O Estado de São Paulo (2020-05-28)

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H6 Especial QUINTA-FEIRA, 28 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Paulo Nogueira
ESPECIAL PARA O ESTADO


Antes que conseguíssemos di-
zer anticonstitucionalissima-
mente, nosso modo de vida
plantou bananeira – tudo por
causa de uma pereba micros-
cópica cujo código genético
(mais simples que o de uma bac-
téria) quase não é compatível
com uma entidade viva. A civili-
zação global derrapou e desco-
brimos, atônitos, que nosso co-
tidiano não passava de um caste-
lo de cartas.
O vírus pegou carona em
aviões, se regalou em suítes
principescas de navios de cru-
zeiro, se refestelou em maçane-
tas e interruptores, virando um
macabro negócio da China. Po-
rém, se não há ainda uma vaci-
na, pelo menos existe uma bela
vitamina espiritual, que nesta
era tão secular é a arte. Afinal,
como já lacrava Nietzsche, a ar-
te existe para que a realidade
não nos destrua. Mas será que
os artistas contemporâneos,
quando a ânsia de viralização
nas redes sociais é um vírus cul-
tural, entendem de reclusão? Se-
rá que ainda existem torres de
marfim, ou pelo menos quitine-
tes criativas?
Na literatura, a coisa é mais
simples, até por deformação
profissional: ficcionistas preci-
sam de privacidade e introspec-
ção para botar a mão na massa.
A ficção literária é precisamen-
te uma ponte entre duas soli-
dões: a do autor que escreve, e a
do leitor que lê. Ainda assim, es-
critores também gostam de ba-
ter perna, como disse o crítico
George Steiner: “Os vegetais
têm raízes. As pessoas têm
pés”.
Apesar disso, tem autores
que assumem seu complexo de
Greta Garbo e só querem ser
deixados quietos no seu canto.
Dalton Trevisan, que em um
mês fará 95 anos, é um desses
eremitas que amam a respecti-
va cripta – é conhecido como “o
vampiro de Curitiba”. Prêmio
Camões de 2012, Dalton vive no
mesmo mausoléu há 50 anos, e
nada de entrevistas nem fotos.
Noites de autógrafo? Só no dia
de São Nunca.
Rubem Fonseca também
odiava salamaleques midiáti-
cos, embora não fosse misantro-
po. O colunista Sérgio Augusto
contou no Estadão que uma
única vez pediu um entrevista a
RF – o pedido entrou a jato por
um ouvido e saiu a galope pelo
outro. Fonseca não lia críticas a
sua obra – o que pode ter prós e
contras. Em um autor tão reve-
renciado, talvez fosse uma mo-
déstia quase franciscana.
Um recluso imbatível foi o
americano J. D. Salinger, autor
de O Apanhador no Campo de


Centeio, que une o útil ao agradá-
vel: clássico da literatura e best-
seller com 80 milhões de exem-
plares vendidos. O autor deu
uma banana para a notorieda-
de: recusou todas as adapta-
ções para o cinema e se entrin-
cheirou numa roça em New
Hampshire. Nunca mais escre-
veu um romance, e vetava qual-
quer forma de publicidade.
Ameaçou disparar contra pes-
soas que se aproximassem de
sua casa e espalhou cartazes
apregoando isso. Segundo a fi-
lha dele, desenvolveu o hábito
de beber a própria urina, acredi-
tando que era boa para a saúde.
Como viveu até os 91 anos, tal-
vez tivesse uma certa razão
(pior que a cloroquina o xixi
não pode ser).
Thomas Pynchon é outra da-
quelas criaturas famosas por
odiarem a fama. De 83 anos, só
existem dez imagens dele, inclu-
sive um vídeo furtivo de 1997 da
CNN, que o autor retaliou: “’Re-
cluso’ é um termo criado pela
mídia para gente que não gosta
de falar com repórteres.” Quan-
do o livro O Leilão do Lote 49 em-
bolsou o Natio-
nal Book Award,
Pynchon enviou
um humorista à
cerimônia, o “pro-
fessor” Irwin Co-
rey (um “profes-
sor Raimundo”
americano), que
proferiu um dis-
curso maluquete
de agradecimen-
to.
Se na literatura
se entende o ensi-
mesmamento,
no mundo da mo-
da – gregário e mundano por de-
finição –, ele parece mais des-
concertante. Pois foi essa a op-
ção do esfíngico Martin Margie-
la, um dos estilistas mais revolu-
cionários de todos os tempos.
No reino das passarelas todo
mundo sabe quem ele é, mas
quase ninguém sabe exatamen-
te como ele é. Belga de 63 anos,
conhecido como o “Homem In-
visível”, não aparece em públi-
co nem dá entrevistas. E a pala-
vra “eu” não faz parte do dicio-
nário dele: só fala de suas cria-
ções como “nós” – não aquele
plural majestático dos jogado-
res de futebol, mas para incluir
todos os funcionários da grife.
A música é outro reduto mais
boêmio que monástico. Menos
para João Gilberto, cujos pitis
misantrópicos legaram tomos
de lendas urbanas. Como a de
que foi o pioneiro da refeição
delivery: ligava para o restauran-
te carioca Antiquarius, grunhia
sempre com o mesmo garçom,
e se identificava como “o se-
nhor Oliveira”. E aquele outro
causo (quase bom demais para
ser verdade), quando pediu a El-
ba Ramalho que levasse à casa
dele um baralho, já de madruga-
da. Embevecida com a chance

