O Estado de São Paulo (2020-05-27)

(Antfer) #1

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A10 Política QUARTA-FEIRA, 27 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


ROSÂNGELA


BITTAR


l]
FELIPE
SANTA CRUZ

l]
MARCELO
TRÄSEL

J


air Bolsonaro e os militares que
integram o governo civil, eleito
pelo povo, estão a uma distân-
cia de 55 anos da ditadura em que
exerceram o poder em função de
um golpe. Eles têm muito a apren-
der com Anitta. Cansada de pedidos
para opinar sobre política, sem nada
entender do assunto, a cantora re-
solveu estudar e simplesmente con-
tratou um professor de história con-
temporânea.
O primeiro escalão do Executivo
não pode mais ignorar que Estado é

Estado, governo é governo, justiça é
justiça, crime é crime, e despacho de
juiz não se discute, se cumpre. Tudo
está muito bem definido desde que,
com o estado de direito, o Brasil tro-
cou o apelo às rupturas pelas práticas
civilizadas de democracia.
Instalados no Palácio do Planalto e
em milhares de cargos governo afora,
os militares são hoje responsáveis por
ações e decisões que afetam a vida das
pessoas deste mundo normal. Ações e
decisões das quais, aí está a diferença
do seu outro tempo, a sociedade, os

partidos, as instituições, sentindo-se
agredidos e impotentes, podem recor-
rer à Justiça.
No cerne do agravamento das rela-
ções da Presidência com o Supremo
Tribunal Federal, elevado ao paroxis-
mo no último fim de semana, está a
incompreensão brutal dos limites das
atribuições constitucionais dos pode-
res, das leis, dos regulamentos e até
dos dicionários. Esta distorção está na
base do alerta e da ameaça implícitos
nas notas de demarcação de território,
da ativa e da reserva, que publicaram
contra decisões judiciais. A animosida-
de vem de antes quando, em outros
governos, tornaram agudas, pela inti-
midação, tensões políticas em véspe-
ras de votações importantes pelo Su-
premo. No mandato Bolsonaro, po-
rém, em que ocupam em grande núme-
ro os postos executivos, as estocadas
se multiplicam. O governo é agressivo
e conflituoso e a sociedade tende a bus-
car mais o discernimento da Justiça.
O decano do Supremo Tribunal Fe-
deral, Celso de Mello, relator do caso

Moro versus Bolsonaro, intimou os mi-
nistros do Planalto, pertencentes à cor-
poração militar, a deporem no inquéri-
to e, para convocá-los, deu dois elásti-
cos prazos avisando que, se ainda as-
sim não explicassem a ausência, te-
riam que comparecer sob vara. Acha-
ram o mero jargão um acinte. O relator
encaminhou ao procurador-geral, co-
mo manda a formalidade, o pedido de
partidos políticos para examinar o ce-
lular do presidente da República: ou-
tro acinte. Queixam-se até da celerida-
de que o decano imprimiu ao inquéri-
to, esquecendo-se que é um caso rele-
vante na carreira de um ministro que
se aposentará em novembro próximo.
Até agora, na opinião dos que leem
nos reflexos do prédio espelhado da
Procuradoria Geral, a tendência de Au-
gusto Aras seria determinar o arquiva-
mento do processo. Com base em dois
argumentos, correntes entre os defen-
sores: o presidente da República pode-
ria, sim, nomear um diretor da Polícia
Federal. O segundo: é quase impossí-
vel separar as provas do crime.

No lusco-fusco daquela babel que
foi a reunião ministerial de 22 de
abril, seria possível ver embaralha-
dos polícia judiciária, informações
estratégicas e a segurança pessoal
da família do presidente. A questão
é que a colheita de provas não se
esgotou. Faltam as revelações de
Paulo Marinho, o conteúdo do celu-
lar de Gustavo Bebianno, o inquéri-
to de fake news, a decisão anuncia-
da de armar o povo como milícias
guerrilheiras, e mais a capacidade
inesgotável do presidente de se au-
toincriminar, em moto-contínuo.
Os militares consideram excessi-
va a judicialização e mais de uma vez
reclamaram que o Supremo não dei-
xa o presidente governar. Este é o
ponto: Bolsonaro ainda se acha en-
gasgado por decisões do STF, como
a que reconheceu aos Estados e mu-
nicípios a atribuição de decidir so-
bre o isolamento social na pande-
mia. Governar já foi “abrir estra-
das”. Para Bolsonaro, governar é
abrir salão de beleza.

E-MAIL: [email protected]
ROSÂNGELA BITTAR ESCREVE SEMANALMENTE ÀS
QUARTAS-FEIRAS

Rafael Moraes Moura / BRASÍLIA


O ministro do Supremo Tri-
bunal Federal (STF) Alexan-
dre de Moraes cobrou explica-
ções do titular da Educação,
Abraham Weintraub, sobre
declarações contra a Corte.


