O Estado de São Paulo (2020-05-26)

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H6 Especial TERÇA-FEIRA, 26 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


viagem


MEDIDAS INCLUEM O
INCENTIVO DE 50 EUROS
PARA REPAROS EM
OFICINAS CREDENCIADAS

T


aí, merecia mais que um pé de
página aquela novidade ame-
ricana de que o Estadão nos
deu notícia no domingo passado: o
Globe, uma start up cujo público-al-
vo, conta o jornal, ecoando o New
York Times, “são todas aquelas pes-
soas que estão cansadas das pessoas
com as quais vivem”. Gente que não
acaba mais, portanto.
Vamos dar de barato que você, às
voltas com a faxina semanal aí na sua
quarentena, não teve tempo de ler, e
resumir aqui a coisa, nascida em ju-
nho dos miolos de dois jovens em-
preendedores até então desconheci-
dos, o Emmanuel Banfo e o Eric Xu.
A repórter Katherine Rosman não
esclarece se os moços, além de só-
cios, são just friends e se vivem sob
um mesmo teto – circunstância que,
vá saber, poderia tê-los incluído no
inumerável rol das pessoas cansadas
das pessoas com quem coabitam.
Cansaço esse que, num inesperado
happy end, teria feito ninho para
uma ideia tão original quanto rentá-
vel: um esquema de aluguel, a 50 dóla-
res por hora, de um quarto onde uma
das pessoas cansadas possa desfru-
tar, por breve mas revigorante tem-
po, do sossego que a sozinhez, essa
forma benfazeja de solidão, tem con-
dições de nos propiciar.

A reportagem não informa se tem no-
me esse parêntese no convívio, viabili-
zado graças a um esquema semelhante
ao Airbnb. Quando se trata de casais,
iria bem o rótulo “isolamento conju-
gal” – em certo sentido, um regime de
separação de bens: meu bem pra cá,
meu bem pra lá –, cada bem no seu can-
to. Descontado o ingrediente lubricida-
de, que aqui não precisa existir, seria
algo parecido com um motel a serviço
não de casais, mas de indivíduos. Na
portaria, ninguém haveria de estranhar
a chegada de usuários desacompanha-
dos. Nos motéis, acontece, e não são
casos de autossuficiência sexual. Nu-
ma das minhas encarnações na redação
da Veja, tive um colega que abandonava
fechamentos por demais extenuantes e
ia, por um par de horas, refazer as for-
ças num motel – lugar aonde por defini-
ção se vai para gastá-las.
Mas voltemos ao Banfo e ao Xu que,
até recentemente, não sabiam como fa-
zer crescer um negócio que, sem dar
mostras de naufragar, enfrentava uma
calmaria como aquela que fez empaca-
rem as caravelas de Pedro Álvares Ca-
bral. “Aí veio o coronavírus”, conta a
repórter, e o negócio deslanchou. Com
milhões de pessoas acasaladas que a
pandemia condenou ao confinamento
doméstico, pode-se imaginar o quanto
vem aumentando a demanda por um

cantinho onde diluir o estresse produzi-
do pela convivência forçada. Num mo-
mento em que “as pessoas estão à beira
de um ataque”, contou Emmanuel Ban-
fo, “nós lhes damos um alívio”.
Haja quartos para tanta gente. No mo-
mento, 100 mil homens e mulheres
aguardam sua válvula de escape. Fun-
ciona, assegura uma jovem gerente de
projetos que tem conseguido manter
de pé a coabitação com o namorado.

“Nosso amor é incrível”, diz a moça,
“mas estamos passando tempo demais
juntos”, o que faz do casal “uma pilha
de nervos”.
*
Coisa de americano, com certeza. Me
faz lembrar um filme, não me pergunte
o nome, em que, depois de horas de pa-
vor e susto numa highway, o motorista,
no final do dia, faz parada num motel –
e não qualquer um: além de cama e ba-
nho, ele vai dispor ali de uma tela imen-
sa, cobrindo praticamente toda uma pa-
rede, na qual são projetadas imagens de
uma viagem alucinada, em tudo seme-
lhante à que ele acaba de fazer, com a
diferença de que, agora, pode extrava-

