O Estado de São Paulo (2020-06-02)

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A10 Política TERÇA-FEIRA, 2 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


ENTREVISTA


Marcelo Godoy


O general Carlos Alberto dos
Santos Cruz, ex-ministro-che-
fe da Secretaria de Governo do
presidente Jair Bolsonaro, é
uma das mais importantes víti-
mas das fake news. Ele teve diá-
logos de WhatsApp fraudados
para indispô-lo com o presiden-
te. Santos Cruz defende a in-
vestigação e punição dos crimi-
nosos. O general afirma ainda
que o Exército não tomará deci-
são fora da lei, como pretende
quem quer fechar o Supremo
Tribunal Federal e o Congres-
so. Apela para a pacificação do
País e se diz contrariado com a
aproximação do governo com
o Centrão. Eis a entrevista.


lComo deve ser o comportamen-
tos dos atores desta crise para
se preservar as instituições?
As pessoas públicas, que fazem
parte dos Poderes, têm de cum-
prir a legislação, independente-
mente de suas características.
Educação, harmonia e trato
das diferenças de maneira edu-
cada devem ser regra. O bom
exemplo é obrigação de todos.


lO presidente compareceu a
manifestação em frente ao quar-
tel do Exército. O que o sr. achou
dessa manifestação?
Eu acho imprópria pelo objeti-
vo da manifestação (fechar o Su-
premo e o Congresso). Não tem
ilegalidade, as pessoas que esta-
vam na manifestação podem ir
até lá, mas daí achar que o
Exército vai se envolver tem
uma distância muito grande.
Tinha gente ali com placas AI-
5, fora STF, uma variedade de
objetivos. São manifestações
manipuladas e estimuladas por
alguém. Mas, para pressionar o
Exército a tomar uma decisão


fora da legislação, não tem co-
mo. O Exército não funciona
baseado nesse tipo de pressão.

lO sr. foi vítima do submundo
das fake news. Agora, Congres-
so, via CPI, e STF, por um inquéri-
to polêmico, buscam os respon-
sáveis por esses esquemas. Co-
mo sr. vê as investigações?
Espero que cheguem à autoria.
Liberdade de expressão não é
injúria, calúnia e difamação.
Ninguém é livre para fazer is-
so. Os recursos da mídia social
não eliminaram o Código Pe-
nal. Deve-se ter toda liberda-
de, assim como deve ser res-
ponsabilizado se infringir a lei,
atacar a honra com notícias fal-
sas. Linchamento virtual, as-
sassinato de reputação e menti-
ra não têm nada a ver com de-
fesa da liberdade. Alguns fa-
lam que se trata de liberdade
de expressão, que ela está sen-
do cerceada. Ninguém está cer-
ceando nada disso. Tem de ser
penalizado quem é criminoso.

lHá suspeita do uso de dinheiro
público para financiar esses es-
quemas. O que o sr. acha disso?
É absurdo. Dinheiro público
não pode ser usado para finan-
ciar notícias falsas. Tem de ver
se tem pessoas que são pagas,
recebem salários do setor pú-
blico ou veículos que recebem
dinheiro público.

lPela sua história, o sr. crê que
as pessoas têm ideia da impor-
tância de combater as mentiras
para preservar a democracia?
O problema não é isso me afe-
tar, não é pessoal. Esse tipo de
atividade ilegal, de mentiras e
calúnias, de baixíssimo padrão
de palavreado, atrapalha a edu-
cação, atrapalha o desenvolvi-
mento da sociedade e o pró-
prio governo, quando é feito
em defesa do governo, pois a
sociedade não gosta disso, ela
gosta de paz social e informa-
ção válida. O ambiente fica pre-
judicado por esse tipo de ação.

