O Estado de São Paulo (2020-05-31)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-13:20200531:


O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 31 DE MAIO DE 2020 Internacional A


A


A grande discussão do nosso
tempo é a contraposição en-
tre liberdade de expressão, de
um lado, e o discurso de ódio e a de-
sinformação espalhados pelas redes
sociais e o WhatsApp, de outro. Esse
embate ganhou um importante des-
dobramento, com o decreto do presi-
dente Donald Trump que tenta mu-
dar o status jurídico e a destinação de
verbas publicitárias do governo fede-
ral para as plataformas digitais.
A chamada Lei de Decência da Co-
municação, que regula a questão, é
de 1996, portanto oito anos antes do
Facebook e dez anos antes do Twit-

ter, os principais teatros da guerrilha
digital. O artigo 230 protege os “prove-
dores de serviços de internet” contra
ações judiciais relacionadas com o con-
teúdo que eles publicam.
Essa garantia justifica em grande me-
dida a atitude, chamada “neutralidade
da rede”, mantida até recentemente pe-
las redes sociais, de não interferir nos
conteúdos publicados nelas. Isso leva-
ria à perda dessa imunidade judicial, o
que transformaria sua vida num infer-
no, considerando os bilhões de posts
que elas publicam.
Na medida em que reportagens mos-
traram o quanto foi fácil e barato para os

russos influir nas eleições americanas
de 2016, as redes foram sendo pressiona-
das para investigar a origem de perfis e
postagens envolvidos em campanhas
de desinformação e tirá-los do ar.
Trump, que praticamente governa pe-
lo Twitter, continuava incólume. O Twit-
ter perdeu a paciência com ele quarta-fei-
ra depois de um tuíte no qual o presiden-
te acusava Joe Scarborough, apresenta-
dor da MSNBC crítico do presidente, de
envolvimento na morte de uma ex-asses-
sora em 2001, quando era deputado re-

publicano. O viúvo da ex-assessora, que
morreu de complicações cardíacas, es-
creveu para o CEO do Twitter, Jack Dor-
sey, pedindo que apagasse o tuíte.
O Twitter respondeu que a mensa-
gem não violava suas regras. Em meio à
comoção pela divulgação da carta do

viúvo, o Twitter finalmente entrou em
ação, colocando uma bandeira de “po-
tencialmente enganosos” em dois tuí-
tes de Trump que qualificavam o voto
pelo correio como “fraudulento”. Os re-
publicanos não gostam desse tipo de vo-
tação porque os democratas, em média
mais pobres, têm mais dificuldades de
ir votar fisicamente em dia útil.
Trump reagiu no dia seguinte, com o
decreto. Ele determina que em 60 dias
o secretário do Comércio entregue
uma petição à Comissão Federal de Co-
municações, uma agência independen-
te, para que ela verifique se plataformas
digitais estão restringindo o acesso a
conteúdo e ao mesmo tempo buscando
proteção na lei para não ser alvo de
ações judiciais.
O decreto ordena ainda que em 30
dias os diretores de todos os órgãos fe-
derais informem sobre as verbas de pu-
blicidade destinadas a redes sociais. O
Departamento de Justiça vai verificar
se há redes sociais “problemáticas para
a comunicação do governo”. O decreto

acrescenta: “A posição do governo
dos EUA é a de que grandes platafor-
mas online, como Twitter e Face-
book, não devem restringir discurso
protegido (pelo princípio constitu-
cional da liberdade de expressão)”.
Antes da edição do decreto, o fun-
dador do Facebook, Mark Zucker-
berg, criticou o Twitter, dizendo que
redes sociais não devem se engajar
em checagem de fatos, sobretudo de
conteúdos políticos. O Vale do Silí-
cio rachou pela primeira vez. Mas o
Facebook não escapará porque tam-
bém tem retirado perfis e páginas
que espalham mentiras.
Trump argumenta que as redes so-
ciais, a “nova praça pública”, devem
ser espaços de liberdade. Mas não há
como abandonar o princípio funda-
mental de que o direito e a liberdade
de cada um terminam onde come-
çam os dos outros. Incluindo o de
não terem sua reputação atacada por
mentiras e de não ser manipulado
por campanhas de desinformação.

LOURIVAL


SANT’ANNA


No Peru, ‘recolho 10 corpos por dia’, diz venezuelano


Fernanda Simas


Atualmente, 158 milhões de


trabalhadores estão na infor-


malidade na América Latina.


O número, que representa


54% dos 292 milhões que inte-


gram a força de trabalho lo-


cal, é apontado pelos especia-


listas como o principal desa-


fio para a implementação efi-


caz das medidas de combate


ao novo coronavírus. Isso aju-


da a explicar por que a região


se tornou o novo epicentro


mundial da pandemia.


“A resposta tradicional à pan-


demia, com o isolamento so-


cial, um pacote de estímulo e de


apoio a empresas e empregos e


aumento da capacidade do siste-


ma de saúde funciona bem em


contextos de baixa informalida-


de, como EUA e China, porque


é muito difícil obrigar o traba-


lhador informal a paralisar a


sua atividade econômica”, ex-


plica o diretor da Organização


Internacional do Trabalho (OI-


T) para a América Latina e o Ca-


ribe, Vinícius Pinheiro.


