O Estado de São Paulo (2020-06-01)

(Antfer) #1

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A6 Política SEGUNDA-FEIRA, 1 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Guilherme Evelin


Para Marcos Nobre, professor
de Filosofia Política na Universi-
dade de Campinas (Unicamp) e
presidente do Centro Brasileiro
de Análise e Planejamento (Ce-
brap), a fidelidade do presidente
Jair Bolsonaro a suas “convic-
ções autoritárias” o levaram a
instituir um “governo de guerra”
em reação à pandemia do coro-
navírus. Nobre acaba de lançar o
e-book Ponto Final- A Guerra de
Bolsonaro contra a democracia (E-
ditora Todavia, 80 páginas, R$
30). Segundo ele, a ação do Su-
premo Tribunal Federal contra
integrantes do “gabinete do
ódio” foi a reação mais efetiva
das instituições, até aqui, para
barrar esse “projeto autoritário”.


lO senhor sustenta que o presi-
dente Jair Bolsonaro segue uma
lógica política e que o método


dele é caos. Que lógica é essa?
Todas as reações de Bolsonaro
têm a ver com a fidelidade a
suas convicções autoritárias.
Nisso, ele é um político. Nor-
malmente, políticos autoritá-
rios não são tomados como
bufões, burros, loucos até que
fazem o estrago quando conse-
guem implantar o autoritaris-
mo que perseguem. Chamá-lo
de burro ou louco reforça Bol-
sonaro, na medida que o proje-
to dele é desobrigar as pessoas
de pensar. Também o desres-
ponsabiliza porque um burro
ou um louco não é responsável
pelos seus atos. Por fim, refor-
ça a imagem que o Bolsonaro
tenta passar de ser um não-po-
lítico. A gente precisa fazer um
esforço para entender a racio-
nalidade tétrica de Bolsonaro
para tentar combatê-la.

lQue racionalidade orientou o
presidente a instituir um “gover-
no de guerra”, em vez de um “go-
verno de união nacional”, como
fizeram líderes de outros países?
Bolsonaro não fez isso porque
ele se elegeu como um líder an-
tissistema. E, como todo líder
antissistema autoritário, o ob-

jetivo dele é destruir o siste-
ma, e não geri-lo. Uma caracte-
rística importante do Bolsona-
ro é que, para ele, o sistema é a
mesma coisa que a democra-
cia. Para ele, a verdadeira de-
mocracia é a ditadura militar.
Quando há a pandemia, você
precisa gerir o sistema como
se estivesse numa situação de
guerra, reorganizar os ministé-
rios, a produção industrial, fa-
zer um plano que envolva to-
dos os poderes. Mas, se fizesse
isso, ele abriria mão do seu pro-
jeto autoritário que estava só
no início até a chegada da pan-
demia. Na minha leitura, o pri-
meiro mandato seria de des-
truição das instituições demo-
cráticas. Num segundo manda-
to, ele iria implantar, de fato, o
autoritarismo.

lNa semana passada, o Supre-
mo Tribunal Federal desenca-
deou uma operação da Polícia
Federal, como parte do inquérito
sobre fake news, contra integran-
tes do “gabinete do ódio”. Qual é
a eficácia desse tipo de ação por
parte das instituições, já que ela
faz parte de uma investigação
controversa, desde o seu início,

