmo hiper-
tenso, foi mandado para casa.
Seus filhos, Leonardo, 44 anos,
e Liliane, 51, que se tratavam ha-
via dias do que parecia ser gripe
forte, sucumbiram à enfermida-
de em 4 de maio, em Mesquita e
Belford Roxo, cidades vizinhas.
Em nota, a prefeitura de No-
va Iguaçu confirmou que José
Gomes foi atendido na Clínica
da Família de Jardim da Viga.
“Foi orientado a manter isola-
mento e procurar uma unidade
de urgência e emergência em ca-
so de piora.” Na UPA de Comen-
dador Soares, tinha os mesmos
sintomas de antes. Foi atendi-
do conforme o protocolo do Mi-
nistério da Saúde, realizando
exame de raio x e mensuração
de sua oximetria, e não houve
indicação de internação.

Além da doença, Rio tem prisões e atraso em hospitais


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


WILTON JUNIOR / ESTADÃO

No Pará, mortes e confusão no atendimento


lTristeza

lPreocupação

Luto triplo. O agente de saúde Leandro Lima perdeu o pai e dois irmãos, todos de covid-

lSituação

Brasil tem 653 mortes e 15 mil novos casos em 24 horas. Pág. 12 }


“Acredito que, se os
hospitais estivessem
prontos, talvez (houvesse
uma chance para que os
três superassem a doença).”
Leandro Lima
AGENTE DE SAÚDE

“A doença se espalhou
rápido e mudou a nossa
vida. A cada dia a letalidade
se aproxima da gente.”
Lucas Mendes
ADVOGADO

“Vi cinco pessoas morrendo
no corredor. Estava um
caos. Os médicos e
enfermeiros estavam
perdidos.”
George Pinto Gonçalves
CONTADOR

MARX VASCONCELOS / ESTADÃO

Descaso. George Gonçalves mostra certidão de óbito do pai

MARLON COSTA/FUTURA PRESS – 21/05/

Em Pernambuco,


a corrida incessante


para liberar leitos


Lockdown. Era para Recife e mais outras quatro cidades não ter ninguém nas ruas
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