O Estado de São Paulo (2020-05-31)

(Antfer) #1

Aliás,


André Jobim Martins ]


Pouco surpreenderá aqueles


que acompanharam a trajetória


de Jair Bolsonaro até 2018 a afir-


mação de que seu governo tem


dado uma atualidade espantosa


à mais famosa contribuição de


Sérgio Buarque de Holanda pa-


ra o pensamento brasileiro: o


“homem cordial”. Bolsonaro e


seu entourage são encarnações


quase ideais da mentalidade


descrita pelo historiador em


seu livro de estreia, Raízes do


Brasil (1936). Como uma de-


monstração exaustiva tomaria


proporções indevidas, ofereço


alguns indícios exemplares, es-


colhidos quase ao acaso. Fre-


quentemente acompanhado


em compromissos oficiais por


algum de seus três filhos adul-


tos, o presidente se refere às re-


lações públicas que mantém


com seus subordinados e asso-


ciados como “namoros” ou “ca-


samentos”. Seu ministro de Es-


tado da Educação resolve pes-


soalmente os problemas de ci-


dadãos que pedem sua ajuda pe-


lo Twitter. A perguntas de ou-


tros usuários da mesma rede so-


cial, o mesmo ministro respon-


de com insultos e ironias agres-


sivas. Mais recentemente, a ex-


secretária de Cultura do gover-


no declarou não ter se manifes-


tado sobre o falecimento de Al-


dir Blanc porque o músico não


era de suas relações pessoais. O


que há de cordial em tudo isso?


Cordial, isto é, relativo ao cora-


ção, não deveria ser algo um


pouco mais simpático?


Virtude. Do ponto de vista das


relações pessoais, sim. A já men-


cionada ex-secretária de Cultu-


ra, por exemplo, se refere ao pre-


sidente como um homem doce.


Talvez entre, nesse parecer, al-


guma verdade empírica. Mes-


mo que Bolsonaro tenha dito a


uma deputada que ela não mere-


cia ser estuprada por ser, em


sua opinião, feia demais para is-
so, o convívio que ele terá tido
com Regina Duarte – até recen-
temente, pelo menos – pode ter
sido perfeitamente agradável.

A cordialidade é uma virtude
familiar. Ela é a lógica que rege,
conforme a lapidar formulação
de Raízes do Brasil, “os laços de
sangue e de coração”. Num país
de formação difícil e violenta,
onde o Estado praticamente
não se fazia sentir, a não ser co-
mo presença importuna, a famí-
lia conservou um prestígio e
uma preponderância na vida na-
cional que, noutros países, são
coisas de um passado remoto.
Não admira que, como disse Ser-
gio Buarque, “as relações que se
criam na vida doméstica” te-
nham fornecido “o modelo obri-
gatório de qualquer composi-
ção social entre nós”.

Hegel. Cordiais nós somos, ou
deveríamos ser, com nossa fa-
mília estendida. Fora dela, na es-
fera pública, espera-se uma ati-
tude mais comedida e racional.
Na condução dos negócios do
Estado, segundo nossas leis, de-
veria imperar o princípio da im-
pessoalidade. O homem cor-
dial, porém, não tem uma cons-
tituição mental compatível
com tais princípios. Ao propor a
cordialidade como metáfora pa-
ra a mentalidade brasileira, Sér-
gio Buarque ecoa Hegel, para
quem a “lei do coração” precisa
abandonar a obsessão unilate-
ral de sua singularidade para se
superar e alcançar uma com-
preensão menos egocêntrica
do mundo ético, que leve em
conta e existência de outros co-
rações que não o próprio (Feno-
menologia do Espírito, §§367-
380). Nesse caso, seria preciso
superar uma visão de mundo go-
vernada pelos afetos – pelo
amor, mas também pelo ódio.
O político “cordial” não apenas
contraria os princípios éticos es-
perados de autoridades do Esta-
do, mas manifesta, além disso,
uma radical incompreensão de
qualquer ideia de impessoalida-

de na esfera pública. Não há, em
seu horizonte intelectual, a
ideia de uma república em senti-
do forte. Quando se quer fazer o
bem, fazem-se favores a indiví-
duos. Não há associações políti-
cas, mas “namoros” e “casamen-
tos”. Nas “separações” públi-
cas, como nas privadas, aflora-
rão, naturalmente, os afetos e
comportamentos negativos cor-
respondentes.

