O Estado de São Paulo (2020-05-25)

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O ESTADO DE S. PAULO SEGUNDA-FEIRA, 25 DE MAIO DE 2020 Metrópole A


Roberta Jansen/ RIO


Apenas um em cada três pa-
cientes graves de covid-
que são entubados nas UTIs
brasileiras se recupera e con-
segue voltar para casa. A mor-
talidade desses doentes é de
66%, um número muito alto
quando comparado aos inter-
nacionais. Segundo especia-
listas, o porcentual reflete as
precariedades do sistema de
saúde do País e, eventualmen-
te, o uso indiscriminado de
medicamentos sem benefí-
cios comprovados cientifica-
mente, como a cloroquina.
A conclusão é de um levanta-
mento do Projeto UTIs Brasilei-
ras, da Associação de Medicina
Intensiva Brasileira (Amib) e
do Epimed – uma ferramenta
de análise de dados e desempe-
nho hospitalar. A coleta de in-
formações foi feita entre os dias
1.º de março e 15 de maio em 450
hospitais em todo o Brasil, en-
volvendo 13.600 leitos de tera-
pia intensiva – o que equivale a
cerca de um terço das vagas pa-
ra adultos nessas unidades.
Os pacientes mais graves são
aqueles que estão internados


em uma unidade de terapia in-
tensiva e demandam apoio de
ventilação mecânica para conti-
nuar respirando. Por isso, a mor-
talidade desses doentes é forço-
samente alta em qualquer lugar
do mundo. No Reino Unido,
por exemplo, é de 42%, e, na Ho-
landa, chega a 44%. Um outro
estudo, restrito à cidade de No-
va York, revelou um porcentual
ainda mais alto, de 88%.
“A mortalidade geral na UTI
é de 21%, entretanto, entre a po-
pulação de pacientes mais gra-
ves, chega a 66%”, compara o
coordenador do Projeto UTIs
Brasileiras, o médico intensivis-
ta Ederlon Rezende. “Ou seja,
de cada três pacientes que vão
para a ventilação mecânica, ape-
nas um sobrevive. Essa doença
não é uma gripezinha.”
O também médico intensivis-
ta Jorge Salluh, pesquisador do
IDOR e fundador da Epimed So-
lutions, concorda com o colega
e especula sobre as razões da
mortalidade tão alta. “Este por-
centual é muito alto para qual-
quer doença, qualquer estatísti-
ca, é um número assustador”,
diz. “Eu não tenho esses dados,
é uma inferência, mas o que pa-

rece é que estamos esquecendo
de medidas de prevenção adota-
das nas UTIs. O uso de trata-
mentos experimentais, como a
cloroquina e outras substân-
cias, todas igualmente com pou-
cas evidências, podem ser um
fator. Intervenções farmacoló-
gicas não comprovadas aumen-
tam o risco de morte por efeitos
colaterais”, comenta.
Os dados das UTIs são levan-
tados a partir de questionários
respondidos diariamente sobre
os pacientes (como sexo e ida-
de) e os procedimentos adota-
dos. Os medicamentos minis-
trados não constam do levanta-
mento. “Pessoalmente, acho
que o uso da hidroxicloroquina

tem prejudicado nossos pacien-
tes, principalmente aqueles
que evoluem com a forma grave
da doença e vão para as UTIs”,
afirmou Rezende. “Mas estes
dados não nos permitem afir-
mar isto”, completa.
A infectologista da Unicamp
Raquel Stucchi tem opinião se-
melhante. “Pelos estudos com
pacientes graves já publicados,
sabemos que a cloroquina au-
menta o risco de efeitos adver-
sos e morte. Mas não dá para
inferir isso para o Brasil enquan-
to não soubermos quem usou e
quem não usou a droga.”
Curiosamente, essa mortali-
dade é similar nas unidades pri-
vadas (65%) e públicas (69%).
Uma das razões pode vir do pró-
prio perfil do universo pesquisa-
do. Foram 322 hospitais priva-
dos e 128 públicos. Os especia-
listas, no entanto, levantam ou-
tras hipóteses. “Em geral, o pa-
ciente dos hospitais privados
são menos graves que os dos pú-
blicos; como a rede privada tem
mais leitos disponíveis, ela é
mais flexível no critério de ad-
missão em UTIs”, explica Re-
zende. “Mas quando olhamos a
mortalidade de um subgrupo