lO sr. reafirma a importância de

se buscar dentro da lei os aperfei-
çoamentos necessários às insti-
tuições. Ou seja, não existe saída
possível fora da Constituição?
Não se pode decidir as coisas
na força, no peito, na arrogân-
cia, no conflito. Você pode ter
discordâncias, mas tem a legis-
lação, em que há mecanismos
para alterar as leis. Tem de ser
feito tudo dentro desse siste-
ma. Não se pode querer fazer
pela força o que depende do
consenso social, da convivência
política. Se um Poder não está
funcionando bem, sugira aper-
feiçoá-lo. O que não pode é, an-
tes de fazer isso, já partir para o
conflito, o que perturba a socie-
dade e não leva a nada. A har-
monia é obrigação do servidor
público. Os Poderes têm obriga-
ção de procurar essa harmonia.

lO sr. afirma que o militar da
ativa deve guardar distância do
varejo da política. Como fazer
isso se há cinco oficiais generais
da ativa autorizados pelos coman-
dos em cargos do governo?
Os militares, normalmente,
têm preferência política e can-
didato. Mas, quando põem a
farda e representam a institui-
ção, têm a cultura de seguir. Is-

so é disciplina interna. Nin-
guém discute política partidá-
ria no quartel. As coisas são se-
paradas e bem orientadas pe-
los comandantes. Quanto ao
número de militares da ativa,
isso pode trazer alguma confu-
são de imagem. Quem é da ati-
va e está prestando serviço em
altos postos da administração
tem a obrigação de estar alinha-
do com assuntos de governo. E
(isso) causa confusão.

lEsses oficiais, que dizem ter
aceitado uma missão, deviam
passar para a reserva?
Em primeiro lugar, as tarefas
que estão desempenhando não
são missões militares. Não têm

nada a ver com as Forças. Não
está cumprindo missão coisa
nenhuma, está em função na
qual empenhou sua responsabi-
lidade individual, não institu-
cional. Isso aí tem normas e os
comandantes e o ministro da
Defesa são responsáveis pela
interpretação. É sempre conve-
niente a separação para não fa-
zer confusão de imagem.

lColegas do sr. criticam as deci-
sões monocráticas do STF con-
tra o governo. O que o sr. acha?
Há espaço para aperfeiçoar. Al-
guns desacertos não são só por
falta de previsão legal. Precisa
haver disposição para o enten-
dimento e para o respeito. Es-
tamos em um processo longo
de crítica e de acusação que
criou um clima ruim para tra-
tar as diferenças. É preciso
aperfeiçoar o sistema.

lQuais os papéis do ministro
Augusto Heleno e do general
Mourão na crise e no governo?
Tudo o que fazem e falam têm
reflexos. Nessa conjuntura de
muita disputa, os comentários
deles têm grande repercussão,
mas eles têm cultura e nível pa-
ra gerenciar isso. Penso que o
fim do filme será todo mundo
se acertando, como é obrigató-
rio pela Constituição. Vão en-
contrar uma solução.

lQual o significado da saída de
Sérgio Moro do governo?
A saída foi uma perda grande.
Ele representava mais do que a
capacidade técnica dele, repre-
sentava ser possível combater
a corrupção.

lO que o sr. acha de uma candi-
datura Moro em 2022?
Seria uma opção importante,
que carrega a esperança de me-
lhoria em uma área crucial, o
combate à corrupção.

lO sr. acredita, pelo vídeo da
reunião de 22 de abril, que Bolso-
naro quis interferir na PF?
Não é possível, para um espec-
tador, chegar a essa conclusão.

lO sr. participou de reuniões no
Planalto. O presidente sempre se
comportava daquela forma?
Até o momento que estive no
governo não era daquela for-
ma. Mesmo com as característi-
cas do presidente, essa reunião
me pareceu mais tensa, atípica.

lO governo está nomeando indi-
cados do Centrão para cargos. O
que acha dessas negociações?
Houve mudança de postura,
pois havia várias acusações e
disposição de não negociar
com o Centrão. Agora, o gover-
no decidiu fazer essas negocia-
ções. É questão de momento
político. Fica incoerente e su-
jeito a escrutínio do especta-
dor. Como eleitor, e fui eleitor
do presidente Bolsonaro, lem-
bro de comentários de que o
objetivo não era fazer esse tipo
de negociação e agora está fa-
zendo. Acho que está havendo
uma discrepância.

