O Estado de São Paulo (2020-05-31)

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H10 Especial DOMINGO, 31 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


S


eu Pelé é muito
querido em Lagoa
da Prata (MG), ci-
dade com cerca de
65 mil habitantes.
Sua história che-

gou a mim por meio de uma


carta assinada por quase 10%


dos moradores. Nosso primei-


ro encontro se deu no municí-


pio vizinho de Santo Antônio


do Monte, em meio à Festa do


Reinado, celebração popular


que teve origem entre os ne-


gros africanos trazidos à força


ao Brasil durante o período da


escravidão. Nos idos de 1700,


chegou a Minas Gerais, e se


transformou em dias de feste-


jo em que as pessoas louvam


Nossa Senhora do Rosário, co-


nhecida como a santa dos hu-


mildes. A praça principal da ci-


dade, em frente à igreja ma-


triz, estava lotada. No meio do


povo, estavam Seu Pelé e o car-


rinho de pipoca.


Na sua cidade, Antônio Je-


sus da Costa talvez seja tão po-


pular quanto Edson Arantes


do Nascimento. Mas a vida


dos dois Pelés foi, e é, bem dife-


rente. Vindo de uma família


muito simples, os pais mora-


vam dentro de uma fazenda,


em condições análogas à escra-


vidão. O avô dele era escravo,


filho de escravos que tinham


obtido a alforria, mas não a li-


berdade. Pelé trabalha desde


os 14 anos, foi cortador de ca-


na, cozinheiro, vendedor de la-


ranja, bala e churrasquinho e,


há 40 anos, é pipoqueiro. Ou


melhor, “o pipoqueiro”.


Tudo o que vi e vivi nestes


últimos 20 anos rodando to-


dos os recortes deste País em


função do meu trabalho na TV


vem me transformando com


muita potência. Não consigo


passar por um problema e não


me sentir parte dele. E é da


simples observação da dinâmi-


ca da vida da família do Seu Pe-


lé que provoco a reflexão a se-


guir: no Brasil pré-pandemia,


enquanto “o mundo” discutia


inteligência artificial e carros


autônomos, um brasileiro cor-


reto, ético, honesto e fraterno,


de 65 anos de idade, há mais
de 40 casado com Maria Lúcia,
com três filhos, cinco netos e
um bisneto, que trabalha inin-
terruptamente há mais de
meio século, vivia com os 11
membros da família em uma
casa sem esgoto, sem portas,
sem reboco nas paredes, sem
dinheiro para consertar o fo-
gão que mal funciona, tocando
a vida adiante, com sua aposen-
tadoria, os trocados da pipoca
e mais R$ 169 mensais do Bol-
sa Família a que uma das filhas
tem direito. Isso está certo?
Não creio.
Em Boston, nos EUA, a 7,5
mil km dali, uma franco-ameri-
cana de 47 anos dedica-se a le-
cionar nas disputadas salas de
aula do Massachusetts Institu-
te of Technology o curso Alí-
vio à Pobreza e Economia do
Desenvolvimento e a dirigir,
na mesma universidade, o La-
boratório de Ação Contra a Po-
breza. Ela é a segunda mulher
a ganhar o Nobel de Econo-
mia. E é a mais nova a fazê-lo.
A conquista veio no ano passa-
do em parceria com o marido,
Abhijit Banerjee, e o colega Mi-
chael Kremer. Seu nome: Es-
ther Duflo.
Nas últimas décadas, o tra-
balho de Duflo tem iluminado
temas muito relevantes. Um
olhar sobre a necessidade de
ouvir e observar de perto os
mais pobres, de entender pro-
fundamente as necessidades e
os obstáculos enfrentados por
eles, para assim pensar como
podemos ajudá-los a seguir em
frente com mais oportunida-
des e escolhas.
O grande diferencial de Du-
flo é o estudo empírico de co-
mo as pessoas realmente pen-
sam e tomam decisões econô-
micas – um comportamento
que muitas vezes difere do que
preveem os modelos econômi-
cos tradicionais. Procurei Du-
flo na semana passada para dis-
cutir o maior problema do Bra-
sil: a desigualdade. Ou melhor:
as muitas desigualdades. Con-
tei a ela a história do Seu Pelé
e da maldita herança escravo-

crata que, até hoje, passados
300 anos, o País ainda não con-
seguiu endereçar. Pedi que ela
jogasse luz no futuro de famí-
lias como a dele, ela que tem
se dedicado com tanta compe-
tência e brilho a buscar solu-
ções práticas e inovadoras con-
tra a pobreza, como a renda ul-
trabásica universal.
Confira a seguir a primeira
entrevista da Nobel de Econo-
mia para o Brasil.