Em reunião com o presidente
Jair Bolsonaro e outros minis-
tros no dia 22 de abril, Wein-
traub disse que, se dependesse
dele, “botava esses vagabundos
todos na cadeia, começando no
STF”. O ministro terá agora cin-
co dias para prestar depoimen-

to à Polícia Federal (PF). A deci-
são de Moraes foi dada no âmbi-
to do inquérito que apura amea-
ças, ofensas e fake news disse-
minadas contra integrantes do
Supremo e suas famílias. Esta é
a primeira vez que um ministro
do primeiro escalão do gover-

no entra na mira das investi-
gações, que já atingiram ao
menos 12 pessoas, entre de-
putados federais e estaduais,
além de empresários que
apoiam Bolsonaro.
Para Moraes, a fala de Wein-
traub apresenta indícios de
três delitos: difamação, injú-
ria e crime contra a segurança
nacional. “A manifestação do
ministro da Educação revela-
se gravíssima, pois não só atin-
ge a honorabilidade e consti-
tuiu ameaça ilegal à seguran-
ça dos ministros do Supremo
Tribunal Federal, como tam-
bém reveste-se de claro intui-
to de lesar a independência
do Poder Judiciário e a manu-
tenção do Estado de Direito”,
argumentou o magistrado.

Sigilo. A observação do mi-
nistro da Educação foi feita na
reunião comandada pelo pre-
sidente Jair Bolsonaro, com
muitos xingamentos, ofensas
e ataques a instituições. Ao le-
vantar o sigilo do vídeo do en-
contro, o decano do STF, Cel-
so de Mello, apontou aparen-
te “prática criminosa” cometi-
da por Weintraub.
O Ministério Público Fede-
ral também pediu esclareci-
mentos do ministro da Edu-
cação sobre outra observa-
ção polêmica feita por ele, na
mesma reunião, a respeito de
povos indígenas e ciganos.
“Odeio o termo ‘povos indí-
genas’. Odeio. O ‘povo ciga-
no’. É povo brasileiro, só tem
um povo”, disse Weintraub.
Celso de Mello e a ministra
Cármen Lúcia aproveitaram
a sessão da Segunda Turma
para rechaçar ontem os ata-
ques feitos à Corte. “Sem o
Poder Judiciário não há o im-
pério da lei, mas a lei do mais
forte”, disse ela. Relator do
inquérito que investiga acu-
sações feitas pelo ex-juiz Sér-
gio Moro de que Bolsonaro
interferiu politicamente na
PF, Mello reforçou a posição
da colega: “Sem Judiciário in-
dependente não haverá liber-
dade nem democracia”, resu-
miu o decano do Supremo.

Sem imprensa livre não há democracia


Globo repudia


intimidação


contra Bonner


Insensatez em


moto-contínuo


MPF investiga


Wajngarten por


direcionamento


l Sem citar a sucessão de crises
no País, o presidente da Câmara,
Rodrigo Maia (DEM-RJ), fez um
pronunciamento ontem convocan-
do a “pacificação dos espíritos”, a
preservação da democracia e a
harmonia entre os Poderes. Aos
demais deputados, Maia pediu
altivez e equilíbrio. “É imprescindí-
vel cuidar da relação harmoniosa
e independente entre os Poderes
da República. É isso o que nos
ordena a Constituição. A constru-
ção e a preservação da democra-
cia exigem esforços diários, vigi-
lância intensa e transparência”,
disse. Maia vem sendo cobrado
por deputados da oposição e pe-
las redes sociais para pautar um
pedido de impeachment contra o
presidente Jair Bolsonaro. Já são
35 os pedidos na sua mesa.

U


m dos pilares da democracia
que estamos construindo,
desde que a Constituição de
1988 foi promulgada, é a liberdade de
expressão e de imprensa. Infelizmen-
te, no Brasil contemporâneo, algu-
mas autoridades e militantes políti-
cos radicais aparentemente desco-
nhecem ou desprezam esse princí-
pio constitucional e o papel do jorna-
lismo. Em lugar de respeitar a função
da imprensa e manter um ambiente
de civilidade diante da fiscalização
do noticiário, como fizeram todos os
governos desde a redemocratização,
alguns mandatários e servidores pú-
blicos respondem com injúrias dirigi-
das aos profissionais responsáveis

por manter a sociedade informada.
Um levantamento da rede Voces del
Sur, a partir de dados fornecidos pela
Abraji, aponta que houve no Brasil 59
ocorrências de discurso estigmatizante
contra jornalistas em 2019 e outras 39
em 2020, categoria na qual se incluem
apenas ataques derivados de agentes
políticos e agentes públicos. No caso de
assédio virtual, foram computados 30
incidentes em 2019 e 20 no ano de 2020.
Em relação à pandemia de covid-19, 24
violações à liberdade de imprensa fo-
ram detectadas entre 1º de março e 21
de abril, sendo 13 agressões e ataques a
repórteres, 9 casos de discurso estigma-
tizante e dois assédios virtuais.
No atual governo, o assédio moral a
jornalistas se tornou cotidiano. Nas en-
trevistas em frente ao palácio, o presi-
dente responde às perguntas sobre indí-
cios de corrupção ou incompetência
em seu governo com frases como “per-
gunte à sua mãe”, dirige gestos obsce-
nos ou ofensas homofóbicas e sexistas
a repórteres, ou ainda faz críticas às em-
presas de comunicação, tudo sob aplau-