Dos trabalhadores informais,


segundo a OIT, 90%, ou seja,


140 milhões, estão sendo atingi-


dos de forma grave pelos efei-


tos da pandemia. O Peru é consi-


derado pela organização como


um exemplo prático disso. Foi


um dos países mais rígidos ao


implementar o lockdown: des-


de o dia 15 de março fechou aero-
portos e fronteiras. Mas o núme-
ro de doentes cresce rápido ao
lado do Brasil, por exemplo.
“Em feiras de rua de Lima,
80% das pessoas estão contami-
nadas porque quem precisava
vender para sobreviver furava o
isolamento, é o dilema entre o
vírus e a fome. Aí essas pessoas
levavam multas do governo,
não tinham como pagar e eram
detidas. Na prisão, elas se conta-
minaram”, conta Pinheiro.
Para o economista e profes-
sor de relações internacionais
da ESPM, Leonardo Trevisan, o
maior problema da informalida-
de é a ausência de proteção so-
cial. “A pandemia exibiu da for-
ma mais pura que a informalida-
de não significa ter alguma for-
ma de proteção social. No Brasil
temos um auxílio emergencial
de R$ 600, o que não se repete
no restante da América Latina
por falta de condições”, afirma.
Na região, o levantamento da
OIT mostra que 48% dos traba-
lhadores informais são autôno-

mos e 31% atuam em micro ou
pequenas empresas que têm en-
tre dois e nove funcionários.
Com a pandemia, os informais
devem ter uma perda de 80% de
sua renda, o que deve tornar a
taxa de pobreza – que afeta cer-
ca de 36% dos trabalhadores in-
formais – a nova realidade para
90% dos informais.
O peruano Gianfranco Barrio-
nuevo é cozinheiro contratado
em um restaurante de Lima,
mas lamenta a situação de mui-
tos colegas que trabalham no
mesmo local de maneira infor-
mal. “Infelizmente tenho mui-
tos companheiros que não são
peruanos ou não estão com a do-
cumentação toda em dia, então
eles vão sofrer”, afirma, ao se
referir a outro problema da in-
formalidade.
Para que algum auxílio do go-
verno chegue a essas pessoas é
essencial que exista um sistema
de cadastro atualizado, explica
Pinheiro. “Em alguns casos não
se sabe quem são as pessoas que
devem receber o auxílio por fal-
ta de um sistema que compile
os dados dos informais. No Pe-
ru, 12% do PIB está sendo dedi-
cado a pacotes de auxílio, mas
não se sabe quanto disso chega
a quem precisa.”
O professor Trevisan cita o ca-
so de trabalhadores da chama-
da ‘informalidade digital’, que
atuam em empresas como Uber

e Rappi. No dia 8 de maio, fun-
cionários desses aplicativos saí-
ram em suas motos e bicicletas
pelas ruas de Buenos Aires pe-
dindo kits de higiene e seguran-
ça para realizarem as entregas,
já que o serviço aumentou mui-
to durante a pandemia.

Planejamento. Com a maioria
dos serviços não essenciais pa-
ralisados, governos adotaram
medidas para proteger os traba-
lhadores formais da exposição
ao vírus e para reduzir o impac-
to econômico. Até abril, segun-
do estudo da Cepal, 19 países
dos 26 da região adotaram o ho-
me office, 14 possibilitaram a au-
sência remunerada e 11 permiti-
ram a redução de jornada.
Por ser contratado, Barrio-
nuevo recebeu 60% de seu salá-

rio em março, mas depois disso,
com o restaurante fechado, ele
ficou sem renda mensal. Então
partiu para o sistema de deli-
very. “Não estou passando ne-
cessidade, mas se eu não me pla-
nejar agora, em algum tempo
vou passar. Não recebi nenhu-
ma ajuda do governo porque
sou um trabalhador estável,
mas estou tocando um negócio
por conta própria para poder pa-
gar as contas. Estou trabalhan-
do com pizzas e comida italiana
para delivery”, conta.
Trabalhadores do setor de
saúde também têm recebido al-
gum auxílio dos governos. Na
Argentina, por exemplo, os tra-
balhadores da saúde receberão
entre abril e julho um bônus de
5 mil pesos (US$ 76) ao mês.
Mas o que preocupa organiza-

ções internacionais é a dificul-
dade de acesso ao sistema de
saúde pelos trabalhadores infor-
mais. “Na maioria dos países da
América Latina quem tem aces-
so à saúde é quem contribui
com o Estado. Não existe um
acesso universal como no Bra-
sil. Essa barreira explica por
que países com mais cobertura
e menos informalidade, como
Costa Rica e Uruguai, mostram
números menores de contá-
gios”, diz Pinheiro.
A retomada das atividades
econômicas já começou em paí-
ses da região, como Costa Rica e
Chile, e começará em outros
amanhã, como México. Mas
analistas alertam para o risco
do aumento de casos da covid-
19 e a necessidade de novas res-
trições.