num período que o senhor carac-
teriza no livro como de “colapso
institucional”?
Uma instituição estar em co-
lapso não significa que ela não
está funcionando. Quer dizer
que está funcionando em con-
dições extremas, muitas vezes
de maneira disfuncional, sem
cumprir seus objetivos. O in-
quérito das fake news é um
exemplo perfeito para demons-
trar esse colapso institucional.
Na sua origem, esse inquérito
foi classificado, quase unani-
memente entre os juristas, co-
mo algo inédito e sem amparo
na legislação. Isso é um indí-
cio de colapso institucional.
Mas o colapso maior ocorre
quando Bolsonaro tenta se
apossar da Polícia Federal,
com a ideia de que um órgão
de Estado é um instrumento
do governante. O ministro Ale-
xandre de Moraes foi o primei-
ro a tomar uma atitude efetiva
para barrar o projeto autoritá-
rio de Bolsonaro. Foi o primei-
ro que não fez nota de repú-
dio, manifesto, reunião virtual
e agiu para atingir essa rede de
desinformação, calúnia e difa-
mação, pilar de sustentação de
Bolsonaro. O ministro Alexan-
dre de Moraes foi direto na fe-
rida e usou mecanismos insti-
tucionais. Nós não podemos
combater com armas normais
uma situação anormal.

lDepois da ação do STF, Bolso-
naro elevou a retórica de confron-
tação, disse que não iria cumprir
“ordens absurdas”, e seu filho
Eduardo falou em ruptura institu-
cional. Como avalia a possibilida-
de de haver essa ruptura?
Nessa escalada retórica, há
um lado diversionista, que é ti-

rar o foco da pandemia, por-
que Bolsonaro sabe que vai ser
responsabilizado pela falta de
resposta do País, pela recessão
econômica e pelo agravamen-
to das duas pela crise política
que ele produziu. O outro lado
é: qual é a probabilidade de is-
so acontecer? No momento,
como golpe organizado, ainda
parece baixa. Isso não impede
que haja atos descoordenados
e isolados por parte de uma ba-
se fanática de Bolsonaro, arma-
da e militarista.

lO senhor se refere no livro à
grande presença de militares em
funções na máquina pública fede-
ral como um “partido militar”,
que ajuda a vertebrar o governo,
pela falta de partido e quadros do
bolsonarismo. Como vê o papel
das Forças Armadas diante das
ameaças de ruptura?
A parte dos militares que acei-
tou ir para o governo, da ativa
ou da reserva, representa um
movimento ansiado há muito
tempo por eles, que partici-
pam da vida política brasileira
desde a proclamação
da República. Os mili-
tares sentiram que,
após a redemocratiza-
ção, foram alijados
dos círculos de deci-
são política por 35
anos. Então, qual foi a
estratégia das Forças
Armadas? Primeiro, re-
cuperar sua imagem,
que estava muito des-
gastada no final da di-
tadura militar. Em se-
gundo lugar, investir
muito em formação,
especialmente das pa-
tentes superiores. Há
uma parte relevante
das Forças Armadas
que diz que os milita-
res querem participar
de governos civis, de-
mocráticos, como
quaisquer outros inte-
grantes de institui-
ções de Estado. É cla-
ro que tem uma parte que
acha que o período do regime
militar é o melhor modelo pa-
ra o País. Os militares não são
um bloco unitário. É preciso
pensar nessas divisões inter-
nas porque não haverá solu-
ção para afastar o risco autori-
tário representado por Bolso-
naro sem uma negociação
com as Forças Armadas. Não
há também saída sem que ela
passe pelo vice-presidente Ha-
milton Mourão.

lPesquisas recentes mostram
que Bolsonaro conserva o apoio
de cerca de um terço da popula-
ção. Sua estratégia pode estar
dando certo?
Desde o início do governo Bol-
sonaro, houve uma divisão do

eleitorado em três terços: um
terço de aprovação, um terço
de rejeição e um terço que
nem aprova nem rejeita. Isso
levava a uma lógica que imobi-
lizava a política brasileira,
porque nenhum dos terços
conversava com outro. Cada
terço só fazia esforço para fi-
delizar seu próprio terço. Isso
era algo que estava levando
Bolsonaro à reeleição porque
ele vive também da divisão do
campo democrático. As pes-
quisas mostram que foi rom-
pida essa lógica, porque hou-
ve um aumento da rejeição a
Bolsonaro e uma diminuição
da parcela que não o aprova
nem o rejeita. Acho que isso é
uma tendência e que o apoio
a Bolsonaro tende a se redu-
zir ao núcleo mais fanático.
Ele é um presidente que cami-
nha para a inviabilidade. O go-
verno de guerra está servindo
para ele ganhar tempo, em ci-
ma de uma pilha de cadáve-
res, para negociar com o Cen-
trão na Câmara para que não
seja aberto um processo de
impeachment.

