O Estado de São Paulo (2020-05-25)

(Antfer) #1

Caderno 2


Ubiratan Brasil


A luta contra o novo coronaví-
rus já apresenta sinais esperan-
çosos: a primeira rodada de tes-
tes em humanos de uma possí-
vel vacina contra a covid-19
mostrou resultados prelimina-
res animadores. Trata-se do pre-
núncio de mais uma vitória da
ciência, em especial da medici-
na – historicamente, em mo-
mentos em que a espécie huma-
na é ameaçada por uma pande-
mia, avanços científicos são de-
cisivos para a manutenção da so-
brevivência da população.
Foi o que aconteceu em 1918,
quando surgiu um vírus influen-
za – provavelmente nos Esta-
dos Unidos – que se espalhou
pelo mundo e, antes de desapa-
recer em 1920, mataria mais pes-
soas do que qualquer outro sur-
to de doença na história da hu-
manidade. Batizado de gripe es-
panhola, o surto testou os limi-
tes da ciência no combate a um
inimigo invisível, capaz de se
propagar em uma velocidade
vertiginosa entre os humanos.
“A estimativa mais baixa das
fatalidades dessa pandemia em
todo o mundo é de 21 milhões
de pessoas, em um mundo com
menos de um terço da popula-
ção atual. Mas epidemiologis-
tas de hoje estimam que a gripe
provavelmente causou ao me-
nos 50 milhões de mortes em
todo o mundo e, possivelmen-
te, até cem milhões”, atesta o
historiador americano John M.
Barry, autor de A Grande Gripe,
obra lançada agora pela Intrín-
seca e que se tornou referência
sobre a gripe espanhola.
Barry é professor da Escola de
Saúde Pública e Medicina Tropi-
cal da Universidade de Tulane.
Após a publicação de seu livro
em 2004, ele atuou em várias en-
tidades governamentais de res-
posta a pandemias e aconselhou
as administrações George W.
Bush e Barack Obama. O avanço
desmesurado do coronavírus
nos últimos meses tornou-o
inesperadamente um ponto de
referência para, a partir de fatos
históricos, oferecer explicações
sobre o que se passa hoje.
Segundo ele, a pandemia da
gripe que eclodiu em 1918 foi o
primeiro embate de vulto entre
a natureza e a ciência moderna.
“Foi o primeiro grande choque
entre uma força natural e uma
sociedade com indivíduos que
se recusavam a se submeter a
essa força ou a simplesmente
implorar por salvação através
de uma intervenção divina – in-
divíduos determinados a con-
frontar essa força diretamente,
com uma tecnologia em desen-
volvimento e suas mentes”, es-
creve ele.
E, se o avanço hoje do núme-
ro de óbitos provocados pela co-
vid-19 impressiona, a cifra pro-
vocada pela gripe espanhola foi
ainda mais assustadora. Segun-
do Barry, embora a pandemia te-
nha se prolongado por dois
anos, talvez dois terços das mor-
tes tenham ocorrido em um pe-
ríodo de 24 semanas, e mais da
metade dessas mortes se deu
em menos tempo, de meados
de setembro a início de dezem-
bro de 1918. “A gripe matou
mais pessoas em um ano do que
a peste bubônica da Idade Mé-
dia em um século; matou mais
pessoas em 24 semanas do que a
aids em 24 anos”, escreve.
Além do desconhecimento
da ciência diante de um inimigo
avassalador, o historiador vê
um decisivo e preocupante pon-
to em comum entre a pandemia
atual e a do período 1918/20:
“Os países no combate à epide-
mia tentaram minimizar a
ameaça, preocupados de que a


verdade afetaria o moral da po-
pulação e os esforços de guer-
ra”, diz ele ao Estadão, em en-
trevista por e-mail. “A lição,
sempre, é contar a verdade. Em
1918, aqueles governos que não
disseram a verdade prejudica-
ram seus cidadãos de duas ma-
neiras. Em primeiro lugar, as
pessoas poderiam se proteger
e, pelo contrário, se expuseram
ao vírus e morreram. Em segun-

