O Estado de São Paulo (2020-05-29)

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H8 Especial SEXTA-FEIRA, 29 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


ESTÁ AÍ


MIS, 50 ANOS


Fechado desde março, museu se adaptou aos novos tempos;


para a reabertura, a ideia é a volta da mostra de John Lennon


FUTURO


Milton Hatoum


‘Castelo’. Recorde de público imbatível até agora


A


inda me lembro do aviário


na praça da Matriz. Era enor-


me para uma criança. Gosta-


va de ver o voo colorido das araras...


Quando elas gritavam, eu apertava


tua mão. Tu me levavas à Matriz


quando a gente não ia aos banhos...


O Tarumã, a Ponte da Bolívia, o Par-


que Dez de Novembro, o Guanaba-


ra, o Tucunaré, o Mucuripe...


A cachoeira do Tarumã e o igarapé


do Quarenta sobreviveram?


Todos estavam poluídos e qua-


se todos foram aterrados. A Ca-


choeira Alta do Tarumã também


morreu. O cemitério do Tarumã


cresce com a miséria, a violência,


a pandemia. O igarapé do Quaren-


ta... Um amigo meu morava numa


palafita ali perto.


O Chiado?


Tua memória ainda pisca. Ele


mesmo. Estudava comigo e meren-


dava em casa. Tu fritavas banana


pacovã, fazias tapioquinha com


queijo coalho, musse de cupuaçu com


castanha ralada... No dia seguinte, no


Colégio Estadual, ele escrevia para ti


uma carta de agradecimento com


uma caligrafia que me dava inveja. E


agora, olha para a nossa cidade... Cin-


co décadas de roubo, de péssima admi-


nistração, de descaso...


Cinco décadas, para ti. Para mim, fo-


ram sete, e para o teu avô longevo, quase


nove...


E muita gente acreditava que as in-


dústrias levariam progresso a Ma-


naus e ao Amazonas. Transformaram


a cidade numa favela, com ilhotas de


prosperidade. Demoliram os cinemas


antigos, os casarões neoclássicos e


art déco... A floresta foi invadida, quei-


mada, e depois rasgada por rodovias.


Passaram asfalto até na praça João


Pessoa...


Passaram asfalto em várias praças, to-


das belíssimas. Foi na década de 1970...


A década da euforia e da desgraça.


Xinguei aquele prefeito interventor,


um coronel bronco. Antes dele, o go-


verno construiu um estádio monu-


mental. Foi demolido e construíram


outro, para a Copa do Mundo.


Só conheci o primeiro, de 1970. Foi


inaugurado com muita pompa, civil e


militar. O gigante custou uma fortuna.


Não conheci o segundo.


É também gigantesco.


Dois colossos inúteis... O primeiro foi


demolido? Vão construir um terceiro... É


uma história que tem um começo, mas


parece não ter fim. Broncos e larápios,


todos impunes. Todos, não sei. Não te-


nho notícias. Quantos foram julgados e


presos?


Só um.


Só um? A festa acabou só para ele?


Quem é esse injustiçado?


Um ex-governador e ex-secretário


da educação.


Grande patriota! São tantos... E todos


discursam para o povo. Vários governa-


dores diziam: “Sou caboco que nem o po-


vo!”. É a identidade dos demagogos e po-


pulistas. Espera um pouco... Em que mês


nós estamos? E em que ano?


Maio de 2020.


Por Deus, o tempo desembestou. E to-


da essa farsa continua... Só os lesos pen-


sam que a impostura acabou ou vai aca-


bar. E o pior é que tudo está ligado... O


triângulo perfeito, que não se desfaz. Ou-


tro dia tu disseste que a metade da popu-


lação está na míngua. É verdade?


Um milhão de almas manauaras vi-


ve entre a pobreza e a miséria. E o


interior do Amazonas continua aban-


donado.


Mas tu não deves ficar tão amargo.


Em 1962, no fim da tua infância, a espe-


rança ainda estava no ar. Era uma espe-


rança extravagante. Mas tanta saudade


do passado faz mal.


