O Estado de São Paulo (2020-05-31)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 31 DE MAIO DE 2020 Especial H13


O Fim da Classe


Média analisa o


tsunami populis-


ta que ameaça o


Ocidente, visível


na vitória do Bre-


xit, nos discursos


de Trump e Bol-


sonaro e na as-


censão de radi-


cais de direita na


Europa. No livro,


Christophe Guil-


luy condena o


desprezo da elite


pelas classes po-


pulares e fala dos


ressentimentos que podem levar a


uma nova ordem mundial em que a


classe média desapareça e só fiquem


duas categorias sociais: os ricos e os


miseráveis. Haveria, segundo as pala-


vras de Guilluy, um mundo vulcânico


prestes a entrar em erupção próxima.


Crises políticas e gentrificação das


cidades seriam dois sinais da agonia


de um modelo social em crise desde


o começo do século.


Aliás,


O romance As
Sobras de Ontem
se divide entre
dois protagonis-
tas que represen-
tam estirpes dife-
rentes dentro da
elite brasileira:
Egydio Brandor
Poente vem de
uma família tra-
dicional, herda a
empresa do pai
e se alia a políti-
cos corruptos, o
que o leva à ca-
deia e, posterior-
mente, à prisão domiciliar. Maria
Luiza Alvorada vem de uma classe
média que tenta se passar por aristo-
cracia e aprende com a avó todos os
truques de uma verdadeira arrivista
social. Com referências que vão do
cinema à matemática, o trabalho de
estreia de Marcelo Vicintin faz uma
crítica repleta de ironia à pequena
parcela que ocupa o topo da pirâmi-
de social brasileira.

Escrita em 1988
por encomenda
do Burgtheater
de Viena, Praça
dos Heróis é uma
crítica violenta
do austríaco Tho-
mas Bernhard ao
negacionismo do
passado. No
apartamento de
um professor
que se matou,
suas filhas ten-
tam convencer o
tio a assinar uma
petição em defe-
sa de um território onde a família
possui uma propriedade. Paralela-
mente, duas empregadas preparam o
jantar funerário, lamentando a mor-
te do patrão. A ação da peça se passa
numa Áustria que via ressurgir o es-
pectro do nazismo por meio de gru-
pos de extrema direita que fizeram
Bernhard dar declarações públicas
contra a inoperância das autoridades
em coibir suas manifestações.

Sérgio Augusto


Antes que vingue entre nós a


guerra civil diariamente prometi-


da pelo presidente, seus reben-


tos e alguns dos militares de pija-


ma que os cercam, com mais ên-


fase e frequência pelo general


Augusto Heleno, aprendamos o


máximo que pudermos com as


lições da História. Esqueçam


um pouco a Espanha de 1936 e


também o movimento constitu-


cionalista de 1932. Concentrem


sua atenção na Indonésia de


meados da década de 1960.


Aquela sim foi a guerra civil mo-


delo da ala mais paleolítica de


nossas forças armadas.


Para os que a esqueceram Vin-


cent Bevins, jornalista california-


no com ampla experiência co-


mo correspondente em Lon-


dres, no Brasil e Sudeste Asiáti-


co, escreveu um livro, longamen-


te pesquisado, densamente in-


formado e muito bem escrito,


há pouco editado pela Public Af-


fairs Book, nos EUA, The Jakarta


Method (O Método Jacarta), com


um subtítulo que em inglês ocu-


pa 15 palavras e 105 caracteres: A


Cruzada Anticomunista de


Washington e o Programa de As-


sassinatos em Massa que Configu-


rou o Mundo em que Vivemos.


Tem 320 páginas, custa US$ 28 e


ainda não foi traduzido.