lO sr. acredita que o governo
chega a 2022, que não corre o
risco de sofrer impeachment?
Acho que as coisas vão se aco-
modar. Tem todas as condi-
ções para terminar o governo,
mas precisa construir a paz so-
cial e o ambiente político. Há
previsão legal do impeach-
ment, mas procedimentos pre-
vistos, no entanto, não podem
ser transgredidos. Não se pode
fazer impeachment fora da lei.

lO presidente se diz vítimas de
uma conspiração. Concorda?
Não há conspiração nenhuma.
Tem um ambiente tumultuado
que precisa ser pacificado.

lHá quem diga que Mourão se-
ria um melhor presidente do que
Bolsonaro. O sr. concorda?
Não se deve fazer essa compara-
ção e agravar o ambiente políti-
co. Não é construtivo. Críticas
ao presidente são válidas, mas
não esse tipo de comparação.

lPresença de militar na política
é fenômeno que veio para ficar?
Sem dúvida. É uma transforma-
ção. Há uma quantidade signifi-
cativa de candidatos militares.
É normal. A apresentação como
candidato é válida, legal e o elei-
tor decide. É mais uma opção.

Vinícius Valfré / BRASÍLIA


O presidente Jair Bolsonaro
e parte de seus apoiadores
passaram a citar o artigo 142
da Constituição Federal para
criar uma narrativa de que
não seria ilegal um decreto de
“intervenção militar” para
conter o que consideram ex-
cessos do Supremo Tribunal
Federal (STF). Juristas sem
vínculos com o governo con-
sultados pelo Estadão, no en-
tanto, afirmam que essa inter-
pretação é absurda, e conside-
ram que, ao incentivar esse
entendimento, o chefe do Pa-
lácio do Planalto flerta com
crimes de responsabilidade.
O texto do artigo estabelece
que as Forças Armadas, além de
atuarem na defesa da Pátria, po-
dem ser chamadas, por iniciati-
va dos Poderes da República, pa-
ra garantia “da lei e da ordem”.
No entanto, na avaliação de es-
pecialistas, o texto constitucio-
nal é claro sobre as atribuições
de Executivo, do Congresso e
do STF, de modo que não cabe
ao presidente a palavra final so-
bre o que é lei e ordem.
A referência ao artigo 142 foi


feita por Bolsonaro em reunião
ministerial no dia 22 de abril,
que teve o vídeo divulgado no
mês passado por ordem do mi-
nistro do STF Celso de Mello.
No encontro com auxiliares, o
mandatário cita o artigo e fala
em “pedir as Forças Armadas
que intervenham pra restabele-
cer a ordem no Brasil, naquele
local sem problema nenhum”.
Dias após o conteúdo da reu-
nião vir a público, o presidente
usou as redes sociais para com-
partilhar reflexões do jurista Ives
Gandra Martins, que defende
uma interpretação do artigo nos
moldes da pretendida por Bolso-
naro. No vídeo, Ives Gandra afir-
ma que o presidente “teria o direi-
to de pedir as Forças Armadas”
caso perdesse recursos à decisão
que impediu a nomeação do dele-
gado Alexandre Ramagem para o
comando da Polícia Federal.
“Essa interpretação do artigo
142 não faz nenhum sentido em
um ambiente profissional de
pessoas treinadas a interpretar
a Constituição. Estão achando
que é possível pegar três ou qua-
tro palavras soltas e interpretá-
las de maneira descontextuali-
zada”, afirmou Thomaz Perei-

ra, professor da FGV Direito
Rio. Para especialistas, o esfor-
ço dos bolsonaristas em disse-
minar o discurso é uma tentati-
va de dar um “verniz jurídico” a
uma pretensão golpista. “No
fundo, é para dizer que o presi-
dente faz o que quer. Isso é abso-

lutamente contrário à Consti-
tuição”, disse Diego Werneck,
professor de Direito do Insper.
Ele cita o fato de a Carta de
1988 ter nascido em um contex-
to de redemocratização, após
21 anos de ruptura democrática
e, por isso, não faz sentido a

ideia de que os legisladores dei-
xaram “escondido” no texto
uma permissão moderadora às
Forças Armadas.
“É difícil encontrar um adjeti-
vo suficiente para expressar o
quanto essa leitura é discrepan-
te do texto constitucional. A in-
terpretação coloca que Forças
Armadas servem para garantia
dos poderes constitucionais, e
também da lei e da ordem, mas
não entende que lei e ordem é
conforme definido pelos ou-
tros Poderes dentro de suas atri-
buições”, completou Werneck.

