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H4 Especial DOMINGO, 31 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
E
m tempos desafiadores, a
criatividade é ainda mais ne-
cessária na tentativa de des-
cobrir caminhos alternativos para
enfrentar uma realidade ainda des-
conhecida. No caso desta colunista,
minha criatividade foi desafiada
com uma provocação maravilhosa
para quem trabalha com o mercado
de moda há 25 anos.
Me refiro à criação de uma revista
de moda, design, arte e lifestyle, que
tem como objetivo cumprir o papel
de informar e trazer uma visão coe-
rente com o significado da palavra
moda. Universo que engloba com-
portamento, costumes e um fenô-
meno sociocultural, que expressa
os valores da sociedade em determina-
do momento histórico. Uma revista
idealizada para retratar como nos ves-
timos, quais movimentos e tendências
nos impactam e quais eventualmente
serão integrados às nossas vidas. Para
debater sobre onde habitamos e como
ocupamos nossos espaços e o que isso
revela.
A oportunidade se tornou uma mis-
são e, neste domingo, seguimos para a
terceira edição da revista Moda, men-
salmente encartada no Estadão para
seus assinantes da Grande SP.
Perto dos 50 anos de idade e tendo
escolhido minha profissão há metade
disso, posso garantir que a moda pode
e deve receber um olhar atento. Na
escolha do que vestimos, existe o po-
tencial para surgir uma visão de van-
guarda sobre movimentos com rele-
vância para alterar o rumo de merca-
dos inteiros.
Do movimento sufragista na década
de 1920, que lutou pelo direito femini-
no ao voto e tornou as mulheres mais
independentes e, com certeza, mais li-
vres para escolher o que consumir, pas-
sando pelos hippies na década de 1960,
que pregavam o pacifismo e o respeito
à natureza (que para quem prestou
atenção pode criar as primeiras mar-
cas com apelo ambiental), aos punks
ingleses dos anos 1980, só para citar
alguns, a maneira de se vestir expressa
a mensagem de uma época e do que
está por vir. A escolha do que usamos
em nossos corpos individualiza nossa
imagem ao mesmo tempo em que re-
força a que grupo da sociedade perten-
cemos.
Não olhar esse segmento até como
objeto de pesquisa pode significar um
olhar míope, que vai deixar de reconhe-
cer oportunidades que se desvendam
espontaneamente. Durante os últi-
mos três meses, e com as restrições
impostas pela pandemia, construí-
mos uma revista de moda necessá-
ria para o entendimento do nosso
tempo. Em meio a formatos varia-
dos para viabilizar o trabalho, e com
a falta do contato físico, que fazia
parte das reuniões de criação e en-
saios fotográficos, usamos todas as
ferramentas que a tecnologia nos
possibilitou. Styling via Zoom, Face-
Time para alinhamento de make e
entrevistas, além de drones para
captar imagens de como nos vesti-
mos no confinamento, são recursos
que passaram a fazer parte dos nos-
sos dias e noites.
O desejo cada vez maior é que a
revista Moda se consolide ainda
mais como um instrumento de refle-
xão e contribuição para construir-
mos em breve um mercado que pos-
sa representar a transformação que
desejamos ver como imagem do
tempo que agora vivemos.
Alice Ferraz*
[email protected]
l]
Alice Ferraz
Se estilistas consagrados e mar-
cas com história e intensa vivên-
cia no mercado estão em busca
da transformação necessária pa-
ra acompanhar esse novo tem-
po, como enxergam o caminho
aqueles que nasceram e já se en-
contraram dentro do maior de-
safio do mercado de moda no
Brasil e no mundo?
Entre as marcas que nasce-
ram na última década, a maior
parte já traz em sua gestão o
comportamento esperado por
jovens empreendedores com re-
lação a consciência e propósito.
Aos 28 anos, o fundador da no-
vata Misci, Airon Martin, criou
sua marca com mensagens cla-
ras de apoio à sustentabilidade
e inclusão. Airon cria coleções
anuais e assim tem a oportuni-
dade de se aprofundar nos te-
mas que fazem nascer, não só
roupas, mas mobiliários de sua
autoria. Nascido na Amazônia,
o estilista diz que seu senso po-
lítico sempre esteve presente
nas criações e uma de suas mis-
sões é “frear atitudes que ferem
a marca Brasil no mundo”. Sua
busca não é só filosófica: “Es-
tou à frente de um projeto de lei
de incentivo ao design nacio-
nal, que tem como foco a libera-
ção de créditos reduzidos para
produtos que são projetados e
fabricados no Brasil com maté-
ria-prima brasileira”, conta.