muito específico, essa compara-
ção é mais correta e vemos que
a mortalidade é parecida.”
Os especialistas lembram
que os hospitais que participam
do levantamento tendem a ser
os mais bem organizados, o que
pode levar a um retrato mais oti-
mista da realidade. “Temos de
olhar para esses dados com a
ideia de que sejam melhores do
que o do nosso mundo cão, em
hospitais que não estão organi-
zados e já apresentam o sistema
colapsado”, diz o especialista.
Um outro dado que chamou a
atenção dos pesquisadores foi a
faixa etária dos pacientes de co-
vid-19 internados em UTIs.
Quarenta e um por cento têm
menos de 65 anos. O porcentual
é ainda mais alto (51%) entre os
internados por síndrome respi-
ratória de caráter infeccioso –
condição que pode indicar ca-
sos não diagnosticados de coro-
navírus. “Definitivamente, esta
não é uma doença de velhi-
nhos”, afirmou Rezende.
A grande maioria dos interna-
dos em UTIs com covid-
(71%) ou síndrome respiratória
(75%) apresenta alguma comor-
bidade, como problemas cardía-

cos, diabetes e obesidade. “Ain-
da assim, é bom ressaltar que
cerca de 30% não tinham nada”,
lembrou o coordenador do le-
vantamento. “Ou seja, a doença
pode afetar qualquer pessoa.”
Outro dado confirmado pelo
levantamento é que o tempo de
permanência nas UTIs por co-
vid-19 é bem acima da média de
outras condições, chegando a
dez dias. “As internações são
mais longas do que a média na
terapia intensiva, que é de seis a
oito dias”, explicou Salluh.
“Além de serem muitos pacien-
tes em situações muito graves,
eles ficam muito tempo na UTI
e o giro de leito fica bastante
restrito.”
A taxa de ocupação das UTIs
revelada por esse levantamen-
to já é alta: 88% na rede pública
e 74% na rede privada. No entan-
to, os especialistas acham que
estes números já estão subesti-
mados. “O nosso levantamento
começou no início da epidemia;
tem aí um momento bom”, afir-
mou Rezende. “Hoje, os porcen-
tuais já estão acima disso, com
o sistema já colapsado. Prova-
velmente os próximos 30 dias
serão mais difíceis.”

Luciana Garbin


Eles são hoje o único grupo de
brasileiros no único continente
livre da covid-19. São dezesseis
militares da Marinha do Brasil –
15 homens e uma mulher – que
desde janeiro ocupam a nova Es-
tação Antártica Comandante
Ferraz. Escolhidos para a mis-
são de passar 13 meses na An-
tártida muito antes de o novo
coronavírus surgir na China,
eles se dividem entre o alívio de
estar longe da doença e a preo-
cupação de ter de acompanhar
a distância o que ocorre com pa-
rentes e amigos no Brasil.
“É uma mistura de sentimen-
tos”, resume o capitão de fraga-
ta Luciano de Assis Luiz, chefe
da estação. “Fico alegre por
mim e por minha equipe por-
que somos privilegiados por
não ter contato com a doença,
mas triste porque nossos fami-
liares estão no Brasil vivendo is-


so e não temos como dar o apor-
te necessário.”
Luciano falou com o Estadão
por videochamada na terça-fei-
ra da semana passada. Estava ao
lado da médica e capitã-tenente
Letízia Aurilio Matos. Ela conta
que os pais são idosos e saíram
do Rio por causa da pandemia.
Uma prima – médica como ela –
testou positivo para a covid-
e está se tratando em casa.
“Não é fácil não”, resume. “Fi-
car longe gera ansiedade. Mas a
gente pede para a família falar a
verdade. Está todo mundo bem
realmente? Marco horário, faço
reunião pelo computador e di-
go ‘quero ver tal e tal pessoa’.
Porque às vezes eles querem
nos proteger, dizer que está tu-
do bem, mas só ficamos alivia-
dos quando vemos todo mun-
do. A gente se preparou para o
isolamento, eles não.”
Os 16 militares brasileiros na
Antártida compõem o chama-
do Grupo Base Ferraz. Eles de-
sembarcaram na Ilha Rei Geor-
ge, onde fica a estação brasilei-
ra, em 4 de novembro de 2019
com a missão de permanecer ali
até a primeira quinzena de de-
zembro deste ano. Ocuparam, a
princípio, o Módulo Antártico