de pisar no Olimpo rarefeito, a
cantora chispou. Só para, dian-
te da porta do Zeus da Bossa-
Nova, ouvir a vozinha sussur-
rante: “Passe as cartas sob a por-
ta, uma a uma.”
Nas artes plásticas, há
Bansky, pseudônimo do mais vi-
ral artista urbano do mundo.
Outro dia, ele homenageou pro-
fissionais da saúde com a obra
“Game Change”, na qual uma
criança troca bonecos de super-
heróis por outros de médicos e
enfermeiros. O dinheiro da ven-
da da peça irá para o serviço de
saúde pública britânico.
Bansky não vende suas peças di-
retamente, pois são criadas em
paredes públicas das ruas. Lei-
loeiros tentaram comercializá-
las – e o comprador que se viras-
se para remover o grafite. Há 20
anos literalmente na praça, o ar-
tista nunca revelou sua identi-
dade.
Já o norueguês Edvard Mun-
ch, pintor do manjado O Grito,
contraiu a gripe espanhola na
pandemia de 1919. Hermetica-
mente fechado em casa, o lock-
down lhe inspirou duas telas su-
gestivas Autorre-
trato com a Gripe
Espanhola e Au-
torretrato Depois
da Gripe Espa-
nhola.
Por sua vez, o
austríaco Gus-
tav Klimt (do cé-
lebre quadro O
Beijo) não teve
um antes e um
depois: morreu
logo no início da
pandemia, ainda
em 1918. Em
compensação,
Kafka e Walt Disney, também
infectados pela gripe espanho-
la, sobreviveram (convenha-
mos que Kafka sobreviver a
uma epidemia é bem kafkia-
no).
Por falar em clássico, nos pal-
cos não há figurinha mais ca-
rimbada do que Shakespeare,
que escreveu sua tragédia mais
excruciante – Rei Lear – fechadi-
nho em casa, durante a peste
bubônica que assolou Londres
no século 17. Não lhe faltava
tempo, pois os teatro foram os
primeiros a fechar (antes dos
bordeis). Como rugiu um pre-
gador da época: “A causa das
pragas é o pecado, e a causa do
pecado são as peças de teatro”.
Consta que, quando acabou a
primeira guerra mundial, um es-
pertinho cutucou o escritor ir-
landês James Joyce: “E aí, o que
o senhor fez esse tempo todo?”
Joyce sapecou na lata: “Escrevi
Ulysses. E você?” Quanto a nós,
simples mortais (mais mortais
do que nunca), não precisamos
gerar nenhuma obra-prima uni-
versal.
Leitor, se você fica em casa e
toda manhã ainda consegue ti-
rar as remelas dos olhos, já é o
meu herói.

Caderno 2


Sem intervalo


OS ARTISTAS


DO SILÊNCIO


A FICÇÃO LITERÁRIA


É A PONTE ENTRE


DUAS SOLIDÕES: O


AUTOR E O LEITOR


Luiz Carlos Merten


Nesta edição você pode ler co-
mo Spike Lee está vivendo o
período de isolamento social
na pandemia. Vida e obra des-
se autor tão visceral represen-
tam a evolução da consciência
negra no cinema norte-ameri-
cano – em Hollywood, mesmo
que ele tenha estado sempre
baseado em Nova York. Nes-
ta quinta, 28, às 16h15, o Tele-
cine Cult apresenta um filme
da era anterior a Spike Lee.
No começo dos anos 1970,
e após as lutas por direitos ci-
vis na década anterior,
Hollywood percebeu que ha-
via uma plateia considerável
de afro-americanos que que-
ria se ver representada na te-
la. E passou a fazer, para es-
se segmento, os blaxploita-
tion movies, em geral, obras


de gênero. Surgiram poli-
ciais, comédias românticas,
até filmes de terror com elen-
co all black.
É o caso de Blácula, o Vampi-
ro Negro, de William Crain,
com William Marshall. Você
pode não saber, mas William
Horace Marshall era ator, au-
tor, diretor e cantor de ópera.
Foi um Drácula, perdão, Blá-
cula meio debochado, sugan-
do o sangue de Vonetta Mc-
Gee e Denise Nicholas. O su-
cesso foi imediato e surgiu
Scream, Blacula, Scream. No
programa infantil de Pee-
Wee, nos anos 1980, William
Marshall adquiriu popularida-
de entre a criançada dos EUA
como Dr. Wikipedia.