Aos que julgam conhecer o su-


ficiente sobre a carnificina na In-


donésia – o maior banho de san-


gue do século passado até o tira-


no Pol Pot promover o seu no


Camboja–, adianto que em ne-


nhum outro estudo sobre o te-


ma, nem no relativamente recen-


te The Killing Season, de Geof-


frey Robinson, encontrarão um


mapeamento tão completo da ja-


cartanização do planeta entre


1945 até nossos dias, com dados


precisos sobre a atuação de mili-


tares brasileiros durante a dita-
dura, a partir da Operação Con-
dor, consórcio macabro unindo
seis países do Cone Sul, que dei-
xou um saldo de mais ou menos
80 mil mortos, entre os anos
1970-80. Se brasileiro tem me-
mória curta para sua própria his-
tória, imagine para a história de
um país tão distante daqui co-
mo aquela nação arquipélago do

Sudeste Asiático. Muitos de nós
ainda confundem Suharto com
Sukarno, os dois polos da guerra
civil indonésia.
Sukarno proclamou a indepen-
dência da Indonésia do domínio
holandês em agosto de 1945,
mas que só foi sacramentada em


  1. De olho na região e com ca-
    raminholas geopolíticas vis-à-
    vis China, Washington deu cor-


da a Sukarno. Considerava-o um
líder independente, impermeá-
vel à influência comunista.
Aí os comunistas, à frente de
um partido consolidado e forte,
começaram a ganhar eleições. E
os EUA, com o republicano Eise-
nhower na Casa Branca, passa-
ram a ver o presidente indoné-
sio com outros olhos.
Liberal, cosmopolita, presti-

giado internacionalmente,
Sukarno estimulou o diálogo glo-
bal e solidário entre todos os paí-
ses e foi um enérgico combaten-
te do que ainda restava do colo-
nialismo europeu, pautas que
orientaram a histórica Conferên-
cia Afroasiática por ele organiza-
da em Bandung, em 1955. Após-
tolo do não alinhamento auto-
mático (nem Casa Branca, nem
Kremlin) e da autodetermina-
ção dos povos, entrou na lista ne-
gra dos americanos por suas rela-
ções amistosas com a China
maoista.
Dois anos antes da conferên-
cia em Bandung, Washington de-
ra início a uma sucessão de inter-
venções criminosas em países
aliados, sempre com a desculpa
de “combate ao comunismo” e
todas fomentadas e articuladas
pelos diabólicos irmãos Dulles,
John Foster Dulles, no Departa-
mento de Estado, e Allen Dulles,
diretor da CIA. O primeiro a cair
foi o premiê Mossadegh, porque
ousara nacionalizar o petróleo
iraniano, e, no ano seguinte, o
presidente democraticamente
eleito da Guatemala, Jacobo Ár-
benz. A intervenção na Guatema-
la foi o primeiro putsch bem-su-
cedido da CIA na América Lati-
na. Títere de Washington e da
United Fruits, Carlos Castillo Ar-
mas assumiu o poder, deixando
um saldo de 200 mil mortos e
uma extensa casta de outros dita-
dores fardados que nunca entre-
garam a rapadura.
As articulações para derrubar
Sukarno começaram em 1954,
com movimentos de rebeldes e
mercenários arregimentados pe-
la CIA, que só atingiriam seu ob-
jetivo 11 anos depois. Sintam-se
à vontade para traçar os parale-
los cabíveis com o golpe civil-mi-
litar que o suicídio de Vargas
aqui adiou por 10 anos, pois são
pragas com os mesmos compo-
nentes genéticos.
Suharto, o corrupto usurpa-
dor de Sukarno, governando