sos de uma claque de militantes. Nas
redes sociais, uma militância, muitas ve-
zes conduzida por assessores pagos
com dinheiro público, promove campa-
nhas de difamação contra repórteres e
veículos, se valendo inclusive de perfis
falsos e robôs.
O resultado da ausência de civilida-
de do governo federal em sua relação
com a imprensa são as agressões físi-
cas a jornalistas noticiadas nas últi-
mas semanas. Legitimados pelo dis-
curso conspiratório e hostil do presi-
dente, seus apoiadores atacam repór-
teres com bandeiras, empurram fotó-
grafos de cima de escadas ou quebram
o dedo de cinegrafistas no exercício de
sua função profissional e de seu papel
como cidadãos. Isso precisa ter fim,
porque é até possível existir algo seme-
lhante a jornalismo num regime auto-
ritário, mas é impossível a existência
de uma democracia sem a fiscalização
do poder pelos jornalistas.
Atentas à necessidade de garantir a
segurança física e psicológica dos jorna-
listas, OAB, por meio do Observatório

da Liberdade de Imprensa, e Abraji fir-
maram convênio para orientação jurídi-
ca de profissionais agredidos ou asse-
diados. O livre exercício do jornalismo
é condição fundamental para que exis-
ta liberdade de imprensa, garantida pe-
la Constituição. Haverá orientação so-
bre medidas legais contra ameaças e as-
sédio online, roteiro para reconhecer
um abuso virtual e o passo a passo para
denunciá-lo às autoridades brasileiras
e às cortes internacionais de direitos
humanos.
A insatisfação com a imprensa é um
traço comum aos mandatários, e não só
aqui no Brasil. Afinal, é papel da impren-
sa manter uma postura crítica e inde-
pendente em relação a todos os Pode-
res instituídos. Esse monitoramento
das ações das instituições, dos políticos
e das autoridades é uma das mais rele-
vantes contribuições para o debate pú-
blico e para o fortalecimento da demo-
cracia. É um trabalho que não pode, em
qualquer hipótese, ser cerceado nem
confundido por qualquer que seja o go-
verno com o papel da oposição, ativida-

de a ser exercida por partidos e por
outros setores organizados da socie-
dade – igualmente importante e dig-
na de respeito quando exercida den-
tro da legalidade.
Portanto, nenhum tipo de violên-
cia ou assédio contra os profissio-
nais da imprensa pode ser admitido.
Nenhum tipo de ameaça de retalia-
ção aos veículos que cumprem o de-
ver de informar pode ser visto como
razoável. Em qualquer democracia, é
mister aceitar contraditórios e essen-
cial rechaçar a violência como forma
de solução dos conflitos.
Os sinais de uma democracia asfi-
xiada frequentemente aparecem sob
a forma de jornalistas e opositores
sendo censurados, coagidos ou
ameaçados. Ao primeiro sinal, é pre-
ciso dar um basta.

]
FELIPE SANTA CRUZ É PRESIDENTE DO
CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVO-
GADOS DO BRASIL (OAB)

]
MARCELO TRÄSEL É PRESIDENTE DA AS-
SOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JORNALISMO
INVESTIGATIVO (ABRAJI)

A Rede Globo publicou ontem
uma nota de repúdio a uma cam-
panha de intimidação promovida
contra o apresentador do Jornal
Nacional, William Bonner. O jor-
nalista vem sendo alvo de ata-
ques desde que fraudadores usa-
ram o CPF do filho dele para adi-
cioná-lo ao programa de ajuda
emergencial do governo. “Ele
conta com o apoio integral da Glo-
bo e de seus colegas e está ampara-
do pela Constituição e leis desse
país”, diz a nota da emissora.
Ao Estadão, o apresentador
se disse “reconfortado” pelo
apoio da empresa e dos colegas
e que vai acionar os meios le-
gais. “Como a única coisa que
faço na vida é ser jornalista, fica
claro o propósito de intimidar.
Não vão conseguir.”

O Ministério Público Federal
determinou a abertura de in-
quérito para investigar o secre-
tário de comunicação da Presi-
dência, Fabio Wajngarten, por
direcionar verbas do governo
para sites ideológicos. O ato
atende representação da Procu-
radoria Federal dos Direitos do
Cidadão (PFDC), que acusou o
chefe da Secom de improbida-
de administrativa e promover
censura a veículos críticos do
Planalto. Segujndo o MPF, o di-
recionamento promove “distri-
buição arbitrária e discriminató-
ria da publicidade oficial”.
Em nota, a Secretaria Espe-
cial de Comunicação Social da
Presidência da República afir-
mou que não direciona a aloca-
ção de investimentos publicitá-
rios a qualquer veículo.

Em discurso, Maia


pede ‘harmonia’


GABRIELA BILO / ESTADAO-24/10/

Moraes cobra


Weintraub por


fala contra STF


Magistrado dá prazo de cinco dias para ministro da Educação se


explicar sobre declaração que pede prisão de integrantes da Corte


Explicações.
Alexandre de
Morais viu
delitos em
declarações

Artigo

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