O Estado de São Paulo (2020-05-28)

(Antfer) #1

Caderno 2


Reggie Ugwu / NYT


É engraçado conversar com
Spike Lee via Zoom. Ele parece
distante, confinado em uma cai-
xa dentro de outra caixa na tela
do seu computador, mas nada
disso parece diminuí-lo. Talvez
seja o estilo – a combinação bo-
né de beisebol e óculos – ou tal-
vez o olhar dele. Lee tem olhado
diretamente para a lente da câ-
mera há mais de 30 anos. Pen-
sando nos personagens mais fa-
mosos dele – Mars Blackmon,
do longa Ela Quer Tudo (1986) e
de uma série de comerciais da
Nike com Michael Jordan; ou
Mookie, de Faça a Coisa Certa –
vemos que eles nos confrontam
diretamente. Essa é a posição
preferida de Lee: encarando
olho no olho, destemido. E fun-
ciona. Mesmo em uma video-
conferência com o sinal de ví-
deo travando um pouco, o ho-
mem é inconfundível.
Ele se mantém isolado em ca-
sa, em Manhattan, desde mar-
ço, quando a pandemia do coro-
navírus fechou boa parte de No-
va York. Seu único contato com
o mundo exterior ocorre na bici-
cleta que ganhou de presente,
pintada em laranja e azul em ho-
menagem ao seu amado time de
basquete, New York Knicks, so-
bre a qual ele passeia sozinho
por cerca de 5 ou 7 quilômetros
todas as manhãs, usando másca-
ra e capacete. À noite, ele janta
com a mulher, Tonya, e os dois
filhos, Satchel e Jackson, en-
quanto os vizinhos começam a
aplaudir e bater panelas como
parte das homenagens em toda
a cidade aos sobrecarregados
funcionários de saúde.
Enquanto negro americano
de 63 anos, Lee faz parte de um
grupo de alto risco de mortalida-
de em decorrência do vírus. Ele
tem medo? “Pode apostar que
sim!”, disse ele, sentado em um
sofá sob um cartaz antigo do fil-


me biográfico The Jackie Robin-
son Story (1950). “É por isso que
não boto meu rabo preto para
fora de casa!”
Lee se encontra em um mo-
mento estranho e singular da
carreira. Passou quase quatro
décadas e mais de 30 filmes acer-
tando as contas com os brutais
e irregulares contornos da histó-
ria. Agora, em meio a uma cala-
midade global, e com um novo
filme, Destacamento Blood, que
revisita a Guerra do Vietnã, ele
é novamente uma testemunha


  • mais velho, mais contemplati-
    vo e tão insaciável quanto sem-
    pre, apesar de ser dono de um
    dos legados mais sólidos do ci-
    nema americano.
    “No dia seguinte à premiação
    do Oscar, embarquei em um
    avião e viajei à Tailândia”, disse
    ele, referindo-se a uma das loca-
    ções de Destacamento Blood,
    com estreia prevista para 12 de
    junho na Netflix. Tonya levou a
    estatueta para casa – foi a pri-
    meira vez que ganhou um Os-
    car nas categorias principais,
    por melhor roteiro adaptado,
    com o filme Infiltrado na Klan
    (2018) –, onde agora faz par
    com o Oscar honorário que ele
    recebeu em 2015. “Voltei ao tra-
    balho imediatamente.”
    Ele tem plena consciência do
    fato de muitos não disporem do
    luxo de manter o autoisolamen-
    to como faz com a família. Boa
    parte dos filmes dele é habitada
    por personagens trabalhadores
    como os que ele conheceu na
    infância, no Brooklyn – entrega-
    dores de pizza, professores e ca-
    beleireiros negros – cuja valori-
    zação ele defende, pedindo que
    sejam objeto da mesma empa-
    tia estendida ao demais. E ele
    tem observado enquanto eles
    arriscam suas vidas em benefí-
    cio do restante de nós.
    “As pessoas fazendo o traba-
    lho sujo – quem trabalha nos
    mercados, nas cozinhas, nos
    correios – não podem se dar o
    luxo de ficar em casa”, disse ele.
    “Estão arriscando suas vidas
    diariamente apenas para traba-
    lhar. Só espero que aqueles que


desmereciam essas pessoas pos-
sam mudar de mentalidade,
pois são esses trabalhadores
que mantiveram a cidade viva.”
Como forma de homenagear
os trabalhadores essenciais de
Nova York, Lee fez um curta-
metragem, New York, New York,
que estreou este mês na CNN.
Rodado em um mês e usando a
icônica balada de Frank Sinatra
como trilha, o filme captura os
cartões-postais da cidade, es-
tranhamente vazios. Mas ter-
mina em um tom de otimismo:
os funcionários dos hospitais
chegam usando equipamento
de proteção individual como se
fossem a cavalaria.