Derrotas. Bolsonaro tem sofri-
do reveses no STF. Partiram da
Corte, por exemplo, as decisões
que garantiram autonomia a go-
vernadores e prefeitos na crise
do novo coronavírus e que bar-
raram a indicação de Alexandre
Ramagem, amigo do família Bol-
sonaro, para a PFl. Também
preocupa o presidente inquéri-
to que investiga aliados por su-
posta disseminação de notícias

falsas e que pode chegar ao seu
filho Carlos Bolsonaro.
A tensão faz com que ideias
de fechar o STF venham sendo
recorrentes nas manifestações
pró-Bolsonaro realizadas em
Brasília. O próprio presidente
tem participado desses atos,
que também estão no alvo de
investigações por serem consi-
derados antidemocráticos.
“Decisões do Supremo são re-
corríveis. Não temos poder mo-
derador na ordem republicana,
isso ficou no império”, afirmou
Vladimir Feijão, professor de Di-
reito do Ibmec. “Certamente (es-
sa interpretação) é um processo
de revisionismo que falseia o
que aconteceu na Constituinte
de 1988.” “Se o presidente da Re-
pública atenta contra o cumpri-
mento das leis e das decisões ju-
diciais, isso é crime de responsa-
bilidade”, afirmou Thomaz Pe-
reira. “Ao ecoar essa tese, o presi-
dente tangencia diversos arti-
gos dos crimes de responsabili-
dade”, emendou Werneck.

Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo


Santos Cruz diz que a


Força não se submeterá


a esse tipo de pressão e


que dinheiro público não


pode pagar fake news


‘Não há como o Exército tomar uma decisão ilegal’


lO presidente da Câmara, Rodri-
go Maia (DEM-RJ), disse ontem
que não vê risco de uma ruptura
institucional no Brasil ou apoio
das Forças Armadas a pedidos
de intervenção militar. A fala foi
uma resposta ao deputado Eduar-
do Bolsonaro (PSL-SP), que na
semana passada declarou partici-
par de reuniões em que se discu-
te “quando” acontecerá “momen-

to de ruptura” no País.
Em entrevista ao portal UOL,
Maia condenou a participação do
presidente Jair Bolsonaro nas
manifestações do domingo pas-
sado contra o Supremo e o Con-
gresso, e comentou o fato de o
ministro da Defesa ter sobrevoa-
do o ato. “Acho que o ministro da
Defesa, com todo respeito e admi-
ração, andar no helicóptero com
o presidente da República para
olhar uma manifestação contra o
Supremo Tribunal Federal, não é
uma sinalização positiva”, afir-
mou o deputado. / AMANDA PUPO e
GREGORY PRUDENCIANO

ADRIANO MACHADO / REUTERS - 13/6/

Fase. Para Santos Cruz, militares vão continuar na política

lManifestação
“Acho imprópria pelo
objetivo da manifestação
(fechar o Supremo Tribunal
Federal e o Congresso
Nacional). As pessoas
podem ir até lá, mas daí
achar que o Exército
vai se envolver tem uma
distância muito grande. São
manifestações manipuladas
e estimuladas por alguém.”

Maia critica voo de


ministro sobre ato;


‘não é positivo’


DIDA SAMPAIO/ESTADÃO - 31/5/

Para juristas,


artigo 142


não autoriza


intervenção


Analistas reprovam uso da Constituição para


justificar ação de militares contra Supremo


Apoiadores. Manifestantes a favor de Jair Bolsonaro pedem intervenção militar na praça dos Três Poderes, no domingo
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