Nesse momento de metamor-
fose, a moda carrega o real signi-
ficado dessa palavra, não só na
aparência, mas na estrutura,
comportamento e no modo de
pensar e agir. Assim, espelhare-
mos para futuras gerações um
retrato da mudança que espera-
mos realizar como símbolo do
nossos tempo pós-pandemia.
Outra bandeira de Airon é a
conscientização do machismo
estrutural na cultura brasileira.
Sua moda é genderless, sem gê-
nero, como manifestação da
igualdade.
Já a Yoface espelha bem esse
novo momento de transforma-
ção intensa e nasce como prota-
gonista no segmento de impres-
são 3D, sendo a primeira marca
de óculos brasileira a usar essa
tecnologia para a fabricação de
óculos em escala industrial.
“Nossa produção é realizada
de acordo com a demanda, o
que acaba com o estoque. Além
disso, a possibilidade de cria-
ção para designers usando essa
tecnologia é extraordinária,
porque nos facilita a criação de
produtos customizados e úni-
cos”, diz Ivan Cavilha, funda-
dor da marca.
Rafaella Caniello e sua Neria-
ge enxerga o momento com a
maturidade necessária para rea-
lizar mudanças ao mesmo tem-
po em que entende suas raízes
brasileiras. Todo o tecido usa-
do em suas criações e a mão de
obra são 100% nacionais, fato-
res fundamentais para reforçar
a marca. “Apesar de muitas ve-
zes me dizerem que minhas rou-
pas têm uma referência euro-
peia, posso garantir que o Brasil
é meu lugar de pesquisa e mi-
nhas criações traduzem minha
visão da minha terra natal e a
busca constante em conhecer
sempre mais o nosso País. As
mulheres indígenas do alto do
Rio Negro deram o tom da mi-
nha última coleção e represen-
tam essa inspiração constan-
te”, reforça.
Ana Luisa Fernandes, nasci-
da em Belém do Para, criou sua
Aluf com propósito claro. “So-
mos uma marca de design de
moda que traz uma solução e
não um problema ao mundo.
Toda nossa matéria-prima é
sustentável, nacional, reciclada
e biodegradável. Nossos pilares
são sustentabilidade e artetera-
pia, trazendo autoconhecimen-
to através da roupa”, diz ela,
mostrando uma roupa sofistica-
da e com modelagem impecá-
vel, que quebra qualquer pre-
conceito que se possa ter a rou-
pas feitas de tecido a base de
garrafa pet. Ana Luisa traz uma
provocação importante e pre-
sente em cada conversa com es-
ses jovens criadores: a impor-
tância de se autointitular moda
brasileira quando essa bandeira
tem lastro e fundamento.
A moda nacional brasileira de
design autoral existe e está lon-
ge de ser a roupa produzida por
marcas nacionais na China com
tecido, mão de obra e etiqueta
chinesas que, mesmo assim, se
autodenomina “moda brasilei-
ra”. “Temos que iniciar um pro-
cesso que valorize a matéria-pri-
ma nacional e encontrar cami-
nhos que contribuam para que
nossas indústrias têxteis sobre-
vivam. Comprar e produzir na
China é mais barato, mas não
conseguiremos melhorar a qua-
lidade do que produzimos no
Brasil, nem encontrarmos nos-
sa identidade, se continuarmos
nesse ciclo”, reforça Ana Luisa.
Está nas mãos desse novo con-
sumidor mais consciente o que
e por que comprar uma peça de
roupa – e o real significado que
ela carrega.
É preciso espelhar, para futuras
gerações, o retrato da mudança que
esperamos realizar como símbolo
do nosso tempo pós-pandemia
MUNDO
NOVO
MODA COM PROPÓSITO
GUI NABHAN
Três Estilistas: NOVA GERAÇÃO CONSCIENTE
Rafaella
Caniello.
Fundadora
da Neriage,
cria imagem
contando
histórias
brasileiras
através
da roupa
CAI RAMALHO
Aluf. Grife usa
matéria-prima
sustentável
LILIA HORTA
Ana Luisa
Fernandes.
Proprietária
da Aluf,
encontrou
os pilares
de sua
grife na
arteterapia
Airon
Martin. Da
Misci: além
de roupas
com
propósito,
produz
mobiliário
alinhado
com os
conceitos
da marca
JULIANA AZEVEDO
AIRON MARTIN
A escolha do que usamos
em nossos corpos
individualiza nossa imagem
Neriage. Marca utiliza tecido e mão de obra nacionais
‘Moda’: um reflexo
de nosso tempo
RAFAELLA CANIELLO