SHAKESPEARE


ESCREVEU ‘REI LEAR’


FECHADINHO


EM CASA


Quase Dois
Irmãos
(Brasil, 2004.) Dir. e roteiro (com Paulo
Lins) de Lúcia Murat, com Flávio Baura-
qui, Caco Ciocler, Babu Santana, Wer-
ner Schünemann, Maria Flor.

Luiz Carlos Merten

O melhor filme de Lúcia Mu-
rat, a história de dois amigos,
um branco e outro negro,
que se reencontram na pri-
são da Ilha Grande, durante a
ditadura. Presos políticos e
comuns trocam informa-
ções no mesmo espaço e os
segundos assimilam táticas
da guerrilha urbana. Venceu
o prêmio da crítica no Festi-
val do Rio, é forte e crítico.
C. BRASIL, 20H15. COL., 102 MIN.

Filmes na TV


Comportamento*


REPRODUÇÃO

Edvard Munch. Pintou o quadro ‘Autorretrato com a Gripe Espanhola’ durante pandemia

‘BLÁCULA, O


VAMPIRO


NEGRO’ NO


TEL. CULT


Eliana Silva de Souza

Mundo virtual
Ferramenta importante nes-
ta fase de isolamento so-
cial, as lives continuam cum-
prindo seu papel, de levar
cultura às pessoas que es-
tão em quarentena, tranca-
das em casa. A Globo Fil-
mes realiza nesta quinta,
28, às 18h, um bate-papo
sobre o filme Três Verões e
que contará com a presença
da diretora Sandra Kogut e
das atrizes Regina Casé e
Jéssica Ellen. Na trama,
norteada pelo ponto de vis-
ta de Madá (Casé), que é
uma caseira em um condo-
mínio de luxo à beira-mar,
que acompanha a vida de
uma família, que vai se des-
mantelando em função dos
dramas políticos que abala-
ram o País, no período de
três anos consecutivos.

Vida solta
O Canal Curta! exibe nesta
quinta, 28, às 21h10, docu-
mentário sobre Jack Ke-
rouac, um dos ícones da gera-
ção beat. O documentário

Jack Kerouac – O Rei dos
Beats, de John Antonelli, faz
um retrato do autor do livro Na
Estrada. Desde sua infância
católica, passando por sua
transformação em um dos
mais importantes autores ame-
ricanos até sua morte, aos 49
anos, em 21 de outubro de


  1. Filme será reapresentado
    na sexta, à 1h10 e às 15h15, e
    na segunda, 1º, à 1h e às 9h10.


Capa e espada
Para fãs de Alexandre Dumas,
ou para os amantes de seria-
dos, a TV Brasil começou a
exibir a série Os Três Mosque-
teiros, que é composta por dez
episódios. Nesta quinta, 28, às
21h30, vai ao ar o terceiro epi-
sódio, O Bom Soldado, que
traz o mosqueteiro Aramis ten-
do sua lealdade testada, isso
porque um velho amigo surge
e pede uma ajuda, que pode
complicar sua vida. A produ-
ção da britânica BBC conta
com elenco formado por Luke
Pasqualino (D'Artagnan), Tom
Burke (Athos), Howard Char-
les (Porthos), Santiago Cabre-
ra (Aramis) e Peter Capaldi
(cardeal Richelieu),

DESTAQUE Cade Você, Bernadette?/
Where’d You Go,
Bernadette?
(EUA, 2019.) Dir. e roteiro de Richard Linkla-
ter, com Cate Blanchett, Billy Crudup, Em-
ma Nelson.

Linklater e o tempo, seu grande
tema. A história de uma mulher,
por décadas. Como ela vive para a
família, o marido e como retoma o
controle da própria vida, numa
viagem de Seattle à região gelada
do Ártico. Não fez muito sucesso,
mas é bom. E Cate é ótima.
T. PREMIUM, 14h25. COL., 109 MIN.

Caramuru,
A Invenção do Brasil
(Brasil, 2001.) Dir. e roteiro (com Jorge Furta-
do) de Guel Arraes, com Selton Mello, Diogo
Vilela, Camila Pitanga, Débora Bloch, Debo-
rah Secco, Luís Melo.

Na época do Descobrimento, a his-
tória do artista português que so-
brevive a naufrágio na costa do
Brasil e vive entre os índios. A len-
da da pólvora, o humor do diretor e
seu roteirista, a beleza de Camila.
Não é O Auto da Compadecida,
mas tem seu charme.
GLOBO, 2H42. COL., 85 MIN.

RETIRO


TAIGA FILMES

Escritores, pintores e músicos que escolheram


a produção reclusa para elaborar grandes obras

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