com a assistência de milhares de
oficiais e policiais indonésios
treinados e doutrinados nos
EUA e milicianos armados e en-
venenados pelas baboseiras
pseudofilosóficas da Pancasilia,
a doutrina oficial da “Nova Or-
dem”, comandou a ferro e fogo
a caça aos comunistas e demais
desafetos do regime, sem exclu-
são dos liberais desonestamente
infamados como comunas. En-
tre 500 mil e dois milhões de in-
donésios perderam a vida de-
pois de barbaramente tortura-
dos, no que ficou mundialmente
conhecido como “Operação Ja-
carta”.No capítulo dedicado às
repercussões da barbárie no Bra-
sil e no Chile, Bevins lembra as
pichações que, em 1973, meses
antes da derrubada de Allende,
apareceram nos muros de San-
tiago, com dizeres do tipo
“Yakarta viene!”. E Jacarta de fa-
to chegou. Na mesma época, um
jornal carioca noticiou que um
grupo de militares da linha dura
fizera uma lista de 30 mil brasi-
leiros, tidos como inimigos do
regime, para executá-los ao esti-
lo jacartista. Ao ler a notícia, Mil-
lôr comentou comigo, na reda-
ção do Pasquim: “Se eu não esti-
ver nessa lista, me mato de des-
gosto.”
Cabalístico ou não, 30 mil foi
o número de desafetos que o
nosso capitão presidente, quan-
do ainda candidato, ameaçou
trucidar se chegasse ao poder.
Consultei Bevins sobre as chan-
ces de um autogolpe neofascista
na atual conjuntura. Embora
considere Bolsonaro um “herdei-
ro direto de uma tradição que vê
o assassinato em massa como
uma forma legítima de resolver
problemas políticos”, o autor de
O Método Jacarta não crê que
seu governo disponha de apoio
nem de competência para conso-
lidar um controle ditatorial ou
reproduzir os tipos de atrocida-
des que vimos ao longo do sécu-
lo 20. Quem sobreviver verá.

Tarabas é um jo-
vem russo de boa
família que é obri-
gado a deixar a
universidade por
atividades contra
o regime czaris-
ta. Vai passar um
tempo nos EUA
e retorna para
lutar na Grande
Guerra, até que
chega a Revolu-
ção e esse espíri-
to bélico é trans-
formado em ódio
por seus seme-
lhantes, a ponto de praticar um ato
de violência contra um judeu indefe-
so. Detalhe: Joseph Roth era judeu e
fez um esforço gigantesco para se co-
locar no lugar de um antissemita. Se
o seu livro Jó recorria à linguagem e
personagens bíblicos para refletir so-
bre as razões do sofrimento, seu Tara-
bas não é distinto ao tratar da desola-
ção num mundo que força indivíduos
a segregar o diferente.

O artista belga
Marcel Brood-
thaers era um
poeta sem leito-
res. Então, deci-
diu reunir as có-
pias não vendi-
das de seu últi-
mo livro numa
assemblage feita
de papel, gesso,
bola de plástico e
madeira. O en-
saio do filósofo
Jacques Rancière
é sobre o encon-
tro dele com a
poesia de Mallarmé, expressa numa
mostra em que o artista fez quatro
versões diferentes do poema Um Lan-
ce de Dados Jamais Abolirá o Acaso. Pa-
ra Rancière, não se trata de poesia
nem arte visual, mas um enigma que
expressa a arte contemporânea e seus
riscos. O filósofo defende que é preci-
so deixar de ouvir a grande massa pa-
ra ouvir pessoas que têm um discurso
pessoal, intransferível.

MASSACRE DE JACARTA


É LEMBRADO EM LIVRO


Cultura*


Estante*


Memorial. Escultura do artista australiano Dadang Christanto, tributo aos mortos em 1965


O assassino em
série que descre-
ve a brutalidade
dos crimes que
comete em seus
romances poli-
cialescos; o pa-
dre insuspeito
que se deita
com rapazes des-
conhecidos na
noite recifense;
o matador de
aluguel que se
recusa a matar a
própria cliente.
Esses são alguns
dos personagens que se esparra-
mam pelos contos de O Espetáculo
da Ausência, livro de estreia do escri-
tor e crítico Ney Anderson. Compos-
ta de 33 narrativas breves, com in-
trodução de Raimundo Carrero e
prefácio de Luiz Antônio de Assis
Brasil, a obra esmiúça dramas bas-
tante contidos em uma Recife urba-
na e contemporânea, com seus per-
sonagens marginais.

A literatura de


William Morris


(1843-1896), ba-


seada em clássi-


cos medievais,


inspirou autores


dos mais diver-


sos no século 20,


do moderno Ja-


mes Joyce ao fan-


tástico J.R.R.


Tolkien. Morris,


no entanto, tam-


bém foi funda-


mental para o


livro enquanto


produto físico.


