O Estado de São Paulo (2020-06-02)

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H6 Especial TERÇA-FEIRA, 2 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Karen MacPherson
THE WASHINGTON POST


É natural que muitos pais se
preocupem em conseguir que
seus filhos leiam durante as fé-
rias, mas as apostas podem pare-
cer especialmente altas este
ano, depois de meses de “ensino
a distância”. Quando se trata de
adolescentes e leitura, as defini-
ções contam.
Sim, pesquisas mostram que
os adolescentes estão lendo me-
nos, uma queda que começa no
ensino fundamental II. Mas mui-
tos especialistas acham que os
critérios usados por pesquisado-
res são muito limitados e refle-
tem a maneira como muitas ve-
zes definimos instintivamente
“ler” como leitura de ficção em
geral, e ficção literária em parti-
cular. E livros físicos, sem in-
cluir os digitais.
Os adolescentes de hoje estão
lendo, tanto material impresso
quanto online, de acordo com es-
pecialistas em educação, biblio-
tecários e professores. Mas o
que eles estão lendo – livros de
terror e distópicos, perfis de re-
vistas esportivas, artigos de notí-
cias online etc, – frequentemen-
te não é considerado nas pesqui-
sas como “leitura”.
Embora ler uma notícia não se-
ja o mesmo que ler um romance
ou um livro de não ficção, espe-
cialistas dizem que não ajuda
em nada adultos desmerecerem
a leitura que muitos adolescen-
tes estão fazendo.
Em seu livro Reading Un-
bound: Why Kids Need to Read
What They Want – and Why We
Should Let Them (Leitura livre:
Por que as crianças precisam ler o
que querem – e por que devemos
deixar que façam isso, em tradu-
ção livre), os especialistas em
educação de adolescentes Mi-
chael W. Smith e Jeffrey D. Wi-
lhelm destacam o fato de que as
crianças que foram observadas
apresentaram um “envolvimen-
to surpreendentemente rico
com textos que não valorizamos
muito”. Segundo Smith, profes-
sor da Temple University, “mui-
tos eram leitores ávidos de tex-
tos marginalizados”.
Isso é particularmente verda-
de com adolescentes do sexo
masculino. Conforme relatado
em seu livro anterior, Reading
Don’t Fix No Chevys (Ler não con-
serta nenhum Chevrolet, em tradu-
ção livre), os estudos de Smith e
Wilhelm descobriram que mui-
tos adolescentes estão interessa-
dos em ler livros e outros mate-
riais por meio dos quais apren-
dam algo, como a história de um
esporte favorito ou mesmo ma-
nuais de carro. Eles sentem pra-
zer em se tornar um especialista


em alguma coisa. (Claro, isso
também é verdade para muitas
garotas).
“Mas esse é exatamente o tipo
de leitura que pais e professores
querem que as crianças ‘deixem
para trás’”, disse Wilhelm, pro-
fessor da Universidade Estadual
de Boise (Idaho, EUA). Como os
adultos com quem convivem su-
bestimam o que gostam de ler,
muitos adolescentes – especial-
mente os garotos – não se consi-
deram leitores, uma percepção
de si mesmo que começa no ensi-
no fundamental II e piora com a
idade.
“Ensino literatura infantil em
uma faculdade de educação, pa-
ra que meus alunos sejam profes-
sores”, disse Laura Jimenez, pro-
fessora da Faculdade de Educa-
ção e Desenvolvimento Huma-

no Wheelock da Universidade
de Boston. “Raramente há um ho-
mem na sala de aula e, quando
há, diz: “Eu não sou um leitor de
verdade’. Mas eles não estão con-
siderando o que leem de fato.”
Como verdadeiros nativos di-
gitais, os adolescentes estão len-
do cada vez mais textos online,
especialmente notícias, artigos
de esportes e de entretenimen-
to, além das mídias sociais. Um
adolescente, que é um leitor
apaixonado, me disse recente-
mente que “é preciso muito
mais esforço para ler um livro do
que olhar a tela”. Embora a leitu-
ra na tela também carregue a ten-
tação de “começar a jogar ou ve-
rificar suas redes sociais”, disse
ele. “É quase impossível evitar.”
Então, qual é o papel dos pais
quando se trata de adolescentes

e leitura? Aqui estão algumas di-
cas e estratégias de especialis-
tas:
1) Confira – e valorize – o que
seus filhos gostam de ler.
Como adulto, você pode ver
alguns títulos como lixo e arti-
gos online sobre artistas popula-
res como uma perda de tempo.
Mas tente evitar criticar o tipo
de leitura que seu filho está fa-
zendo. É crucial permitir que os
adolescentes, que geralmente
têm muita lição por fazer, esco-
lham o que ler no seu tempo li-
vre. Laura, por exemplo, tem um
filho que gosta de ler notícias,
então sua família tem assinatu-
ras de vários veículos de comuni-
cação.
2) Veja o tipo de leitura que
seu filho curte como uma ponte
para outros tipos de leitura.