do lugar, as declarações engano-
sas e mentiras flagrantes foram
contraproducentes.”
Barry afirma que o vírus em
1918 foi muito mais letal do que
a covid-19. “As pessoas mor-
riam em 24 horas, às vezes com
sintomas terríveis, incluindo
sangramento do nariz, da boca,
olhos e ouvidos. Muito rapida-
mente a população se deu conta
de que as autoridades estavam

mentindo. Como resultado, os
cidadãos sabiam que não po-
diam confiar em ninguém, que
eram deixados por sua própria
conta e risco, cada família ten-
do de cuidar de si mesma.”
Segundo o historiador, a ma-
neira como o vírus se transmite
é idêntico e a patologia é incri-
velmente similar, não só na ma-
neira como ele mata – com fre-
quência por meio de uma “tem-

pestade de citocinas” –, mas
também pelo fato de os dois ví-
rus infectarem muitos órgãos
fora do sistema respiratório.
“As principais diferenças são
que, em 1918, a pandemia foi
muito mais virulenta e mais le-
tal e a covid-19 é muito mais con-
tagiosa e temporal. A gripe in-
fluenza se propaga pelo corpo e
pela comunidade muito mais
rápido do que a covid-19.”
A situação, felizmente, é dife-
rente hoje, graças, principal-
mente, aos avanços tecnológi-
cos. Além da rápida conscienti-
zação difundida por alguns paí-
ses, novos hábitos surgiram re-
centemente. Assim, a perma-
nência do vírus vai depender do
quão rápido surgir uma vacina e
o quão eficaz ela será.
“Foi registrado um grande sal-
to da ciência após a pandemia
de 1918 e estamos observando
isso nesse momento. Normal-
mente competitivas, as pessoas
vêm compartilhando informa-
ção, os jovens se veem motiva-
dos a entender a ciência – ao me-
nos esse legado bom será deixa-
do pela pandemia”, comenta
John Barry.
Em seu livro, ele parte da his-
tória de médicos desbravado-
res (como Paul Lewis, que mor-
reu no Brasil, em 1929, quando
pesquisava a febre amarela) pa-
ra detalhar o salto evolutivo
conquistado pela medicina, es-
pecialmente nos Estados Uni-
dos, onde o conhecimento dei-
xou de ser apenas empírico pa-
ra se engrandecer a partir de ex-
periências, cuja sucessão de er-
ros e acertos trouxe o necessá-
rio progresso. Isso se tornou evi-
dente durante a pandemia da
gripe espanhola.
“A história do vírus influenza
de 1918 não é simplesmente o
caos, a morte e a desolação da
sociedade em uma guerra contra
a natureza, sobreposta a uma
guerra contra outra sociedade
humana”, escreve. “É também
uma história de ciência, de desco-
berta, de como se pensa e de que
modo mudar a maneira como se
pensa, de como, em meio ao caos
quase absoluto, alguns homens
buscaram a frieza da contempla-
ção, a calma absoluta que prece-
de não a filosofia e, sim, a ação
severa e determinada.”

CIÊNCIA


NA


Livro sobre gripe espanhola mostra como o


avanço da medicina foi decisivo em pandemias


Caderno 2


‘A Favorita’, o retorno de um sucesso PÁG. H5


VITÓRIA DA


Gripe espanhola. Mulheres vestindo máscaras e carregando macas formam grupo de plantão da Cruz Vermelha, em 1918

QUARENTENA


A GRANDE
GRIPE
Autor: John
M. Barry
Tradução:
Alexandre Ra-
poso e outros
Ed.: Intrínseca
(608 págs.,
R$ 39,90 e-book)

Vacina. Estudos
avançam contra o
novo coronavírus

FREDERICO ROZARIO/TV GLOBO

UNIVERSAL HISTORY ARCHIVE

ERIC GAILLARD/REUTERS

%HermesFileInfo:H-1:20200525:H1 SEGUNDA-FEIRA, 25 DE MAIO DE 2020 (^) O ESTADO DE S. PAULO

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