O Estado de São Paulo (2020-05-30)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO SÁBADO, 30 DE MAIO DE 2020 Especial H3


Ana Lourenço


“Tente imaginar um projeto em


que você possa ‘teletransportar’


algo animado diretamente para


o seu quarto”, pede o fotógrafo


russo Karman Verdi ao tentar ex-


plicar seu mais novo projeto, que


viralizou nas redes sociais e ga-


nhou o mundo. Criado durante a


pandemia do novo coronavírus,


Tem Tantos Fantasmas no meu Lu-


gar traz imagens dele próprio em


atividades do dia a dia: assistindo


a filmes, cozinhando, jantando.


Sempre acompanhado da proje-


ção de imagem de uma modelo.


“Decidi contar uma história so-


bre intimidade, sobre autoisola-


mento, sobre capacidades huma-


nas e sinceridade. Esta história


tem muitos nomes, mas seu no-


me principal é ‘Tem Tantos Fan-


tasmas no meu Lugar’.


As imagens do projeto mudam


de ambiente, situação e modelo.


Porém, sempre é um homem (e-


le) e uma mulher em situações


cotidianas, representando um ca-


sal. “O processo é improvisado.


Eu chamo a modelo online e co-


meçamos a sessão fotográfica,


que dura em torno de três a qua-


tro horas”, conta.


Nesse processo, diz que pensa


no que gostaria de ver e em que


história quer contar “com essa


ou aquela pessoa”. “Não se trata


apenas de fazer uma projeção.


Comunicar, interagir, contar


uma história completa sem em-


belezamento, é disso que estou


falando.”


As imagens surpreendem tan-


to pelo sentimento que transmi-


tem quanto pela originalidade.


Em tempos de isolamento so-


cial, os casais de todo o mundo


tiveram de se adaptar. Alguns fa-


zem o namoro sobreviver pelas


telinhas, outros optaram por


passar a quarentena juntos e ou-


tros, que já moravam juntos, in-


tensificaram a relação durante a


pandemia. “Se os amantes vi-


vem juntos e ficam presos por


muito tempo em um apartamen-


to, então esta é uma grande opor-


tunidade para entender todas as


questões importantes”, reflete.


Para ele, amor não é só química,


“é a mais forte das amizades”.


Carreira. Sobre a fotografia em


tempos de isolamento, ele prefe-


re se descolar do trabalho de fo-


tógrafos que têm feito ensaios a


distância. “Eu acredito que uma


sessão fotográfica por facetime


é apenas entretenimento. Os fo-


tógrafos só tiram capturas de te-


la enquanto os


modelos colo-


cam o ângulo


e, de fato, to-


mam o traba-


lho principal


para si”, avalia.


Karman co-


meçou a sua


carreira artística na música, mas


por motivos pessoais deixou es-


sa vida para trás e passou a tirar


fotos com o celular. “Então tro-


quei para câmera, e para outra e


assim começou”. Para ele, a es-


sência da arte é criar algo sob a


influência de certos sentimen-


tos e tentar transferi-los para as


outras pessoas, seja para refle-


xão ou para inspiração. “A arte é


uma língua internacional onde


as emoções são o alfabeto”.


Por isso mesmo, talvez, a arte


tem se reinventado tanto duran-


te esse tempo – muito através


da tecnologia. Músicos que can-


tam sobre o isolamento, lives


que são promovidas para entre-


ter a população, museus onli-


nes para visitar. “Todos os dias


as pessoas sentem emoções di-


ferentes, que vão da tristeza à


verdadeira alegria”, diz ele.


“Acho que esta quarentena mu-


dará muitas vidas e o mundo in-


teiro, de for-


ma geral.”


As diversas


reuniões de


trabalho ou


happy hours


virtuais entre


amigos são


justamente is-


so: uma tentativa de trazermos


as pessoas distantes para a nos-


sa vida. Como se o celular, algo


inanimado, se transforma-se au-


tomaticamente em algo vivo.


A noção de “fantasma” apare-


ce também na questão da invisi-


bilidade. “Agora muitas pes-


soas estão trancadas em suas ca-


sas e apartamentos, e parece


que as pessoas viraram fantas-


mas, invisíveis umas às outras”,


reflete. “Apesar de tudo, o ‘tiro-


teio online’ é difícil de ser cha-


mado de real.”