sar o pavor e o ódio que lhe causaram os
inimigos, os outros motoristas, na sua
ensandecida disputa pelo menor pal-
mo de asfalto. Não apenas pode berrar
xingamentos, qual Bolsonaro em reu-
nião ministerial, como arremessar na
tela os tomates podres que para isso o
motel pôs à disposição. Questão de mi-
nutos, ao cabo dos quais o viajante, com
os nervos finalmente aquietados, respi-
ra fundo e cai na cama. Amanhã virá
alguém limpar a sujeirada, enquanto
ele, de alma lavada, retomará viagem,
pronto para outra – que nem marido ou
mulher que volta para casa depois de
haver, sem arremesso de tomates, des-
carregado excessos de estresse conju-
gal num cômodo que o Banfo e o Xu lhe
proporcionaram, mediante o pagamen-
to de 50 dólares.
Sim, coisa de americano. Difícil ima-
ginar, no Brasil, marido ou mulher me-
tendo a mão no bolso, mesmo em reais,
para financiar uma breve escala em
quarto de descompressão marital, nu-
ma espécie de terapia sem terapeuta.
Na pátria do jeitinho, é mais provável
que, em meio à pandemia, as coisas se
acomodem à brasileira, com a adoção
de um similar do presidencialismo de
coalizão adaptado às relações de casal:
a gente não se bica, mas vamos lá.
Em nome da não beligerância, fi-
quem aqui algumas sugestões de enre-
do. Contar em dobro o tempo de isola-
mento compulsório a dois, seja para
chegar mais rápido às bodas de algum
metal ou pedra, seja como forma de en-
curtar o prazo para uma sonhada apo-

sentadoria conjugal. Planejar via-
gens para quando o fim da pandemia
permita restabelecer a livre circula-
ção de seres humanos. Conforme o
caso, duas viagens, pois depois de ta-
manha overdose de convívio tudo o
que cada um deles quer é partir para
o lado oposto ao escolhido pelo com-
panheiro ou companheira. Como na-
da deve ser excluído, admita-se até
mesmo, como fruto inesperado do
confinamento, a hipótese de recaída
amorosa de casais cujo prazo de vali-
dade parecia ter chegado ao fim: feli-
zes, ainda que sem exagero. Modera-
damente felizes.
Tudo pode acontecer, e não só nas
relações a dois. Quem diria que iría-
mos administrar afetos via internet,
com frequência às vezes maior do
que acontecia antes, de corpo pre-
sente? A tela do computador tor-
nou-se pequena para a fartura de
amizades, em rodadas de papo e riso
a que não faltam taças de vinho, co-
pos de cerveja e cumbuca de petis-
cos – tudo regado a promessas can-
dentes de beijos e abraços para quan-
do passar a pandemia. Trocamos ju-
ras ao som de We’ll Meet Again, de
Vera Lynn. O diabo será se sobre nós
baixar, no primeiro encontro presen-
cial, tão ansiado, um sentimento de
decepção, forte o bastante para que
paguemos logo a conta e voltemos
sem tardança para casa, onde a pri-
meira providência será convocar no-
va rodada, essa sim, gratificante, pe-
la internet.

