O Estado de São Paulo (2020-06-01)

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O ESTADO DE S. PAULO SEGUNDA-FEIRA, 1 DE JUNHO DE 2020 A


MOISÉS


NAÍM


Manifestantes desafiam toque de


recolher e EUA vivem crise histórica


Internacional


A


covid-19 é a coisa mais impor-
tante que está acontecendo
para todo o planeta. Mas há
outras coisas também ocorrendo,
que embora sem o alcance e as conse-
quências da pandemia, revelam ten-
dências mundiais que afetarão toda
a sociedade.
Muitos gafanhotos. Eles são uma
das piores pragas de que fala a Bíblia.
Felizmente não são frequentes. No
século 20, houve cinco surtos que de-
vastaram as colheitas e deixaram a
carestia no seu rastro. No fim do ano
passado, o surto mais feroz dos últi-
mos 25 anos se deu no deserto de
Rub’ al-Khali, na Arábia Saudita, um
dos lugares mais remotos e isolados
do mundo.
Os insetos deste surto são mais jo-

vens do que os de costume, voam em
uma velocidade maior e podem percor-
rer até 200 quilômetros em um só dia.
Sua população se multiplica por 20 a
cada três meses. No Quênia, um enxa-
me estimado em 192 bilhões de gafanho-
tos alcançou uma dimensão três vezes
maior do que a da cidade de Nova York.
Em um único dia, um enxame de tama-
nho regular chega a devorar uma colhei-
ta que poderia alimentar 35 mil pessoas.
A crise atual dos gafanhotos é tam-
bém mais internacional. Saída da Penín-
sula Arábica, atacou a África. Agora está
devastando a agricultura da Índia, Pa-
quistão e Afeganistão. A causa? Os ciclo-
nes que geram as condições de umida-
de propícia à reprodução dos gafanho-
tos. Antes, nas zonas de onde os enxa-
mes se originam, ocorria apenas um ci-

clone por ano e nenhum durante lon-
gos períodos.
Nestes tempos, no mundo, não se re-
gistra apenas uma presença excessiva
de gafanhotos, como também há petró-
leo em demasia. Com as economias fe-
chadas, a metade dos trabalhadores for-
mais do mundo em suas casas e o trans-
porte severamente restrito, o consumo
de petróleo caiu enormemente.
Amy Jaffe, especialista em política
energética, calcula que o excesso de pe-
tróleo acumulado em 2020 pode supe-
rar os bilhões de barris. Este petróleo

bruto precisa ser armazenado, e a capa-
cidade existente no mundo está chegan-
do ao limite. Desse modo, hoje a cota-
ção do petróleo é a mais baixa dos últi-
mos 18 anos.
As consequências deste fato para o
futuro da energia no mundo são enor-
mes. Investir em energia agora é menos
atraente, por exemplo. A Agência Inter-
nacional de Energia acaba de informar

que este ano ocorreu a maior queda da
história dos investimentos no setor.
Não só baixaram os investimentos em
carvão, petróleo e gás, mas também em
fontes renováveis, como energias solar
e eólica. A falta de investimentos acaba-
rá reduzindo os volumes produzidos,
provocando a subida dos preços.
Mas, enquanto isto acontece, os pre-
ços baixos levaram à falência as empre-
sas de energia que operam com altos
custos de produção ou têm uma situa-
ção financeira precária. Além disso, paí-
ses como Arábia Saudita, Rússia, Irã, Ni-
géria ou Venezuela, cujas economias de-
pendem quase exclusivamente da ex-
portação de gás e petróleo, sofrerão
uma crise econômica debilitante que
poderá causar turbulências políticas in-
ternas ou alimentar conflitos interna-
cionais.
Hong Kong morreu. Não por causa
do vírus, mas por causa dos líderes chi-
neses. A Assembleia Nacional Popular
da China acaba de aprovar uma lei de
segurança nacional que proíbe ativida-
des como “traição, secessão, sedição, e
subversão” em Hong Kong. Agora, o go-
verno de Pequim pode intervir quando
quiser no território, reprimindo toda