Não sinto saudade de uma época,


só de pessoas. É a memória de uma


cidade que já foi mais ou menos dig-


na, ou que prometia ser minimamen-


te civilizada.


Esquece essa tal civilização. É melhor


ficares calmo. Vai dormir.


Não consigo. Tu sabes que sou inso-


ne, a gente dormia no mesmo quarto.


Então vai ler. A solidão da leitura faz


bem. Só na solidão a gente descobre que o


diabo não existe. Se o demônio apare-


cer, escreve. O capeta tem medo de


certas palavras. Se não aparecer, vai


reler ‘A Sereníssima República’ e ou-


tros contos de ‘Papéis Avulsos’. Ainda


tens aquela edição das obras comple-


tas, de 1957?


Claro. Por que não teria guarda-


do aqueles livros?


Sei lá. Andaste por tantos lugares,


viveste em tantas cidades. Os livros


também viajam, mas às vezes são es-


quecidos.


Não foram esquecidos, estão


guardados na maior necrópole da


Amazônia.


Fica calmo. Os infames não sabem


que a vida é traição. Um dia eles serão


defuntos. O que tens escrito? Me lem-


bro do teu último livro. Foi em 2008.


Era um romance curto, ainda conse-


gui ler. Estavas longe, não deu tempo


para o último abraço. Depois, tudo


escureceu e tu ficaste órfão. Parece


que o mundo está mais tenebroso.


E o Brasil, mais que o mundo.


Mas nem tudo será sepultado, ra-


paz. Depois da tempestade, surge o ar-


co-íris. Às vezes não surge nada, e o


céu desaba.


l]


Eliana Silva de Souza


Nascido da ideia de preservar


parte da memória paulista, o


MIS – Museu da Imagem e do


Som completa 50 anos nesta sex-


ta-feira, 29 de maio. A festa para


comemorar ia ser linda e conta-


ria com uma mostra pensada es-


pecialmente para a data, mas a


pandemia de coronavírus fez


com que o museu adiasse os fes-


tejos e desse novo rumo a suas


atividades, que passaram a ser


oferecidas de forma online.


Com as perspectivas de reaber-


tura das atividades, ideias de co-


mo dar início a essa nova fase de


forma segura passaram a ser a


prioridade.


Ao falar com o Estadão, por


telefone, Cleber Papa, diretor do


MIS, revela que as perspectivas


mais otimistas trabalham com a


reinício do funcionamento da


instituição a partir do mês de


agosto. “Quando reabrirmos, a


exposição que estará no museu


será a do John Lennon, que ficou


apenas três dias aberta para o pú-


blico”, informa. Essa mostra,


que ficou aberta pelo período de


13 a 15 de março, seria uma das


grandes apostas da gestão para


este ano. John Lennon em Nova


York é composta de imagens que


o fotógrafo norte-americano


Bob Gruen fez do ex-Beatle,


quando o músico decidiu se mu-


dar para a cidade americana, nos


anos 1970. Para montá-la, o au-


tor ficou de olho em cada deta-


lhe e participou, mesmo distan-


te de todo o processo. Assim, as


fotos foram reveladas no Brasil,


mas eram encaminhas cinco pro-


vas para os Estados Unidos, para


ele escolher a que preferia, e ain-


da era dele a decisão sobre qual


laboratório seria o responsável,


o tipo de papel usado, também.


Mas o desfecho dessa trabalhei-


ra foi à altura, pois contou com a


presença do próprio Gruen no


MIS, dando seu aval. A ideia é


que a exposição fique em cartaz


por ao menos quatro meses.


Papa conta ainda o que deverá


ocupar o local na sequência. “De-


pois dela (Lennon), devemos ter


Chaplin, o Homem Orquestra, que


vai focar na relação de Charles


Chaplin com a música”, conta


com entusiasmo, explicando


que essa mostra, que vem de Pa-


ris, permitirá algumas brincadei-


ras com o público, que verá o ci-


neasta por um outro ângulo, ten-


do a música como centro da aten-


ção. Ainda em negociação, a pre-


visão é de que chegue ao MIS no


ano que vem.