Emergencial (MAE) até a inau-
guração oficial da estação, em
15 de janeiro.
O maior desafio é atravessar
o inverno, quando a sensação
térmica cai a menos de 20 graus
negativos, a escuridão cobre 20
das 24 horas do dia e os mares
em volta da estação congelam.
De meados de março, quando
os dois navios da Marinha que
viajam para a região vão embo-
ra, até novembro, quando as em-

barcações retornam levando
militares e pesquisadores, eles
permanecem isolados.
Neste ano, por causa da co-
vid-19, estão tendo de viver um
isolamento dentro do isolamen-
to. Em épocas normais, são co-
muns, por exemplo, as visitas à
Estação Polonesa Henryk Arc-
towski, a mais próxima da base
brasileira, distante cerca de no-
ve quilômetros. Mas agora, por
causa da pandemia, o contato
com os vizinhos é só por vídeo
ou WhatsApp. “Ninguém aqui
ou lá apresentou sintomas do
vírus. Mesmo assim, estamos
mantendo o isolamento”, expli-
ca Luciano. “É lógico que, caso
tenha necessidade de salvar
uma vida ou de mantimentos,
por exemplo, algo que afete a
estadia na Antártida, teremos
contato com eles, mas por pre-
caução estamos deixando essa

possibilidade apenas para al-
gum caso de emergência.”
Outra missão extra causada
pela pandemia deverá ser a de-
sinfecção dos produtos atira-
dos pelos Hércules C-130 da
Força Aérea Brasileira (FAB)
durante o inverno. Como não é
possível pousar na estação bra-
sileira, o cargueiro voa periodi-
camente sobre ela nos meses
mais frios do ano e despeja pa-
lets com produtos perecíveis e
outro itens de necessidade. Pa-
ra evitar que o vírus chegue até
a estação por meio desses carre-
gamentos, foi criado um proto-
colo de limpeza de todo o mate-
rial desde a origem, no Rio, bem
como dos compartimentos do
avião. Já em solo antártico, o
grupo base reforçará a desinfec-
ção para que o vírus não atinja o
último continente ainda livre
de contágio. Ainda não há data

prevista para o primeiro voo.
Outro cuidado deverá ser
com a tripulação dos navios
quando as viagens marítimas fo-
rem retomadas, no fim de 2020.
Segundo o chefe da Comandan-
te Ferraz, todos terão de fazer
exames para ver se têm o novo
coronavírus, assim como os in-
tegrantes do grupo base que
substituirá o atual. “Nós estare-
mos há 13 meses isolados e nos-
sa imunidade, querendo ou
não, estará mais baixa para qual-
quer outro vírus. Então é impor-
tante que esses exames sejam
feitos antes de eles virem para
cá”, afirma Luciano.
Dependendo da evolução da
pandemia no Brasil, até a próxi-
ma Operação Antártica Brasilei-
ra (Operantar) pode ser afeta-
da. “Caso seja encontrada uma
vacina, uma cura, a Operantar
poderá seguir sua programação
normal. Mas, se fosse pegar a
situação atual e levar para o fi-
nal do ano, eu diria que a nossa
operação será basicamente lo-
gística, de aporte de mantimen-
tos e combustível para estação,
mas reduzindo bastante as pes-
quisas”, diz o oficial. “Porque
muitas pesquisas são realizadas
nos navios e quanto mais pes-
soas no navio pior.”
Nem o frio que afasta tantos
microrganismos da Antártida
promete ter efeito sobre a doen-
ça. Letizia conta que pesquisas
já identificaram outros vírus, co-
mo o H1N1, em fezes de aves na
região. E ainda não é possível
saber o estrago que a covid-
poderia fazer por lá.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


lLEITOS

Mortalidade de doentes com covid-19 que são entubados no Brasil é de 66%, um número alto quando comparado aos internacionais


lROTINA

TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

Só um de 3 pacientes graves sobrevive


Em um mapeamento concluído
em março, a Amib informou que
o Brasil dispunha de 45.848 lei-
tos de UTI, sendo 22.844 do Sis-
tema Único de Saúde (SUS) e
23.004 do sistema de saúde pri-
vado. Durante o período de pan-
demia, estima-se que o número
de leitos aumentou em 20%.

Dentro da UTI. Paciente é tratado no Hospital Instituto de Infectologia Emílio Ribas, cuja Unidade de Terapia Intensiva opera em sua capacidade máxima para a covid-19 em SP


MARINHA DO BRASIL

Dezesseis militares da


Marinha do Brasil estão


na Estação Comandante


Ferraz, no único


continente sem casos


Na Antártida,


isolamento dentro


do isolamento


A regra é acordar às 8h e tomar
café às 8h30. No refeitório, todos
se encontram. A partir daí, o tra-
balho vai durar até 16h, com pau-
sa para o almoço às 12h. Depois,
cada um está livre para fazer o
que quiser. O jantar é 18h.

Contraste. Alegria por estar longe da doença, mas preocupação com familiares no Brasil
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