lO apoio do Centrão é
firme?
O Centrão apoia qual-
quer governo até que
ele se inviabilize.

lO senhor diz que ain-
da não é o momento do
impeachment de Bolso-
naro. Por quê?
Há várias razões ime-
diatas para o impeach-
ment de Bolsonaro,
mas a questão é se ele
é viável e vai resolver
o nosso problema es-
trutural. É preciso fa-
zer um processo de
impeachment que se-
ja um instrumento de
regeneração da demo-
cracia, das institui-
ções, da convivência
e da competição po-
lítica. As condições
para esse impeachment regene-
rador são muito exigentes. For-
ças políticas que se atacaram
de uma maneira destrutiva nos
últimos anos têm de sentar,
conversar e negociar questões
de procedimento político e de
conteúdo. É muito difícil essa
negociação, mas ela é possível,
e sua construção já começou,
ainda que de forma tímida e in-
cipiente. Se não houver essa
ampla concertação, será como
jogar gasolina na fogueira do
caos que Bolsonaro constrói
cotidianamente. Isso significa
o seguinte: o campo da esquer-
da tem de dizer para o da direi-
ta que, se não houver essa re-
pactuação, ela pode até ganhar
a eleição em 2022, mas não vai
governar. E vice-versa.

Rafael Moraes Moura
BRASÍLIA


O decano do Supremo Tribunal
Federal (STF), ministro Celso
de Mello, comparou o Brasil à
Alemanha de Hitler e, em men-
sagem reservada enviada a inter-
locutores no WhatsApp, disse
que bolsonaristas “odeiam a de-
mocracia” e pretendem instau-
rar uma “desprezível e abjeta di-
tadura”. Procurado, o ministro
alegou ao Estadão que a mani-
festação foi “exclusivamente
pessoal”, “sem qualquer vincu-


lação formal ao STF”.
Celso de Mello é o relator do
inquérito que investiga as acusa-
ções, levantadas pelo ex-minis-
tro Sérgio Moro, de que Bolso-
naro tentou interferir na Polí-
cia Federal. O ministro se apo-
senta em novembro, quando
completa 75 anos, abrindo a pri-
meira indicação que Bolsonaro
poderá fazer para o tribunal.
O tom usado pelo decano sur-
preendeu colegas do STF, que
apontam que a fala deu muni-
ção ao Palácio do Planalto e
abriu brecha para o presidente

da República apontar até mes-
mo a suspeição do ministro na
condução do caso.
O comentário de Celso de
Mello foi disparado na véspera
de um protesto de aliados do
presidente que contou com fai-
xas que pediam “intervenção
militar”. “Guardadas as devidas
proporções, o ‘ovo da serpente’,
à semelhança do que ocorreu na
República de Weimar (1919-
1933), parece estar prestes a
eclodir no Brasil!”, escreveu o
decano do STF.
“É preciso resistir à destrui-

ção da ordem democrática, pa-
ra evitar o que ocorreu na Repú-
blica de Weimar, quando Hi-
tler, após eleito por voto popu-
lar e posteriormente nomeado
pelo Presidente Paul von Hin-
denburg, em 30/01/1933, como
chanceler (primeiro-ministro)
da Alemanha, não hesitou em
romper a inovadora Constitui-
ção de Weimar, impondo ao
País um sistema totalitário de
poder viabilizado pela edição,
em março de 1933, da lei (nazis-
ta) de concessão de plenos po-
deres que lhe permitiu legislar

sem a intervenção do Parlamen-
to germânico!!!!”, afirmou.
E completou: “Intervenção
militar, como pretendida por
bolsonaristas e outras lideran-
ças autocráticas que despre-
zam a liberdade e odeiam a de-
mocracia, nada mais significa,
na novilíngua bolsonarista, se-
não a instauração no Brasil, de
uma desprezível e abjeta ditadu-
ra militar!!!!”.

