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O ESTADO DE S. PAULO SEXTA-FEIRA, 29 DE MAIO DE 2020 Especial H7
Adriana Del Ré
Adriana Calcanhotto estava com
passagem marcada para voltar a
Portugal, onde dá aulas na Uni-
versidade de Coimbra – da qual
também é embaixadora –, quan-
do a pandemia do novo coronaví-
rus paralisou o mundo. Com a
viagem adiada, desencaixotou os
livros, e iniciou sua rotina de iso-
lamento em sua casa, no Rio. Pa-
ra alguns artistas, a quarentena
tem sido encarada como um pe-
ríodo pouco propício para a cria-
ção. Para outros, o efeito é contrá-
rio: o misto de sentimentos de-
sencadeados por essa fase tem
inspirado obras urgentes. E foi as-
sim, no afã de criar, que Adriana
Calcanhotto elaborou seu novo
disco, Só, composto, produzido,
gravado e mixado entre 27 de
março e 8 de maio, e que será lan-
çado nesta sexta, 29, nas platafor-
mas de streaming.
Com o projeto, a compositora
vai reverter os direitos autorais
de cada faixa em prol de diferen-
tes instituições – como Redes da
Maré, Ação Cidadania, Funk Soli-
dário, entre outras – e também
de sua equipe de técnicos, que es-
tá sem trabalhar desde o começo
da pandemia, por conta do cance-
lamento de shows.
Só é o seu disco da quarentena.
Essa rapidez na composição e na
gravação de um álbum foi um pro-
cesso inédito na trajetória da can-
tora e compositora, que habitual-
mente se debruça por um longo
tempo sobre um novo trabalho.
Reflexo do momento atípico que
o Brasil (e o mundo) está viven-
do. “Eu acordava e fazia as can-
ções com essa disposição: ‘preci-
so fazer alguma coisa’. Só que des-
cer do quartinho e me dispor a
fazer uma canção não quer dizer
que vá acontecer. Isso que eu
achei incrível: todo dia eu acorda-
va e fazia uma canção nova”, con-
ta Adriana, em entrevista ao Es-
tadão, por telefone, do Rio. “En-
tão, foi uma urgência que se deu.
Todo o processo de depuração,
aquela coisa que eu gosto de ca-
madas de tempo, nada disso ca-
be numa situação como esta.”
Coprodutora do disco ao lado
de Arthur Nogueira, Adriana
compôs praticamente uma can-
ção por dia. Dessa rotina intensa,
saíram nove faixas, que entra-
ram no disco na ordem em que
foram feitas. Na realidade, foram
dez, mas uma delas foi enviada
para Maria Bethânia. “Fiz a partir
de uma expressão que ela usou,
eu nunca tinha ouvido aquilo. Be-
thânia gostou, ficou com ela e, de
fato, é bem mais da Bethânia do
que do álbum da quarentena.” Es-
sa coleção de músicas, conta a
compositora, não surgiu da in-
tenção de dar corpo a um proje-
to. Essa proposta veio depois.
Ninguém na Rua, a primeiríssi-
ma música a ser composta (e que
abre o álbum), nasceu de sua bati-
da do funk no violão. “O que já
existia dela – talvez explique um
pouco o começo – é uma batida
do funk. Toquei no violão quan-
do gravei Claudinho e Bochecha,
era um jeito que eu fazia a batida,
mas venho experimentando ou-
tros jeitos, no violão, de tocar
funk. Tinha a batida só e aí a can-
ção veio.” O título parece carre-
gar um pouco daquela imagem
da quarentena na Europa, das
ruas vazias, que circulou pelas re-
des e pelos noticiários.
E é por meio das notícias que
Adriana recebe as informações
do mundo de fora, já que ela está
literalmente isolada no meio da
mata. “Moro na Floresta da Tiju-
ca, então, não ouço manifesta-
ções, não ouço buzinaço, não ou-
ço panelaço, só tenho contato
com o mundo pelas notícias.”
Nessa esteira, vieram outras can-
ções, como O Que Temos e Tive
Notícias Suas. O Que Temos carre-
ga outra imagem da quarentena,
a do dia a dia visto pelas janelas,
pelas sacadas. “Deixa eu te es-
piar/ Finge que não vê/ O que te-
mos são janelas”, diz no começo
da canção – que se encerra ao
som de um panelaço, que virou
trilha sonora do isolamento em
protestos contra Bolsonaro. “A
gente não pode fazer manifesta-
ções na rua, mas, se temos jane-
las e temos panelas, não é isso
que vai nos impedir. É um som
muito forte, e é uma coisa docu-
mental”, afirma a compositora.
Lembrando da Estrada traz a
saudade de Adriana de sair em
turnês com sua equipe, a quem
reserva os direitos autorais da
música. “Tenho preocupação di-
reta com minha equipe, porque
as pessoas trabalham, têm filhos,
compromissos. Pensei em gra-
var uma faixa e reverter para mi-
nha equipe.” Partiu daí a ideia de
ajudar instituições por meio das
demais faixas. “O pano de fundo
(do disco) é a pandemia, o pande-
mônio, essa insegurança que te-
mos todos quanto ao futuro, es-
sa quantidade de mortes.”
E como a compositora imagi-
na que será a volta à vida pós-pan-
demia, “se houver mundo”, co-
mo ela diz? “Vejo muito as pes-
soas falarem ‘quando voltar’, não
vai voltar, já passou e vamos pra
frente. Às vezes, acho que as pes-
soas vão se conscientizar, a coisa
da generosidade, da solidarieda-
de, que tudo isso avance, tome
conta do mundo, mas, ao mesmo
tempo, outros dias, vejo que tem
corrupção em hospitais de cam-
panha. Às vezes, não estou muito
esperançosa”, observa. “Acho
que algumas pessoas vão fazer
disso uma coisa boa; outras vão
tentar ficar voltando para o que
era, uma coisa que não é mais pos-
sível; e outras seguirão péssimas
em quaisquer circunstâncias,
sendo corruptas, desumanas, ir-
responsáveis.”
Caderno 2
Adriana Calcanhotto lança ‘Só’, com canções do isolamento
Música*
DA QUARENTENA
O DISCO
Abraço em tempos
de pandemia:
O impacto nas
relações humanas
HOJE, 29/05
ÀS 11H.
O Media Lab Estadão e a Elo promovem,
com transmissão ao vivo pelas redes sociais
do Estadão, o webinar “Abraço em tempos de
pandemia: O impacto nas relações humanas”,
com a psicóloga e colunista do Estadão,
Rosely Sayão. A mediação é da jornalista
Rita Lisauskas. Participe!
Rosely Sayão
Psicóloga e colunista do Estadão
Mediação: Rita Lisauskas
Confirmada:
A compositora.
Faixas com renda
destinada à equipe
e a instituições
LEO AVERSA