atividade que considerar uma amea-
ça e ignorando as autoridades elei-
tas. Inevitavelmente, o papel crucial
que até agora Hong Kong desempe-
nhou como um dos pilares da econo-
mia da China declinará.
A China tem um território de 9,
milhões de quilômetros quadrados e
1,4 bilhão de habitantes. Hong Kong
tem 110 quilômetros quadrados e 7,
milhões de habitantes. Como é possí-
vel que uma cidade tão pequena seja
tão ameaçadora para um país tão gi-
gantesco? É que de repente a China
experimenta um imenso apetite pela
hegemonia mundial.
Durante muito tempo, as autorida-
des chinesas insistiram que o restan-
te do mundo não tem o que temer
com o auge econômico ou com a cres-
cente influência do seu país. A priori-
dade nacional, afirmavam, era tirar
da pobreza tantos dos seus compa-
triotas quantos fosse possível e no
menor tempo possível. Mas, ultima-
mente, começaram a aparecer sinto-
mas de que o sucesso econômico
abriu o apetite geopolítico dos líde-
res de Pequim. / TRADUÇÃO DE ANNA
CAPOVILLA

Beatriz Bulla
CORRESPONDENTE / WASHINGTON


O barulho de helicópteros so-
bre a região da Casa Branca e
as sirenes não deram trégua
durante toda a madrugada e
recomeçaram no meio da tar-
de de ontem. Washington é
uma das 75 cidades que acor-
daram com marcas da convul-
são social na qual os EUA mer-
gulharam no fim de semana,
quando os protestos antirra-
cismo que pedem justiça pela
morte de George Floyd se es-
palharam, com episódios de
violência.
As manifestações, que ontem
chegaram ao sexto dia consecu-
tivo, fizeram ao menos 24 auto-
ridades municipais decretarem
toque de recolher para tentar
conter os tumultos, os saques e
as vidraças quebradas. As auto-
ridades tentavam determinar
se havia extremistas infiltrados
nas manifestações.
Foi a primeira vez, desde as
mobilizações de 1968, após o as-
sassinato de Martin Luther
King Jr., que tantas cidades ado-
taram a medida ao mesmo tem-
po como resposta à agitação ci-
vil. A Guarda Nacional foi acio-
nada em 11 dos 50 Estados, mas
manifestantes desafiaram a po-
lícia e o toque de recolher e con-
tinuaram nas ruas. Ontem, a
Guarda Nacional disse que 5
mil homens foram postos em
prontidão em 15 Estados e na
capital, mas “as agências de apli-
cação das leis locais eram res-
ponsáveis pela segurança”.
Os protestos contra o racis-
mo na abordagem policial co-
meçaram em Minneapolis, no
Estado de Minnesota, onde


Floyd, um homem negro de 46
anos, foi morto asfixiado por
um policial branco que pressio-
nou o joelho sobre o pescoço
dele. A morte de Floyd reacen-
deu o movimento contra o racis-
mo na polícia, já visto em 2013 e


  1. Mas, desta vez, a revolta
    chega em meio a uma grave pan-
    demia e a uma crise econômica
    comparável apenas à Grande
    Depressão de 1929.
    Com o maior número de mor-
    tos pela covid-19 no mundo –
    mais de 104 mil até agora –, 40
    milhões de desempregados e
    uma ebulição social, os EUA en-
    traram neste final de semana
    em uma crise histórica.
    Os EUA iniciaram um proces-
    so de reabertura gradual da eco-
    nomia nas últimas semanas,
    após indicativos que o pico da
    contaminação por coronavírus
    passou. Mas os protestos po-
    dem fazer com que a prevista
    segunda onda de contágio che-
    gue antes do esperado (mais in-
    formações nesta página).
    Em Londres, Berlim e no Rio
    de Janeiro, manifestantes saí-
    ram às ruas em apoio à pauta
    americana. Nos EUA, a maioria
    das manifestações foi pacífica,
    mas houve conflito entre poli-
    ciais e manifestantes em cida-
    des como Minneapolis, Los An-
    geles, Chicago, Filadélfia, Atlan-
    ta, Nova York e Washington,
    com carros de polícia incendia-
    dos, lojas depredadas e saquea-
    das.
    O crescimento e a escalada
    no tom das manifestações indi-
    cam que os manifestantes terão
    dificuldade em manter a coe-
    são. Vídeos mostram manifes-
    tantes negros no Brooklyn, em
    Nova York, tentando evitar que


uma loja da rede Target fosse
depredada, indicando o desa-
cordo interno.
À frente da Casa Branca, Do-
nald Trump é uma figura que
provoca divisão. O país é racha-
do entre os que amam e os que
odeiam o americano. No sába-
do, ele chegou a sugerir que
seus apoiadores se manifestas-
sem na Casa Branca, o que pode-
ria piorar a tensão caso houves-
se choque entre grupos.
Ontem, o presidente anun-

ciou que vai designar o grupo
antifascista Antifa, em quem co-
loca a culpa pelos episódios de
violência das manifestações, co-
mo uma organização terrorista.
Atualmente, mais de 60 grupos
são designados como organiza-
ções de terrorismo estrangei-
ras, como Al-Qaeda e o Estado
Islâmico. A designação é consi-
derada uma ação política e di-
plomática, mas especialistas
apontam que Trump terá difi-
culdade em executar a medida.