Mesmo com o retorno às ativi-


dades, o MIS, de acordo com o


diretor, terá de voltar mantendo


o máximo cuidado, o que vem


sendo pensado e debatido inter-


namente. Como esse período de


quarentena obrigou o museu a


trabalhar de forma remota, vir-


tual, oferecendo suas atividades


de forma online, por suas redes


sociais e site, a ideia agora será


manter isso de forma constante.


“A gente mudou totalmente a for-


ma da nossa plataforma, e deve


continuar assim. Devemos man-


ter as atividades virtuais de for-


ma definitiva, e esse MIS presen-


cial deve ter novas regras.” E isso


será possível, segundo Papa, fa-


zendo com que as exposições de


grande porte fiquem mais tempo


em cartaz, o que possibilitaria


ser vista pelo mesmo número de


pessoas, se fosse presencial, mas


com menos gente por dia. “Va-


mos alargar o perfil das mostras,


de forma que as pessoas possam


visitar com calma, ou seja, em


vez de ficar três meses em cartaz,


deverão permanecer mais tem-


po”, ajudando a espacejar as visi-


tações, imagina ele.


Estes novos tempos farão o es-


paço repensar também o uso de


algumas tecnologias, como será


o caso das atividades que preci-


sam do touch screen, do toque


na tela com os dedos. Ele se preo-


cupa também com a questão do


celular e dos fones de ouvido, ne-


cessários em diversos progra-


mas do museu. “Não teremos


mais fones, as pessoas usarão os


seus próprios, o que será um pro-


blema a ser superado, pois tere-


mos de adaptar o maquinário pa-


ra aceitar os vários modelos”,


diz, mostrando que esta fase


atual vai exigir mudanças de pen-


samento e a procura de alternati-


vas para que voltemos o mais


próximo possível do normal.


Ligado à Secretaria de Estado


da Cultura, o MIS foi inaugura-


do em 1970 e teve como referên-


cia seu irmão carioca, que sur-


giu nove antes com o conceito


de preservação e produção de


imagem e som. Após ocupar es-


paços diferentes da cidade, pas-


sando pelos bairros dos Cam-


pos Elísios, Avenida Paulista e


Itaim, ganhou sede própria, em


1975, no Jardim Europa, onde


até hoje se mantém.


A inauguração do prédio do


MIS foi marcada pela exposição


Memória Paulistana, organizada


por Rudá de Andrade, na época


diretor técnico do MIS. De lá pa-


ra cá, o museu se transformou


em referência na realização de


mostras que atraíssem o interes-


se geral, montando diversas ou-


tras exposições, que preenche-


ram os seus espaços. Em sua his-


tória mais recente, o MIS sediou


eventos em que seu espaço ficou


até pequeno para a grande quan-


tidade de público, como foi o ca-


so da mostra com personagens e


cenários da série de TV Castelo


Rá-Tim-Bum, em cartaz entre


2014 e 2015. Imbatível em núme-


ros, Castelo é questão de orgulho


para todos que ali trabalham,


pois ultrapassou a marca dos


400 mil visitantes.


E, para animar os fãs, nesta sex-


ta, às 20h, terá live com atores do


elenco do Castelo Rá-Tim-Bum,


no #MISemCasa.


[email protected];
ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

lNúmeros


Caderno 2


EVELSON DE FREITAS/ESTADÃO - 15/7/2014 ACERVO MIS PAULO GIANDALIA/ESTADÃO

Réquiem à cidade da infância


TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Memória Paulistana. Abertura do MIS, em 1975 Bowie. Britânico foi homenageado em 2014


410


mil pessoas foram ver a


exposição ‘Castelo Rá-Tim-Bum’,


em 2014


213


mil viram ‘O Mundo de Tim


Burton’, em 2016


156


mil foram à mostra ‘Quadrinhos’,


em 2018


102


mil pessoas conferiram a mostra


‘Renato Russo’, em 2017


Ex-Beatle. Tema de mostra


em fotos de Bob Gruen

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