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H8 Especial SÁBADO, 30 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
Caderno 2
Projeto que começou com doações de alimentos nas comunidades paulistanas se tornará instituto
OS CAÇA-FOME
N
a semana, anunciou-se que
dez vacinas já estão sendo
testadas em seres humanos.
Pulam etapas. Bilhões jorram. De-
pois de isolamentos rigorosos, paí-
ses europeus e asiáticos voltam à
normalidade. Em termos: a uma no-
va normalidade.
Nos EUA, ainda impera o “desco-
mando” do paranoico mitomaníaco
egocêntrico que não acredita na
ciência, governa focado numa cam-
panha eleitoral para seus eleitores
fiéis, não tem empatia, não respeita
o oposto e não estaria onde está se
não fossem as fraudes da verdade de
robôs e algoritmos das redes so-
ciais. Como aqui.
Lá, a curva de contaminados não
caiu, mas as praias e parques abri-
ram, depois do tenebroso inverno
(e nunca o clichê literário “tenebro-
so” caiu tão bem para descrever o
inverno pelo que passaram). Pou-
cos usam máscara em público, se-
guindo o exemplo do mister president.
Jogos olímpicos, eventos esportivos
em estádios, shows, manifestações de
massa, teatro e tudo aquilo que envol-
ve contato físico entre pessoas, como
concertos, baladas, festas, aguardam a
vacinação em massa prometida para o
fim do ano, ou começo de 2021.
E se rolar?
Será o Carnaval dos carnavais, a
Olimpíada de todas as olimpíadas, o
concerto inesquecível, o megashow
em que sobreviventes dos Beatles, Led
Zeppelin, Pink Floyd e Rolling Stones,
com abertura do Metallica, tocarão jun-
tos e de graça, ao vivo, num réveillon de
Copacabana?
As bolsas baterão recorde. O risco-
país despencará. Até navios de passa-
geiros sairão em comboio parando de
praia em praia, passageiros dançando,
com rolhas de champanhe voando, api-
tando.
Eu?
Irei a um cinema. Depois, ao bar do
bairro. Abraçarei amigos e garçons. Fi-
carei com os cotovelos no balcão co-
mendo tudo que vier da chapa e dividin-
do cerveja.
E depois?
Em minutos, me lembro das cinco
séries a que assisto que liberaram no-
vos episódios. Daquele meu pinot noir,
em casa é tão mais encorpado do que
esta bebida quente. Por que a batata
frita vem tão oleosa? Balcão está sujíssi-
mo. Não tem álcool gel? Meu deus, e
este banheiro, não consigo me sentar
ali! Este cara aí está próximo demais,
expele perdigotos, que risada exagera-
da. Por que gritam tanto? Naquela me-
sa, falam alto demais. Só tem vinho fo-
ra da geladeira? A taça está imunda. O
sujeito pegou amendoins do meu pra-
to! Desculpe, não vou dar a mão pra
você, depois terei que lavá-la, e não en-
tro naquele banheiro. De onde vem o
fedor de cigarro? Estou ficando sem ar.
Da calçada? Não é proibido fumar na
calçada? Não? Estou gordo, não tem
salada aqui? Preciso cortar o cabelo,
cai no olho. Será que podem apagar es-
ses cigarros? Saudades dos meus fi-
lhos. Não tinha uma live hoje com escri-
tores paulistas? Que horas é mesmo o
call das irmãs que moram na Europa?
Que saudades dos meus filhos... Será
que fizeram o dever de casa? Eu pode-
ria fazer aquele macarrão pra eles, ou
um hot-dog. Veríamos um desenho ja-
ponês do Studio Ghibli, ou Rango, Zoo-
topia, um clássico da Disney e Pixar.
Mais Angry Bird (muito engraçada
aquela cena da terapia em grupo), Os
Irmãos Willoughby, Meu Malvado Favo-
rito, Hotel Transilvânia, Madagáscar,
com aqueles pinguins sensacionais,
Booba. Adoro as trapalhadas do Boo-
ba, a risadinha dele, o “oh-oh?”. De-
pois, teria aquele banho de uma hora.
A casa fica com um cheiro tão bom...
Conto uma história da Ruth Rocha e
vamos dormir.
Enquanto em outra mesa...
“Ele não mandou o nude, hoje. Deve
estar num bar lá com seus amigos, com
bebida quente, batatas fritas oleosas,
balcão sujo sem álcool gel, que tem
um banheiro imundo e caras expe-
lindo perdigotos de risada exagera-
da, cercado por gente que grita, em
que o vinho fica fora da geladeira, e o
servem numa taça imunda, atordoa-
da pelo barulho, fumaça de cigarro.