Como designer têxtil, o intelectual


britânico fundou, em 1891, a Kelms-


cott Press e foi um dos pioneiros da


editoração. Com edição de Gustavo


Piqueira, o estudo William Morris –


As Artes do Livro mostra como esse


objeto se desenvolveu na Inglaterra


e é de grande valia em tempos de cri-


se, nos quais um projeto gráfico sofis-


ticado pode ser a linha divisória en-


tre sucesso e fracasso editorial.


O romance A Ca-
sa Holandesa par-
te da ascensão e
queda de uma
família bem-su-
cedida no ramo
de tabaco para
narrar a saga de
cinco décadas
de dois irmãos
largados à pró-
pria sorte. Vin-
do dos Países
Baixos depois da
2ª Guerra Mun-
dial, o empresá-
rio Cyril Conroy
faz fortuna nos Estados Unidos e
constrói uma casa que deveria ser o
símbolo de seu sucesso, mas acaba
se tornando o epicentro da derroca-
da familiar. O livro de Ann Patchett,
autora americana premiada em
2002 com o PEN/Faulkner Award, é
narrado por Danny, um dos filhos
de Cyril, que se vê abandonado e
tendo de sobreviver com seu irmão
depois que sua família acaba.

Embora José
Luís Peixoto seja
um dos mais ce-
lebrados escrito-
res portugueses,
o início de seu
livro O Caminho
Imperfeito – lan-
çado em 2017
em Portugal e
agora no Brasil
–, com uma frase
mórbida, lembra
muito os incipts
de dois roman-
ces franceses, o
clássico O Estran-
geiro de Albert Camus e o contempo-
râneo Canção de Ninar de Leila Slima-
ni. “Numa das caixas de plástico, es-
tava a cabeça de um bebê.” Com capí-
tulos ágeis, Peixoto empreende uma
narrativa com ritmo de thriller poli-
cial, mas em um registro entre a pro-
sa poética e o romance de viagem,
para descortinar o mistério de estra-
nhas partes de corpos encontradas
em pacotes na Tailândia.

Logo que a pan-
demia provocada
pelo novo coro-
navírus obrigou
boa parte da so-
ciedade a se tran-
car em isolamen-
to, a editora Boi-
tempo reuniu
textos de autores
como Boaventu-
ra de Sousa San-
tos, Angela Davis
e Naomi Klein
produzidos no
calor do momen-
to na coleção
Pandemia Capital, composta apenas
por e-books. O ensaio A Arte da Qua-
rentena para Principiantes, do psicana-
lista Christian Dunker, dialoga direta-
mente com a realidade brasileira na
medida em que o País vai se tornan-
do gradativamente o epicentro da
doença no mundo. Dunker fala sobre
medo, ansiedade e solidão, e aborda
as novas configurações sociais e fami-
liares decorrentes do isolamento.

GOLPES


O FIM DA
CLASSE MÉDIA
Autor:
Christophe Guilluy
Editora.: Record
R$ 59,90

A ARTE DA
QUARENTENA...
Autor:
Christian Dunker
Editora: Boitempo
R$ 15

PRAÇA DOS
HERÓIS
Autor:
Thomas Bernhard
Editora: Temporal
R$ 65

AS SOBRAS DE
ONTEM
Autor:
Marcelo Vicintin
Ed.: Cia. das Letras
R$ 59,90

SOBRE AS
ARTES DO LIVRO
Autor:
Gustavo Piqueira
Editora: Ateliê
R$ 160

O ESPAÇO DAS
PALAVRAS
Autor:
Jacques Rancière
Editora: Relicário
R$ 35

O ESPETÁCULO
DA AUSÊNCIA
Autor:
Ney Anderson
Editora: Patuá
R$ 40

A CASA
HOLANDESA
Autora:
Ann Patchett
Ed.: Intrínseca
R$ 54,90

O CAMINHO
IMPERFEITO
Autor:
José Luís Peixoto
Ed.: Dublinense
R$ 44,90

Guerra civil na Indonésia, em 1965, modelo da ala paleolítica


de nossas forças armadas, é o tema de ‘The Jackarta Method’


DADANG CHRISTANTO/NATIONAL GALLERY AUSTRALIA

TARABAS,
UM HÓSPEDE
NESTA TERRA
Aut.: Joseph Roth
Ed.: Estação
Liberdade
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