Fascistoides. Há duas sema-
nas, Celso de Mello classificou
como “bolsonaristas fascistoi-

des” dois homens que foram
presos por ameaçar de morte
juízes, promotores e procurado-
res do DF.
O procurador-geral da Repú-
blica, Augusto Aras, e o presi-
dente do Conselho Nacional de
Procuradores-Gerais (CNPG),
Fabiano Dallazen, informaram
em nota ontem que o Ministé-
rio Público está preocupado
com a situação do País, mas que
“cumprirá com os seus deveres
constitucionais na salvaguarda
da ordem jurídica que sustenta
as instituições do País”.

O ex-juiz Nicolau dos Santos Ne-
to, de 91 anos, morreu ontem
com suspeita de covid-19. Há al-
guns dias ele foi hospitalizado e
internado com quadro de pneu-
monia. A morte de Nicolau foi


confirmada à reportagem do Es-
tadão pelo advogado do ex-juiz,
Celmo Márcio de Assis Pereira.
O ex-juiz Nicolau ficou conhe-
cido pela condenação em três
processos relacionados a des-

vios de R$ 170 milhões (mais de
R$ 1 bilhão em valores atualiza-
dos) das obras do Fórum Traba-
lhista de São Paulo na Barra Fun-
da. À época, o magistrado era pre-
sidente do Tribunal Regional do
Trabalho de São Paulo. Segundo
o advogado, ex-juiz não come-
teu nenhum desvio.
O Ministério Público Fede-
ral, alertado por denúncias de
um ex-genro de Nicolau, consta-

tou que ele amealhou patrimô-
nio incompatível com os rendi-
mentos de magistrado, inclusi-
ve um a casa luxuosa no Guaru-
já, um apartamento em Miami
(EUA) e US$ 4 milhões na Suíça


  • todos esses bens foram confis-
    cados pela Justiça.
    Parte do montante depositado
    na Suíça teria sido repassada pa-
    ra a conta de Nicolau pelo então
    senador Luiz Estevão, também


condenado criminalmente no
mesmo processo. O ex-juiz foi
preso em caráter preventivo no
ano 2000. Em 2006 foi condena-
do pelo Tribunal Regional Fede-
ral da 3.ª Região (TRF3) sob acusa-
ção de lavagem de dinheiro, cor-
rupção e fraude no processo de
concorrência do fórum. Em de-
zembro de 2013, o TRT2 cassou
sua aposentadoria. / FAUSTO
MACEDO E PAULO ROBERTO NETTO

NICOLAU DOS SANTOS NETO H 1928 = 2020


‘STF tomou ação


efetiva para barrar


projeto autoritário’ PONTO


FINAL- A
GUERRA DE
BOLSONARO
CONTRA A
DEMOCRACIA

Autor:
Marcos Nobre
Editora:
Todavia,
80 pp, R$ 30
em e-book

Morre aos 91 anos ex-juiz


do TRT em São Paulo


RAFAEL ARBEX/ESTADÃO-4/8/

Esforço. Para Nobre, o desafio é entender ‘a racionalidade tétrica’ de Jair Bolsonaro, para só então tentar combatê-la


ENTREVISTA


Presidente do Cebrap


diz que saída para crise


política exige negociação


com as Forças Armadas


e o vice Hamilton Mourão


Decano vê busca por ‘ditadura militar’


Celso de Mello, relator do inquérito que investiga se presidente tentou interferir na PF, afirma que bolsonaristas ‘odeiam a democracia’


ED FERREIRA/ESTADÃO

Quadro. Ex-juiz estava no
hospital com pneumonia

Marcos Nobre, professor de Filosofia Política na Unicamp e presidente do Cebrap

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