Além da pandemia, também
há a praga dos gafanhotos, o
excesso de petróleo e a China

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


E-MAIL: [email protected]

Protestos pela morte de homem negro por um policial branco se espalham por 75 cidades do país; tantas medidas de restrição para


tentar conter tumultos ao mesmo tempo não eram tomadas desde as mobilizações de 1968, após o assassinato de Martin Luther King Jr,


NOVA YORK


Os protestos em massa contra
a violência policial contra ne-
gros americanos que são reali-
zados em pelo menos 75 cida-
des dos Estados Unidos estão
causando o temor de que as ma-
nifestações provoquem novas
ondas de contaminações pelo
coronavírus.
A prefeita de Atlanta,
Keisha Lance Bottoms,


disse à rede CNN que ela teme
que os protestos possam au-
mentar as infecções entre a co-
munidade negra, que já vem
sendo desproporcionalmente
afetada pela covid-19 nos Esta-
dos Unidos. A taxa de morte en-
tre os negros americanos é o do-
bro da dos brancos. Os lock-
down também causaram mais
problemas econômicos en-
tre os negros.
“Fico extremamente

preocupada em ver essas multi-
dões reunidas”, disse Bottoms.
“Veremos o resultado disso
nas próximas semanas.”
Larry Hogan, governador re-
publicano de Maryland, tam-
bém manifestou sua preocupa-
ção e disse à CNN que “milha-
res de pessoas reunidas de for-
ma tão próxima” pode levar a
um aumento dos casos.
O doutor Ashish Jha, profes-
sor de saúde global na Escola

de Saúde Pública T.H. Chan, de
Harvard, pediu aos manifestan-
tes que continuem adotando as
medidas de segurança, entre
elas usar máscara e manter o
distanciamento social.
“A questão é como podemos
protestar de forma segura”, dis-
se o dr. Jha. “Acho que usar más-
cara é uma parte importante
disso”, acrescentou.
O doutor Theodore Long,
que está liderando os esforços

da Prefeitura de Nova York e
dos hospitais públicos, pediu a
todos que participaram das ma-
nifestações que se submetam
ao teste para saber se contraí-
ram o novo coronavírus.
Mais de 100 mil pessoas mor-
reram de covid-19 nos EUA e
cerca de 40 milhões de pessoas
estão sem trabalho. Os efeitos
econômicos e de saúde da pan-
demia afetaram desproporcio-
nalmente as minorias raciais e

os imigrantes. Os trabalhado-
res negros e latinos foram os
mais afetados pelo desempre-
go. Além disso, a maioria tem
trabalhos que não podem ser
feitos remotamente, então não
conseguem cumprir o isola-
mento social.
Os protestos também po-
dem afetar os planos de reaber-
tura em todo o país. O prefeito
do Condado de Miami-Dade,
Carlos Gimenez, disse que os
protestos o levaram a manter
as praias locais fechadas, em
vez de abri-las hoje como pro-
gramado. / NYT

E o que mais agora?


lO grupo de hackers Anony-
mous divulgou ontem um vídeo
exigindo justiça pela morte de
George Floyd e ameaçando divul-
gar crimes envolvendo a política

americana. O Anonymous tam-
bém sugeriu que o presidente Jair
Bolsonaro seja investigado para
saber se ele teria ligações com “o
traficante e estuprador de crian-
ças John Casablancas, um asso-
ciado de Donald Trump que teria
atuado no Brasil sob algum cargo
obscuro para os negócios do bilio-
nário”. O grupo também acusa
Trump de tráfico de pessoas.

Manifestações causam temor de mais contaminações


Anonymous sugere


laço de Bolsonaro


com ‘traficante’


MANUEL BALCE CENETA/AP

Pressão. Manifestantes perto da Casa Branca pedem justiça em sexto dia de protestos após morte de George Floyd
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