lA pandemia iluminou as enor-
mes desigualdades do Brasil:
desigualdade social, desigualda-
de digital, desigualdade educacio-
nal, desigualdade de acesso, de-
sigualdade de qualidade de aten-
dimento hospitalar, desigualdade
de acesso a crédito, desigualda-
de de oportunidades... uma imen-
sidão de desigualdades. Todo o
seu trabalho é focado nesse te-
ma. Como você está enxergando
o Brasil daí de Boston?
Nunca estive no Brasil, para
meu grande arrependimento.
Já tinha planejado, mas agora
não sei quando irá acontecer.
Mas sempre estudei o País
com muito interesse, porque
muitas das tensões e dos deba-
tes mundiais parecem ser en-
contrados no Brasil de forma
concentrada. A história do Bra-
sil é a de um crescimento mui-
to rápido, que, combinado
com um enorme aumento das
desigualdades, se torna social-
mente e politicamente insupor-
tável. Isso costuma levar a res-
postas populistas e, eventual-
mente, a políticas econômicas
irresponsáveis, o que no final
das contas interrompe o cresci-
mento do País. Então, em nos-
so primeiro livro de economia,
usamos o Brasil como exem-
plo. Quando alguém diz estar
interessado em gerar cresci-
mento econômico, essa pessoa
realmente deveria prestar aten-
ção no tecido social e não dei-
xá-lo explodir, pois, uma vez
que este explode, você perderá
inclusive toda a condição para
gerar crescimento. Quando o
Lula virou presidente, houve

um esforço de políticas volta-
das para os pobres. O Brasil
mostrou ao mundo que era
possível fazer programas co-
mo o Bolsa Família. Naquele
momento, você olhava o Brasil
e podia ver como uma econo-
mia se energiza criando con-
fiança aliada a projetos sociais.
Hoje o Brasil está rumando pa-
ra o lado oposto. É uma versão
ainda mais radical do que esta-
mos vendo nos EUA. E agora,
com a covid, novamente há
uma espécie de exceção brasi-
leira.

lNo Brasil, vivemos uma terrível
pobreza hereditária. Em seus tra-
balhos e estudos, você é uma voz
potente na defesa de uma Renda
Básica Universal. A meu ver, tra-
ta-se da melhor ideia para trazer
famílias, em países tão desiguais
como o Brasil, para a linha da
dignidade. Você pode falar um
pouco sobre isso?
O relato sobre a família do Seu
Pelé é poderoso e corresponde
a coisas que eu já vi no meu tra-
balho. São pessoas que lutam
com empenho, de uma manei-
ra empreendedora. Seu Pelé es-
tá vendendo pipoca, está fazen-
do o que pode, mas, sem aces-
so a mais capital ou a mais
oportunidades, dado o núme-
ro de pessoas na família dele, é
como se ele continuasse sem-
pre nas margens, prestes a cair
em uma situação mais desas-
trosa. Mesmo em um país co-
mo o Brasil, que não é pobre,
mas muito desigual, algumas
pessoas vivem em condições
semelhantes às vividas pelas
pessoas mais pobres do mun-
do. Então, o que você vê na
pandemia são pessoas que es-
tão nas margens da pobreza ex-
trema se afundarem dramatica-
mente, pois as oportunidades
desapareceram devido ao dis-
tanciamento social. E, então,
elas acabam caindo naquilo
que nós chamamos de “armadi-
lha da pobreza”, que é ficar po-
bre a ponto de não conseguir
alimentar as crianças adequa-
damente. Sair dessa situação é
realmente muito difícil, devi-