Defunto. Nada disso é novo. A
cordialidade é daqueles temas
que, de tempos em tempos, ci-
clicamente, voltam a assom-
brar a vida brasileira. Quando
pensamos que o homem cor-
dial se tornou, finalmente, aque-
le “pobre defunto” que Sérgio
Buarque acreditou ter enterra-
do já em 1947 em carta a Cassia-
no Ricardo, ele volta, sanguí-
neo, ao centro de nossa arena
política. A dificuldade em im-
por uma racionalidade política
e burocrática que supere o patri-
monialismo cordial ainda faz
parte, infelizmente, da agenda
brasileira. Muito menos discuti-
dos do que a dimensão política
desse estilo mental são seus cor-
relatos na vida econômica. Em
Raízes do Brasil eles estão esboça-
dos, mas foram melhor desen-
volvidas somente na disserta-
ção de mestrado que Sérgio
Buarque defendeu na Escola Li-
vre de Sociologia e Política de
São Paulo em 1958, intitulada
Elementos Formadores da So-
ciedade Portuguesa na Época
dos Descobrimentos, texto
inédito conservado no arquivo
da Unicamp, qual algumas pas-
sagens foram publicadas em
1958 e 1959 no suplemento lite-
rário do Estadão. Poucos, mes-
mo entre os estudiosos da obra
de Sérgio Buarque, tiveram a
oportunidade de ler esse estu-
do. Nele, as linhas que orientam
os dois primeiros capítulos de
Raízes do Brasil (Fronteiras da
Europa e Trabalho & Aventura)
são retomadas e desenvolvidas,
enfatizando os traços culturais
que formavam a cultura portu-
guesa na época da expansão ma-

rítima e a ética econômica gesta-
da naquele contexto. Não é
uma continuação de Raízes do
Brasil, mas uma introdução ex-
pandida às dinâmicas históri-
cas que dariam origem, já deste
lado do Atlântico, ao “homem
cordial”. O texto se ocupa algu-
mas vezes do Brasil, mas sobre-
tudo como prolongamento da
sociedade portuguesa. Mesmo
assim, não é difícil perceber que
Sérgio Buarque escreveu esse
trabalho pensando em seu país.

Escravos. Construtores de um
império colonial que, até a des-
coberta do ouro mineiro, prati-
camente só estabelecia povoa-
ções duradouras “junto à fralda
do mar”, os portugueses se pare-
ciam em sua expansão ultrama-
rina antes com os antigos fení-
cios do que com seus vizinhos
espanhóis, que rapidamente
ocuparam grande parte do inte-
rior da enorme porção que lhes
coube, segundo determinação
papal, do continente america-
no. Os portugueses espelharam
na América, em boa medida,
aquela sociedade onde viviam,
no extremo ocidente da Euro-
pa. Sérgio Buarque traça o retra-
to de um Portugal que, no sécu-
lo 16, se pareceria muito mais
com o Brasil do século seguinte
(e, de certa forma, dos dias de
hoje) do que com o que se iria
encontrar, à mesma época, na
metrópole. Segundo consta em
fontes de época, no começo do
século 17, cerca de um décimo
da população
de Lisboa se-
ria de escravi-
zados africa-
nos, que de-
sempenha-
vam trabalhos
manuais pesa-
dos, incluindo
a limpeza das
ruas, além de
levarem água
e comida às re-
sidências. Ha-
via também
mão de obra
escravizada
oriunda de outras partes: os
“japões e chinas” (“gente de
grande intelecto” e excelentes
cozinheiros, segundo depoi-
mento coevo) e os “mouros da
Índia”. O Brasil seria, nesse sen-
tido, um “imenso Portugal”
muito mais herdeiro dessa for-
ma de sociedade do que a pró-
pria metrópole, que atualmen-
te se reconhece com muito me-
nos facilidade nesse quadro de
diversidade cultural, desigual-
dade e economia predatória.

Ética. Os elementos que for-
maram esse “pequeno Brasil”
europeu do século 13 até o 16 se
organizaram de modo a produ-
zir uma ética econômica essen-
cialmente quantitativa – virtu-
des correspondentes a uma cul-
tura gestada em meio ao conta-

to entre nobres que se mistura-
vam com mouros e judeus bem
versados em tratos comerciais.
Ali, em meio à Reconquista pe-
ninsular e, depois, ao espectro
da Reforma protestante, era
compreensível que os grupos
dominantes desejassem elimi-
nar os elementos que destoas-
sem do catolicismo. Eram espe-
cialmente encarecidas as restri-
ções morais que se levantavam
contra as atividades normal-
mente associadas a mouros e ju-
deus. Artesãos eram geralmen-
te mouros, e quando esses fo-
ram expulsos, as manufaturas
decaíram sensivelmente. Num
país onde o prestígio social au-
mentava tanto quanto mais se
comprovasse a “limpeza de san-
gue” e a distância de tudo quan-
to sugerisse alguma transigên-
cia com os ímpios, surgiu uma
ética econômica conformada
por virtudes cavalheirescas –
virtudes guerreiras, que admi-
tiam saques e pilhagens, mas
não o trabalho manual. A econo-
mia, escreve Sérgio, era domina-
da por atividades “de uma es-
pécie antes predatória do que
produtiva”. A agricultura portu-
guesa – onde empregou-se, du-
rante muito tempo, o trabalho
de escravizados africanos – era
minguada e tecnicamente pri-
mária. “A parcela mais ativa da
população se adensava junto às
praias, às angras, às bocas dos
rios, entregue à faina do comér-
cio, e também dos misteres da
navegação, das pescarias, do trá-
fego das sali-
nas”. O inte-
rior era uma
“desolada pai-
sagem, com
uma gente ra-
la e miserável,
vivendo em
furnas, quase
à maneira de
trogloditas”.
Um viajante
do século 15
conta que, ten-
do entrado
em Portugal
pelo norte da
Espanha, não encontrou estra-
da alguma e passou fome e sede
na natureza semidesértica, até
encontrar a cidade de Braga.
Com a expulsão dos mouros e
judeus, declinou também a reti-
dão nos tratos comerciais que
lhes era própria e por todos re-
conhecida, mas que os cristãos
não cultivavam e até evitavam,
como seria de esperar num con-
texto onde não convinha des-
pertar a atenção do Santo Ofí-
cio. Lê-se que era comum entre
criadores portugueses tosquiar
as ovelhas na chuva ou sobre so-
lo encharcado, inflando o peso
e, com isso, o preço da lã, mes-
mo sabendo que o procedimen-
to estragaria o produto. Outros
punham pedras nas caixas. Ati-
tudes inexplicáveis para quem
esperasse estabelecer um rela-