Será que repararam que estou desca-
belada? Antes, tinha a desculpa... Sa-
lão, unhas, sobrancelhas, depilação,
ai que preguiça. Que preguiça desta
gente, deste bar, deste cheiro, não
quero abraçar ninguém, sai fora, pre-
ciso do meu espaço, está olhando o
quê? Saudades do meu curso de poe-
sia, harpa, aula online de tango, his-
tória brasileira, comida creole, re-
ver jogos da Seleção de antigamen-
te, do futebol arte. Falta ainda um
livro daquela trilogia. Estou tão fora
de forma. É, quem não nesta quaren-
tena? O que estou fazendo aqui? Ele
não vai me mandar nude? Ele não
pensa mais em mim? Não quero tra-
balhar no escritório amanhã. Duas
horas na Marginal! Minha chefe,
aquela tirana, no Zoom eu desligava
o vídeo e áudio, e fazia outra coisa,
mas no escritório?! Em que bar ele
foi? Como pago a conta?”
Marcelo Rubens Paiva
Camila Tuchlinski
Todo grande feito começa com
pequenas ações. Daniel Ribeiro,
de 48 anos, estava prestes a parti-
cipar de uma prova de ciclismo
na África do Sul quando ocorreu
a pandemia do novo coronaví-
rus. De volta ao Brasil, entre o no-
ticiário sobre o avanço da doença
e informações de grupos do
WhatsApp prevendo um colap-
so na economia, o CEO do Gru-
po G.D8 - Incorporação Imobiliá-
ria recebeu uma ligação de um lí-
der comunitário do Jardim Uni-
versitário, na zona Sul de São Pau-
lo, região que já costuma ajudar
com recursos e engenharia para
montar a sede dos moradores.
“Tonhão me mandou mensa-
gem pedindo socorro, dizendo
que muita gente lá estava passan-
do fome. Saí da quarentena, pe-
guei o carro com meu filho do
meio, o Pedro, e levei 800 quilos
de alimentos para ele. E, apesar
de saber da crise do coronavírus,
eu ‘senti’ a realidade. Não sei ex-
plicar, mas foi diferente. Eu fi-
quei com vergonha. Não dava pa-
ra entender por que pessoas po-
dem passar fome ao lado da sua
casa, na cidade mais rica da
América do Sul”, lembra.
Naquele dia, Daniel viu que ti-
nha de fazer algo: “Eu adoro a fra-
se do Kennedy (John Kennedy,
ex-presidente dos EUA) que diz:
‘Não pergunte o que seu país po-
de fazer por você. Pergunte o que
você pode fazer por seu país’. Fa-
lei: ‘Vou ajudar o máximo que eu
conseguir’. Aí, criei o Caça-Fo-
me”. A princípio, ele ajudou com
os recursos próprios. Inclusive,
utilizou uma Kombi restaurada
para entregar alimentos para as
comunidades. “Íamos eu e meu
filho e 800 quilos de alimentos
em cada viagem. Já ajudava mui-
ta gente”, diz.
No terceiro dia de ação, um
amigo emprestou um caminhão
e Daniel aumentou a doação para
três mil quilos de alimentos por
dia. Mesmo assim, o empresário
não pensava que estava fazendo
a diferença. “Uma sensação que
estava enxugando gelo. Um ami-
go me contou uma lenda inspira-
dora e pensei que faço a diferen-
ça para quem conseguir ajudar. E
viemos aumentando dia a dia até
chegar com capacidade de 700
cestas por dia durante a semana
e entre mil e duas mil nos fins de
semana”, ressalta.
Quando começou a entrar nas
comunidades, no início de abril,
Daniel conta que as pessoas não
entendiam por que ele usava más-
cara. “As pessoas olhavam para
mim e me perguntavam por que
eu usava máscara. Isso no dia 2
de abril. Em São Paulo, no geral,
todo mundo já estava em pânico.
E lá as pessoas me perguntavam
o que era máscara. Tanto que nas
primeiras idas eu até tirei a más-
cara para não ficar constrangido.
Parecia que eu estava com medo
de pegar alguma doença deles.
Na segunda semana, as pessoas
já entendiam porque eu usava
máscara, mas ninguém usava”,
explica. Então, o empresário pen-
sou em um jeito de ajudar a prote-
ger as famílias. A irmã dele, que
tem uma confecção, botou a mão
na massa. Hoje, com duas máqui-
nas compradas pelo empresário,
são dez mil máscaras produzidas
por dia. Sensibilizada, a Malwe
doou 100 mil kits de máscara,
com tecidos já cortados. O Hotel
Emiliano doou lençóis que se tor-
naram 15 mil máscaras.
O projeto Caça-Fome já distri-
buiu mais de 20 mil cestas bási-
cas, o equivalente a 200 tonela-
das de alimentos, para comunida-
des carentes da cidade de São
Paulo desde o início da pande-
mia. A iniciativa de Daniel foi mo-
bilizar seus funcionários para aju-
dar nas doações.
Depois, o Caça-Fome foi fican-
do conhecido entre amigos e em-
presários que têm contato com
Daniel. Ele começou a publicar
as ações na rede social particular
e as pessoas ficaram interessa-
das. “No meu Instagram pessoal,
comecei a contar um pouco do
que estava acontecendo e aí as
pessoas começaram a me procu-
rar para ajudar, com voluntaria-
do e dinheiro, e não tinha me pre-
parado para isso. Não fiz uma
campanha para arrecadar. Lá só
tinha um telefone para a pessoa
pedir ajuda e a gente ia socorrer.