A verdade. “Teremos ótimas
histórias a respeito deste mo-
mento – romances, músicas, do-
cumentários, poemas, filmes –
um grande esquema de divisão
do trabalho em casa!”, afir-
mou. “E espero que as pessoas
digam a verdade. Não faltam
heróis verdadeiros”, prosse-
guiu ele, acrescentando, “basta
contar a verdade, e o resultado
será cativante”.
Se os trabalhadores na linha
de frente são os heróis dessa his-
tória, está claro quem seria o vi-
lão aos olhos de Lee. O diretor,
um frequente crítico e antago-
nista de Donald Trump desde
os anos 1980, lamentou a “paté-
tica falta de capacidade de lide-
rança” do presidente, destacan-
do em especial suas delirantes
declarações públicas a respeito
de tratamentos inusitados con-
tra o vírus.
“Dizer às pessoas para que
usem luz ultravioleta? Beber de-
sinfetante e sei lá mais o quê?”,
disse Lee, rindo. “Tem gente
que vai parar no hospital por
acreditar nessas coisas. Ele só
pode estar de brincadeira!”
Trump é uma figura impor-
tante em Destacamento Blood,
história de ação e aventura a res-
peito de quatro negros vetera-
nos que voltam ao Vietnã mais
de 40 anos após a guerra. Um
dos personagens principais,
Paul, interpretado por Delroy

Lindo, que há muito trabalha
com Lee, e um eleitor de Trump
que passa boa parte do filme
usando um boné vermelho com
o slogan Make America Great
Again.
Ainda que a defesa do presi-
dente nas palavras de Paul sur-
preenda alguns, Lee tem um his-
tórico de personagens negros
complexos retratados sem sola-
par suas matizes. As pesquisas
de boca de urna mostram que,
mesmo com a maior parte do
eleitorado negro escolhendo
Hillary Clinton na eleição presi-
dencial de 2016, 13% dos ho-
mens negros votaram em
Trump.
“Minha mãe me ensinou des-
de pequeno que os negros não
são um grupo monolítico”, lem-
brou Lee. “Para tornar a histó-
ria mais dra-
mática, pen-
sei, ‘O que po-
deríamos fa-
zer de extre-
mo com um
dos persona-
gens?’”
“No come-
ço, foi um pro-
blema para
mim”, reco-
nheceu Lin-
do, para
quem Trump
era “a antíte-
se de tudo em
que acredita”. Ele prosseguiu:
“Tentei convencer Spike a de-
sistir da ideia: ‘Não podemos
pensar num personagem que
seja simplesmente conserva-
dor?’ Mas acho que há negros
muito insatisfeitos com o sis-
tema, por realmente não se
sentirem representados nele,
e estariam prontos para acredi-
tar que alguém como Trump po-
deria ajudá-los”.
Os quatro veteranos do filme


  • interpretados por Lindo,
    Clarke Peters, Isiah Whitlock
    Jr. e Norm Lewis – se identifi-
    cam coletivamente como “des-
    tacamento blood”, termo que
    usaram na guerra. Em uma tra-
    ma que homenageia O Tesouro


de Sierra Madre (1948), A Ponte
do Rio Kwai (1957) e Apocalypse
Now (1979), o destacamento
parte em uma missão para recu-
perar o corpo do seu ex-coman-
dante, Stormin’ Norman
(Chadwick Boseman), enterra-
do perto de um tesouro secreto.