EMAIL: [email protected]
LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

Desde que a pandemia chegou


ao Peru, o venezuelano Rodolfo


Castillo precisou trocar a enge-


nharia mecânica pelo serviço fu-


nerário para sobreviver em Li-


ma. “Saio para trabalhar e reco-


lho mais de dez mortos por dia.


Por medidas sanitárias, ne-


nhum corpo de vítima da covid-


19 é preparado para um funeral.


A gente coloca em uma sacola


especial para levar ao cremató-


rio”, contou Castillo ao Esta-


dão.


O venezuelano chegou ao Pe-


ru há dois anos e mora em um


bairro de classe média com pri-


mos e tios. Castillo perdeu o em-


prego na empresa de refrigera-


ção e resolveu pedir ajuda a ami-


gos venezuelanos que já traba-


lhavam no setor funerário.
“Pouco a pouco, vou me acostu-
mando, mas não é fácil. Agora,
tenho uma rotina dura e passei
a tomar mais cuidado, porque
não é apenas uma gripe.”
No Peru, mais de 4 mil pes-
soas morreram e 141 mil casos
de covid-19 foram confirma-
dos. O país teve um lockdown
rígido. Em 15 de março, já havia
fechado aeroportos e frontei-
ras, mas a disseminação tem si-
do rápida porque há muita infor-
malidade e muitos vivem em si-
tuação sanitária precária.
Esse é um dos cenários que
Castillo encontra em seu traba-
lho: pessoas que morreram em
casas pequenas, onde a máqui-
na de lavar roupas está ao lado
da cama sem lençóis. Para reti-
rar os mortos, ele precisa de
uma escada para carregar os ca-
dáveres.
Desde 2015, mais de 4,5 mi-
lhões de latino-americanos, a
maioria venezuelanos, migra-
ram para países da região. Go-

vernos lançaram programas de
auxílio e garantiram vistos tem-
porários ou permissões de tra-
balho, mas agora existe o temor
de que a pandemia impeça no-
vas ações sociais, enquanto a re-
cessão e a disputa por leitos de

hospitais aumenta.


Auxílios. No Peru, em 2017,
quando o êxodo venezuelano
aumentou, o governo do então
presidente, Pedro Pablo
Kuczynski, estendeu a duração

do visto de trabalho temporário
e criou um visto específico de
permanência. Com isso, em
2018, 500 mil venezuelanos en-
traram no país.
O número de venezuelanos vi-
vendo no Peru é de 860 mil, mas
a integração é mais difícil do
que em países como a Colôm-
bia, explica Brian Winter, edi-
tor-chefe da Americas Quar-
terly, em artigo sobre políticas
migratórias da América Latina.
Ele cita a questão das culturas e
similaridades entre os países ca-
ribenhos.
O risco de contaminação pa-
ra Castillo é grande, assim co-
mo ocorre com a maioria dos
imigrantes na América Latina.
Segundo a Organização Interna-
cional do Trabalho (OIT), mui-
tos não estão regularizados e
trabalham em serviços essen-
ciais – portanto, não conse-
guem cumprir o isolamento so-
cial.
“Vários venezuelanos têm
trabalhado em serviços essen-

ciais, como auxiliares de enfer-
magem, segurança privada, lim-
peza e serviços de gestão de ca-
dáveres. Além disso, os imigran-
tes sofrem com o aumento da
xenofobia”, afirma o diretor da
OIT para a América Latina e o
Caribe, Vinícius Pinheiro.

Xenofobia. Segundo a Organi-
zação Internacional para as Mi-
grações (OIM), a pandemia po-
de levar à perda do status migra-
tório legal por conta do fecha-
mento de fronteiras, por isso é
importante que essa população
receba mais apoio dos Estados.
Castillo não tem o visto per-
manente. Ele diz que o proces-
so foi paralisado com a crise.
Mas seu desejo agora é retornar
à Venezuela.
“A economia aqui (no Peru)
vai decair muito e sempre nos
rotulam de várias coisas, me-
nos de boas pessoas.”
A situação se repete em ou-
tros países da América do Sul.
Na Colômbia, por exemplo, qua-
se 1,8 milhão de venezuelanos
chegaram entre 2015 e 2019,
mas 65 mil deles regressaram
desde o início da pandemia. / F.S.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Realidade. Rodolfo precisa de escada para recolher corpos


lForça de trabalho


Antes de decreto, Zuckerberg


criticou o Twitter e o Vale do


Silício rachou pela primeira vez


Desde o começo da


pandemia, jovem


sobrevive com


trabalho em serviço


funerário


SEBASTIAN CASTANEDA/REUTERS

Informalidade na


América Latina


afeta luta ao vírus


158 milhões
trabalhadores da América Latina
e Caribe estão hoje atuando na
informalidade; número pode
aumentar após a pandemia

Com 54% de trabalhadores informais na região, medidas de


isolamento impedem obtenção de renda e são descumpridas


Lima. Funcionários de cemitério ajudam em enterro; apenas parentes diretos participam


Trump e as redes sociais


RODOLFO CASTILLO
Free download pdf