COMO SOLUÇÃO


ANTICONTÁGIO


BIKES


França oferece ajuda para consertos e compra de bicicletas


para evitar aglomeração no transporte público


Nathalia Garcia
ESPECIAL PARA O ESTADO / PARIS


“Não sou um ciclista experien-
te, minha bicicleta estava guar-
dada há 15 anos. Vim trazê-la pa-
ra revisão porque devo retomar
o trabalho e não quero usar o
transporte público”, conta Phi-
lippe Chabrol, morador de Paris,
na fila de espera na entrada da
oficina Ça Redémarre. O medo
de contaminação pelo novo coro-
navírus nos trens, metrôs e ôni-
bus, nos quais é difícil respeitar o
distanciamento de um metro en-
tre os passageiros, tem levado
muitos franceses a privilegiarem
a bicicleta como alternativa de
mobilidade na saída do confina-
mento, iniciada em 11 de maio.
Para incentivar a população a
realizar os deslocamentos coti-
dianos em duas rodas e, assim,
evitar uma segunda onda da epi-
demia de covid-19, as autorida-
des francesas criaram um fundo
de 20 milhões de euros (cerca de
R$ 114 milhões) para o programa
Coup de Pouce Vélo (Empurrão
à Bicicleta, em tradução livre). A
iniciativa, liderada pelo Ministé-
rio da Transição Ecológica e Soli-
dária, inclui um incentivo de até
50 euros (equivalente a R$ 300)
para financiar a manutenção de
bicicletas usadas. A medida im-
pulsiona ciclistas mais ou menos
ativos a procurarem o serviço de
uma das mais de 3 mil oficinas de
reparação cadastradas.
É o caso do ciclista Alexandre
Pountzas, que decidiu fazer a ma-
nutenção de suas duas bicicletas
para aproveitar o bônus do gover-
no. “Eu não tinha grande necessi-
dade, mas disse que seria o mo-
mento de fazer algo mais profis-
sional. E quis também apoiar um
pequeno comerciante.”
Menos de 24 horas depois da
reabertura ao público, a oficina
Ça Redémarre acumulava dian-
te de sua fachada mais de uma
centena de bicicletas à espera de
manutenção. Enferrujadas, com
os pneus vazios ou secos, ou com
problema nos freios, muitas pre-
cisam de revisão completa.
“Acredito que já temos trabalho
para duas semanas de prazo.
Não sei se continuaremos acei-
tando novos clientes”, afirma o
sócio Alexis Mesplede. O longo
tempo de espera não desanima
os franceses. “Sem outra solu-
ção”, Philippe Chabrol pretende
continuar em home office en-
quanto sua bicicleta estiver na
oficina. Alexandre Pountzas, por
sua vez, planeja alternar o uso de
suas bikes quando necessário.
Tendo a bicicleta como instru-
mento de trabalho, o repórter fo-
tográfico Lyam Bourrouilhou en-
controu na Repair and Run uma


solução mais rápida para um pro-
blema de freio. A oficina parisien-
se conta com quatro técnicos no
local e mais dois profissionais iti-
nerantes. “As pessoas deixam a
bicicleta de manhã e retiram no
fim do dia. Nós quase preenche-
mos nossa capacidade. De dois
ou três atendimentos, passamos
a oito assistências diárias e po-
tencialmente até mais”, avalia o
funcionário Dimitri Morin.
Até o dia 23 de maio, o progra-
ma Coup de Pouce Vélo contabi-
lizou cerca de 45 mil operações
finalizadas em mais de 2 mil ofici-
nas. Os dados são da Federação
Francesa de Usuários de Bicicle-
ta (FUB), designada para pilotar
o projeto, identificar os prestado-

res de serviços para criar a plata-
forma e gerenciar fundos.
O sucesso do programa desde
os primeiros dias indica que o ob-
jetivo de 300 mil contemplados
seja atingido muito antes do pra-
zo de 31 de dezembro de 2020.
Elisabeth Borne, ministra da
Transição Ecológica e Solidária
(equivalente à pasta do Meio Am-
biente) da França, já sinalizou
que o plano pode ser ampliado.
Além de financiar reparos, o go-
verno anunciou assumir 60%
dos custos de instalação de lo-
cais de estacionamento de bici-
cletas e apoiar formações gratui-
tas para os cidadãos aprenderem
a circular de bike em segurança
pela cidade.

Demanda para todos. Muitas
pessoas ainda desconhecem o
incentivo, como Christophe Ga-
rabige, que contratou o serviço
na Cycles Sport Urbain, oficina
não credenciada no programa.
Único responsável da loja,
Yvon Ribou, aponta como justi-
ficativa para não ser incluído na
rede referenciada dificuldades
logísticas, como a falta de tem-
po para realizar o procedimen-
to de inscrição dos clientes. No
entanto, a decisão não tem afas-
tado a clientela. “Em menos de
três dias, arrumei 40 bicicletas.
Visto que durante dois meses
tive dificuldade financeira, vai
compensar.”
Além da demanda de manu-