cionamento duradouro com fre-
gueses.

Patrão. Esses apontamentos
de Sérgio Buarque ajudam, tal-
vez, a melhor compreender al-
guns elementos de nossa vida
econômica. Por exemplo, a avi-
dez de nosso setor patronal em
“flexibilizar” direitos trabalhis-
tas, sem que se ofereça qual-
quer contrapartida relevante
de investimento na formação
técnica ou no bem-estar da for-
ça de trabalho, ou a predileção
tradicional da burguesia brasi-
leira por políticas econômicas
propícias ao rentismo. Do mes-
mo modo, esse fundo cultural
ajudaria a esclarecer as razões
de um agronegócio que apoiou
de primeira hora, e com entu-
siasmo, a eleição de um presi-
dente que, tendo afrouxado as
restrições à expansão da frontei-
ra agrícola, pode ter prejudica-
do os interesses da mesma clas-
se no balcão de negócios ao dei-
tar por terra a imagem interna-
cional que o país construiu des-
de a redemocratização – para
não falar, naturalmente, do pre-
juízo ecológico potencialmen-
te planetário. Entendem-se me-
lhor, ainda, aquele investidor
que já se mostra despreocupa-
do com a pandemia corrente
porque essa, supostamente, já
não afeta as classes altas, assim
como o financista um pouco
mais sofisticado que disse, em
linguagem mais sutil, que os ar-
roubos autoritários presiden-
ciais pouco importam, desde
que garantidas as reformas es-
truturais, acrescentando que es-
tava otimista com a economia
porque, com uma quantidade
sobrante de desempregados,
“podemos crescer sem pressão
inflacionária”. Resulta mais
compreensível, ainda, a estra-
nha racionalidade que presidiu
a ação dos empresários que re-
centemente apareceram masca-
rados na Suprema Corte para
pedir, cordialmente, que a Justi-
ça (ou o seu “chefe”) reabrisse
as porteiras do Brasil. Enten-
dem-se melhor, finalmente, os
milhões de brasileiros de vida
bem mais modesta que estão
dispostos a espalhar mentiras e
relativizar mortes, ignorando o
consenso científico e econômi-
co internacional. A muitos des-
ses, ricos ou não, talvez não
ocorra que, assim como tos-
quiar ovelhas na chuva pode ser
lucrativo apenas no curto pra-
zo, acelerar a “reabertura” do
Brasil pode dar sobrevida a al-
guns CNPJs, apenas para con-
tratar, no longo prazo, uma re-
cessão muito maior e prolonga-
da, para não falar na perda de
“capital humano”. Não abando-
nam seu líder, que amam, como
a um parente, que lhes parece
doce, singelo, familiar.

]
É HISTORIADOR

O ETERNO RETORNO


DO HOMEM CORDIAL


INÉDITO


Literatura*


Texto conservado no arquivo da Unicamp retoma conceito


de Sérgio Buarque de Holanda do livro ‘Raízes do Brasil’


Herança portuguesa. Texto redescoberto se ocupa do Brasil, mas sobretudo como prolongamento da sociedade portuguesa; mesmo assim, o foco de Sérgio Buarque é mesmo seu país


ARQUIVO PESSOAL/ DO LIVRO ‘ESCRITOR COLIGIDOS’

TEXTO DESCOBERTO NÃO


É UMA CONTINUAÇÃO DE


‘RAÍZES DO BRASIL’, MAS


UMA TESE EXPANDIDA


NUM PAÍS DE FORMAÇÃO


VIOLENTA, A FAMÍLIA


CONSERVOU PRESTÍGIO


NA VIDA NACIONAL


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H12 Especial DOMINGO, 31 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

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