Aí, abri uma conta no Bradesco,
com o próprio CNPJ da minha
empresa, exclusiva para doação
e os amigos começaram a deposi-
tar nessa conta. Mas já tinha uns
25 dias de ação e eu já tinha doa-
do, do meu bolso, umas 70 tone-
ladas de alimento. As pessoas
que eu conhecia começaram a
doar e aí começou a montar uma
corrente de doação. Facilitou
bastante porque não deixei de
doar a minha parte, mas conse-
gui aumentar a operação”, come-
mora.
Recentemente, a Mitsubishi
disponibilizou veículos para aju-
dar no encaminhamento das ces-
tas básicas. “Hoje a Mitsubishi
me emprestou cinco Triton
L200, do Rally dos Sertões, que
estavam parados. E um amigo
emprestou mais dois caminhões
da empresa dele que também es-
tá parada”, contabiliza.
A corrente do bem foi crescen-
do e Daniel conta com o apoio da
Bauducco, que toda a semana
doa bolinhos para o Caça-Fome.
Ao chegar à comunidade, as
crianças pegam os bolos e rece-
bem uma máscara laranja, símbo-
lo do projeto, e saem para a ‘mis-
são’ de achar as famílias que pre-
cisam de alimento: “É uma for-
ma de eu enxergar quem são os
voluntários e conseguir identifi-
car quem são, caso ocorra algum
tumulto”.
As cestas básicas do Caça-Fo-
me foram ajustadas depois da
análise de Daniel em relação ao
custo e aos componentes que po-
dem ser de fato úteis para as famí-
lias. “A gente entregava um quilo
de sal, por exemplo. Um quilo de
sal para a quantidade de alimen-
to que a gente dava era muito. En-
tão, a gente comprou aquela em-
balagem de restaurante, que
vem o sal empacotado, que é
mais cara, mas como eu entrego
menos sal e a cesta fica mais bara-
ta, consegui acrescentar uma goi-
abada de 300 gramas na cesta.
São poucas mudanças, mas o re-
sultado é significativo. Se você
for ao mercado hoje, não tem
uma cesta como essa para entre-
gar”, enfatiza.
O empresário relata que des-
pertou o interesse em conhecer
mais a realidade das famílias que
ajuda. “Comecei a entrar nas co-
munidades, falar com líderes e es-
tudar os problemas. Isto foi fasci-
nante, porque não dava para
mandar alguém entregar, tinha
que ir junto. Era a oportunidade
para entender a pobreza, enten-
der o País. A corrupção não é pro-
blema, como pensava, mas é o
sintoma. A causa é muito mais
profunda. Não é um problema só
do Estado. Se a gente não se mo-
bilizar como sociedade, isso nun-
ca será melhorado. Essa pobreza
só será cultivada”, reflete.
Casado há 23 anos e pai de Feli-
pe, de 21, Pedro, de 18, e André, de
12, Daniel Ribeiro é formado pela
Faculdade de Engenharia Civil
da FAAP e pós-graduado em
Marketing e Business Art. Além
de comandar a incorporadora no
Brasil, ele tem uma empresa nos
Estados Unidos para investimen-
to privado de renda de locação.
Os dois hobbies do empresário
são ciclismo e arte. Depois de par-
ticipar de ações de doação nas co-
munidades, Daniel pretende or-
ganizar uma exposição com fo-
tos da realidade que presenciou
durante a pandemia do coronaví-
rus nas comunidades. “Preten-
do, quando acabar, fazer exposi-
ção na minha galeria para rever-
ter dinheiro para o Caça-Fome.
Essas pessoas estavam falando
comigo quando fotografei. Pedi
se poderia fotografá-las, pois
eram sempre as histórias e ros-
tos que mais me marcaram na-
quele dia”, enfatiza.
Na Brasilândia, em um local co-
nhecido como Capadócia, Da-
niel disse que foram registrados
casos de covid-19. “Ficamos sa-
bendo de uns 50 casos. Apenas
por curiosidade: ninguém aqui
em casa pegou covid-19. Fize-
mos exame de sorologia e deu ne-
gativo para todos”, acrescenta.
O projeto Caça-Fome está
prestes a se tornar um instituto.
“Foi aberto o Instituto Caça-Fo-
me e está para sair o CNPJ. Aí,
prefiro que a pessoa doe ao insti-
tuto do que na conta da minha
empresa. Agora tem uns 200 vo-
luntários, que ajudam a montar e
carregar os carros para levar as
cestas. E todo o dia, nos últimos
60 dias, é um dia de grande apren-
dizado”, conclui.
ESCREVE AOS SÁBADOS
l]
Depois da vacina
FOTOS DANIEL RIBEIRO
Que saudades dos meus
filhos... Será que fizeram o
dever de casa? Eu poderia
fazer aquele macarrão pra eles
Iniciativa. O empresário Daniel Ribeiro e seus filhos
Força-tarefa. Desde o início da pandemia, voluntários do projeto já distribuíram 20 mil cestas básicas, equivalente a 200 toneladas de alimentos