tenção, há também uma grande
procura por novas bikes. A brasi-
leira Paula Lan Goulart, que se
mudou para Paris no início des-
te ano, pretende adquirir uma
bicicleta elétrica para realizar o
trajeto de 8,5 quilômetros entre
sua casa, em Neuilly-sur-Seine,
e seu trabalho em Rueil-Malmai-
son, ambos nos arredores de Pa-
ris.
“Eu já tinha intenção de ado-
tar uma vida mais saudável e,
com essa pandemia, pegar o me-
trô no horário de pico realmente
me assusta. Minha ideia é voltar
a trabalhar de bicicleta, e o metrô
ser uma exceção”, conta. Com al-
guns modelos
em mente, ela
reconhece que
a compra não
seria uma op-
ção se não hou-
vesse o reem-
bolso de até
500 euros (cer-
ca de R$ 3,1 mil), proposto pelo
departamento no programa Île-
de-France Mobilités.
Serviço compartilhado. Circu-
lar pelas ruas de Paris sobre duas
rodas também é opção para
quem não tem bicicleta própria,
graças ao serviço público de alu-
guel Vélib, disponível na capital
francesa desde 2007. Reforçar as
condições de higiene para preve-
nir a disseminação do novo coro-
navírus é um dos pontos-chave
do plano de ação do sistema com-
partilhado para a saída do confi-
namento. Lavar as mãos antes e
depois da utilização da bike e
usar luvas estão entre as reco-
mendações. “Tenho medo de ser

contaminado, mas isso não me
impede de usar a Vélib. Lavo as
mãos antes e depois, seria ótimo
se colocassem desinfetantes nas
estações”, diz Martin Daheron.
Mas muitos dos usuários que
chegam à estação da rua de la Ro-
quette – sem luvas e máscara –
confiam em certas medidas pre-
ventivas, como o uso do álcool
em gel, para evitar uma possível
contaminação. Três dias depois
da reabertura, em 11 de maio, o
número de trajetos cotidianos já
passava dos 90 mil, em uma frota
composta por mais de 19 mil bici-
cletas Vélib.
“Coronapistas”. O incentivo
ao uso de bicicletas no período
pós-confinamento também tem
como objetivo reduzir o fluxo de
carros em cidades como Paris,
onde o trânsito pode piorar se os
moradores derem preferência a
transportes individuais durante
a pandemia. A ministra Elisabe-
th Borne faz um apelo: “Enquan-
to 60% dos trajetos feitos na
França são inferiores a 5 quilôme-
tros, as próximas semanas repre-
sentam uma oportunidade para
muitos franceses, já ciclistas ou
não, escolherem a bicicleta para
deslocamentos de proximida-
de.” Para incentivar o movimen-
to, o governo apoia o desenvolvi-
mento de ciclovias temporárias.
A capital francesa prepara 50
km de ciclofaixas adicionais, cha-
madas por moradores de “coro-
napistas”, marcadas pela pintura
em amarelo e separadas das vias
por blocos de cimento. Apesar
da rápida expansão, o fechamen-
to de parques e jardins na região
parisiense, caso do Parque de la
Vilette, é um impasse, já que os
ciclistas são obrigados a fazer
grandes desvios de trajeto. Os
responsáveis pela medição em
Paris, que registram a frequência
nas ciclovias entre 6h e 23h, con-
tabilizaram
mais de 126 mil
bicicletas em
circulação no
dia 23.
Algumas
vias, como a
Rua de Rivoli,
foram reserva-
das para bicicletas, pedestres ou
veículos autorizados. Vale lem-
brar que a França soma, em todo
o seu território, 30 milhões de bi-
cicletas para uma população de
quase 67 milhões de habitantes,
sendo 2,2 milhões em Paris.
Mas será que essas medidas se-
rão suficientes para uma mudan-
ça de hábito de fato? “As coletivi-
dades entenderam rapidamente
que a bicicleta era a única coisa
que podia ser tentada em tão pou-
co tempo, para evitar a correria
no transporte público ou até mes-
mo o retorno maciço dos carros.
Algumas mudanças serão irrever-
síveis”, projeta o presidente da
FUB, Olivier Schneider.

Humberto Werneck


ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

l]


Felizes, mas sem exagero


Juntos para sempre?
A jura feita ao pé do altar
não previu a pandemia

GONZALO FUENTES/REUTERS

Paris. Capital francesa
adota transporte saudável
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