do a uma combinação de falta
de esperança com o senso de
dignidade perdido, como você
falou. Portanto, nesse contex-
to, se as pessoas tivessem aces-
so ao que chamo de “Renda Ul-
trabásica Universal”, pelo me-
nos elas teriam a garantia que
não morrerão de fome e de
que serão capazes de alimen-
tar seus filhos. Isso teria três
consequências. A primeira é
que elas não passariam fome.
A segunda é que elas continua-
riam consumindo e, portanto,
comprariam coisas de outras
pessoas pobres. Isso evitaria a
situação que estamos come-
çando a ver em muitos países
pobres, onde as crises econô-
micas temporárias devido à
quarentena estão se transfor-
mando em uma enorme crise
de demanda. E a terceira conse-
quência é que, se você sabe
que nunca morrerá de fome,
que sempre manterá sua digni-
dade, você terá alguma confian-
ça suficiente para sair e fazer
coisas. Então, pensamos que,
no geral, não é apenas a medi-
da certa a ser tomada, mas tam-
bém é a maneira eficaz de
transformar a sociedade. E tí-
nhamos feito essa proposta de
renda ultrabásica universal an-
tes mesmo da pandemia, co-
mo forma de lidar com situa-
ções de crise no nível indivi-
dual e também no nível econô-
mico. Então, eu acho que, para
muitos países, incluindo o Bra-
sil, seria apropriado que essa
política fosse implementada o
mais rápido possível.

lSomos da mesma geração. Es-
pero que o nosso legado, no futu-
ro, tenha sido ter tirado boas
ideias do papel e melhorado a
vida de muita gente. Mas, para as
boas ideias saírem do papel, é
necessário torná-las viáveis.
Quando discutimos a renda bási-
ca universal, com frequência é
levantada a questão de como fi-
nanciá-la. Como você avalia este
ponto? E a necessidade da auste-
ridade fiscal? Além disso, alguns
críticos afirmam que este tipo de
programa poderia levar as pes-

soas a não quererem trabalhar.
É comprovado através de diver-
sas experiências – em países
pobres, em países ricos e em
países de renda média, as pes-
soas que recebem apoio não
deixam de trabalhar. Isso in-
clui muitos países latino-ame-
ricanos de renda média e há
evidências perfeitamente rele-
vantes para o Brasil. Não há es-
se risco. Isso sempre é o me-
do, dizer que o mundo vai mal,
dizer que as pessoas são pre-
guiçosas, eu ouvi até no rádio
nos EUA dizerem que, com
um seguro-desemprego gene-
roso, ninguém vai querer ir de
volta ao trabalho. As pessoas
morrem de vontade de voltar
ao trabalho, querem prospe-
rar. É necessário superar essa
projeção vitoriana de nossos
setores sociais. Basta as pes-
soas lerem e respeitarem as
evidências.
A questão do financiamento é
mais sutil, porque a renda bási-
ca universal custa dinheiro. E
é por isso que diferenciamos
as propostas entre os países
pobres e os países ricos. O Bra-
sil é um caso interessante, por-
que é rico e pobre ao mesmo
tempo. É rico, mas com muitas
pessoas pobres. Para os países
com muitos pobres, o que reco-
mendamos é uma renda que se-
ja suportável fiscalmente, a
renda ultrabásica. A renda ul-
trabásica não é aquela suficien-
te para garantir uma vida de-
cente o tempo todo, mas um
valor capaz de evitar a fome e
a miséria completa. Portanto,
torná-la ultrabásica tem duas
implicações: a primeira é que
ela é mais barata; a segunda é
que as pessoas precisam fazer
um certo esforço todo mês, in-
do a um caixa eletrônico por
exemplo e colocando sua im-
pressão digital, algo fácil, mas
algo que requer um atendimen-
to. As pessoas que vão acessar
a renda ultrabásica, mesmo
que esteja disponível universal-
mente, são apenas aquelas que
de fato necessitam dela. Em
um país como o Brasil, se você
a fizer pequena, mas o suficien-

Uma conversa: Luciano Huck & Esther Duflo


‘Existem coisas que só o governo pode cuidar’


RENDA ‘ULTRABÁSICA’ PARA


ATENUAR IMPACTO DA PANDEMIA


Nobel de Economia, Esther Duflo diz que medida evitaria ‘armadilha da pobreza’ e deveria ser aplicada no Brasil


LUCIANO HUCK

Retrato. Seu Pelé
e a família: dia
a dia de batalha

Esther Duflo

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