Parábola moderna. O drama
que se segue – entre os homens
e entre o grupo e seus rivais no
Vietnã contemporâneo – é uma
parábola moderna a respeito da
depravação da guerra e das fal-
sas promessas do individualis-
mo americano.
“Todos nós, e a humanidade
como um todo, temos de apren-
der a pensar além de nós mes-
mos”, disse Lee. “Se a pande-
mia nos mostrou algo, é a neces-
sidade de ajudarmos uns aos ou-
tros. Não podemos voltar à vida
que levávamos antes do corona,
com uma grande desigualdade
entre ricos e pobres.”
Lee, nascido em Atlanta em
1957, o mais velho de seis filhos,
cresceu assistindo a reporta-
gens da Guerra do Vietnã na
TV. Suas lembranças mais mar-
cantes são de seus heróis quan-
do denunciaram o conflito, in-
cluindo Martin Luther King Jr.
e Muhammad Ali, que perdeu o
título mundial dos pesos-pesa-
dos por recusar o recrutamento
para as forças armadas.
O filme incorpora imagens
de arquivo de ambos. Uma mon-
tagem de abertura também
mostra tre-
chos de Ange-
la Davis, Mal-
colm X e Kwa-
me Ture, cujo
movimento
black power
teve sua ascen-
são no fim da
década de
1960, coinci-
dindo com os
anos mais tur-
bulentos da
guerra.
A confusão
entre os limi-
tes da história e a estória é carac-
terística de Lee. Infiltrado na
Klan terminava com imagens da
violência racista em Charlottes-
ville, Virgínia, em 2017, saltando
do terror fictício para o terror
real. Lee usou uma técnica seme-
lhante na abertura do seu épico,
Malcolm X (1992), com falas in-
cendiárias de Denzel Washing-
ton interpretando X, sobrepos-
tas ao vídeo de Rodney King sen-
do espancado por policiais.
“O elemento consistente em
seus filmes é a ideia segundo a
qual o passado não é apenas al-
go que ficou para trás, mas algo
ligado ao presente”, explicou
Kevin Willmott, corroteirista
de Infiltrado na Klan e Destaca-

mento Blood em parceria com
Lee. “Acho que ele acredita que
nosso país foi prejudicado por
filmes que maquiam a história,
e nós, enquanto minorias, te-
mos a responsabilidade de con-
tar a verdade de acordo com a
nossa perspectiva.”
Com Destacamento Blood, Lee
viu uma oportunidade de explo-
rar um lado da experiência dos
negros no Vietnã que não foi
mostrada no cinema, apesar
dos muitos clássicos produzi-
dos a respeito da guerra. O rotei-
ro original, intitulado The Last
Tour e escrito por Danny Bilson
e Paul De Meo, era uma história
de soldados brancos. Lee e Will-
mott começaram a adaptação
em 2017, após a suposta desis-
tência do diretor original, Oli-
ver Stone.
Os dois se mostraram particu-
larmente interessados na psico-
logia dos soldados negros que
lutaram em um país estrangei-
ro por liberdades que não ti-
nham em casa, tema que Lee ex-
plorou em seu filme a respeito
da 2.ª Guerra, Milagre em Sta. An-
na (2008). Em Destacamento
Blood, vemos como essa disso-
nância cognitiva se tornou re-
fratária com o tempo, quando
os membros do destacamento,
parte do porcentual despropor-
cionalmente alto de negros
americanos que serviram na
guerra, relembram suas trajetó-
rias e tentam avaliar o estrago.
“Tudo que eles tinham era
um ao outro, e disso vieram
uma união e uma irmandade
verdadeiras”, afirmou Will-
mott.
Lee acrescentou flashbacks,
incluindo uma sequência na
qual Stormin’ Norman faz um
discurso a respeito de Crispus
Attucks, um negro que se tor-
nou a primeira baixa americana
da Guerra Revolucionária. Ou-
tra sequência, inspirada em rela-
tos reais de veteranos negros,
mostra o momento em que os
membros do destacamento fi-
cam sabendo do assassinato de
Martin Luther King Jr. “Os sol-
dados negros não aceitaram
aquilo”, lembrou Lee. “Ficaram
com ganas de atirar, e o alvo não
seria o vietcongue!”
Pensando no exemplo de At-
tucks, que confrontou os solda-
dos britânicos no Massacre de
Boston, Lee começou a pensar
em voz alta a respeito do signifi-
cado do patriotismo. “Sempre
acreditamos na promessa da-
quilo que nosso país pode ser;
somos muito patrióticos”, ga-
rantiu ele. “Mas, para mim, o pa-
triotismo vem do poder de di-
zer a verdade. Denunciar as in-
justiças desse país é um ato de
patriotismo. É isso que signifi-
ca ser americano.” / TRADUÇÃO DE
AUGUSTO CALIL

DE CONTAS COM A HISTÓRIA


ACERTO


Cinema*


Novo filme de Spike Lee, ‘Destacamento Blood’ acompanha quatro soldados


negros veteranos que voltam ao Vietnã mais de 40 anos após a guerra


DIRETOR HOMENAGEIA


TRABALHADORES


ESSENCIAIS NO CURTA


‘NEW YORK, NEW YORK’


Lee. ‘Denunciar injustiças
é um ato de patriotismo’

ANDRE D. WAGNER/THE NEW YORK TIMES

LONGA DENUNCIA AS


FALSAS PROMESSAS DO


INDIVIDUALISMO


AMERICANO


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O ESTADO DE S. PAULO QUINTA-FEIRA, 28 DE MAIO DE 2020 Especial H5

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