‘DECIDI CONTAR UMA


HISTÓRIA SOBRE


INTIMIDADE, SOBRE


AUTOISOLAMENTO’


FANTASMAS


HUMANOS


1 livro por semana*


MARIA FERNANDA RODRIGUES ESCREVE AOS SÁBADOS

l]


H


á uma passagem em Apátri-


das, romance de estreia de


Alejandro Chacoff, em que o


narrador descreve a sensação da nata


tocando seus dentes e língua, e o re-


flexo do vômito, na primeira vez em


que tomou o leite fervido da avó. As-


socia essa experiência à vida “visco-


sa, densa, empelotada” que se seguiu


à volta da família dos Estados Uni-


dos, após a separação dos pais. A mãe


e as duas crianças passaram a viver


num quarto da casa do avô materno,


no Centro-Oeste, e a compartilhar o


“drama rococó” diário daquela casa


de agregados, com gritaria, piadas fo-


ra de hora e visita de parentes falidos.


E o que ele mais queria era “rejeitar


essa vida, cuspi-la fora”. Mas como


rejeitar um modo de vida que vinha


de gerações?, questiona. E segue: “As


pelotas insalubres tinham que ser en-


golidas de uma só vez, com a esperan-


ça de que em algum momento mais


magnânimo fosse possível apreciar o to-


do. E é possível apreciar o todo? Não


sinto que eu esteja sendo justo ao des-


crever aqueles anos. Mas ninguém es-


creve para ser justo”, lemos no livro do


escritor que nasceu em Cuiabá, passou


a infância nos Estados Unidos, viveu no


Chile, Inglaterra, Argentina e Rio.


Apátridas nos leva ao Brasil do início


dos anos 1990 pelo olhar desse garoto


que assiste a tudo sem se sentir parte


daquilo, ou de nada. Que é exposto mui-


to cedo às fragilidades dos pais, e de um


país desigual, ganancioso e corrupto.


Que ouve na extensão as ligações do pai


ausente para o sogro, sempre pedindo


mais dinheiro e chorando. E vê esse avô


distribuindo envelopinhos de dinheiro


para parentes, e algum afeto. Um garoto


imerso numa narrativa familiar desco-


nexa e nem sempre confiável e que bus-


ca um lugar e esse pai do qual guarda


lembranças quase sempre frustrantes.


Um pai que não deu certo, mas que em


algum momento colocou Brahms para


os filhos ouvirem na barriga da mãe e


leu para eles Onde Vivem os Monstros.


Fotógrafo russo cria imagens com projeções de modelo em


situações cotidianas, representando o isolamento social


APÁTRIDAS


Autor:


Alejandro


Chacoff


Editora:


Companhia


das Letras


(192 págs.;


R$ 49,90;


R$ 34,90 o


e-book)


BETO BARATA/ESTADÃO - 30/8/2011

Romance. Obra fala sobre família, deslocamento, desterro e dinheiro


BABEL


l Poesia de Lezama Lima


Mariana Ianelli e Adriana Lisboa en-


tram na reta final da seleção e tradu-


ção de poemas do cubano Lezama Li-


ma (1910-1976) para uma antologia –


a primeira no Brasil – prevista pela


Demônio Negro ainda para este ano. A


obra poética do autor de Paradiso so-


ma mais de mil páginas, com muitos


poemas longuíssimos. O volume terá


40 deles, entre os mais representati-


vos de sua poesia e alguns dedicados


a amigos, intelectuais e familiares.


l Novas crônicas


Durante um ano, Elvira Vigna (1947-



  1. assinou uma coluna de crôni-


cas na Revista Pessoa, seu último pro-


jeto literário regular. Agora em junho,


quem chega à publicação é sua filha


Carolina. O ponto de partida de suas


crônicas, mensais, são os embates de


uma mulher de meia-idade com a ma-


ternidade solitária e tudo o que a atra-


vessa num país em derrocada.


Verdades familiares


FOTOS KARMAN VERDI

Rotina. Cenas corriqueiras de um casal confinado


Improviso. Verdi chama modelos online e deixa a cena correr. ‘Não se trata apenas de fazer uma projeção. Comunicar, interagir, contar uma história completa. É disso que estou falando’

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