Uma maneira pela qual os pais
podem incentivar seus filhos a
diversificar é explorar diferen-
tes tipos de leitura sobre os tópi-
cos que lhes interessam. E não
deixe de fora os textos online.
Smith cita sua própria experiên-
cia como fã de futebol que lê tu-
do o que pode: estatísticas, bre-
ves perfis de jogadores, artigos
longos sobre jogadores e livros.
“Acho que cometemos um erro
quando traçamos linhas duras
entre os livros e outros tipos de
leitura”, disse. “Leio mais online
e me considero um leitor.”
Wilhelm oferece outra pers-
pectiva nessa ideia de “focar nos
tópicos” que pais e professores
podem usar. Digamos que seu fi-
lho tenha que
ler Romeu e Ju-
lieta para a es-
cola e relute
em fazê-lo.
Por que não
abordar a peça
de Shakespea-
re como uma
história sobre “o que faz relacio-
namentos acabarem? Qual alu-
no do nono ano não está interes-
sado nisso?”, Wilhelm pergun-
tou.
3) Leia em voz alta para seu
filho adolescente ou escutem au-
diolivros juntos.
Sim, seu filho sabe ler. Mas há
um prazer distinto em ter al-
guém lendo em voz alta para vo-
cê. Isso também cria uma “expe-

riência em comum”, disse Abi-
gail Foss, professora de inglês
avançado da Northwood High
School, em Silver Spring, Mary-
land, que diz que seus alunos
“adoram que leiam para eles”.
Outra possibilidade para essa
ideia é ouvir audiolivros juntos,
algo ideal para viagens de carro,
mas também pode ser feito em
um piquenique em casa ou mes-
mo durante um "jantar de leitu-
ra". Para pais e adolescentes, ou-
vir audiolivros e ler um livro em
voz alta são ótimas atividades pa-
ra fazer em família, mesmo que
por um curto período todos os
dias. Isso também ajudar a ter
um tema em comum para con-
versas em família.
4) Crie tempo pa-
ra a família ler.
Os adultos nem
sempre dão o me-
lhor exemplo para
os leitores adoles-
centes que desejam
formar. Portanto,
tente diminuir o
tempo gasto no telefone com e-
mail ou mídia social e dedique
20 minutos por dia para ler um
livro ou artigo de revista, en-
quanto os demais integrantes da
sua família também leem algo
que cada um escolheu. Mesmo
se seu filho adolescente não to-
par a ideia, você ainda poderá
desfrutar de um pedaço de seu
dia para ler algo por prazer. /
TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

MUNDO DOS


Caderno 2


Especialistas ensinam a valorizar a leitura escolhida pelos


adolescentes como incentivo a torná-los ávidos leitores


LIVROS


S


ei que 104 anos não é número
redondo, desses que ensejam
comemorações – mas para
mim que diferença faz, se no caso se
trata de Murilo Rubião, que, desapa-
recido aos 75, teria nesta segunda-
feira chegado a essa idade? Não há
1.º de junho em que não me lembre
dele de maneira especial, mais ainda
que nos outros 364 dias do ano – e
não estou falando apenas do escri-
tor graúdo, do artista incorruptível
que ele foi, mas também da pessoa
como poucas decisiva em minha vi-
da. Não, não exagero – na verdade,
não consigo imaginar como teriam
as coisas se passado para mim se não
tivesse, aos 21, topado com Murilo
em meu caminho.
Foi em meados da década de 1960.
Ao cabo de larga temporada em Ma-
dri, como adido comercial durante o
governo JK, ele tinha voltado para
Belo Horizonte, discretíssimo, sem
alardes de europeu recente. Para
mim e para alguns companheiros de
geração, adolescentes com fumaças
literárias, ele era um enigma. Podia
até não existir.
Pelo menos não era reconhecível
entre os personagens do Encontro
Marcado de Fernando Sabino, o ro-
mance, quase escrevo bíblia, que o
meu grupinho gostaria de arreme-

dar na vida e na literatura. Não se ti-
nha notícia de Murilo escalando, co-
mo Fernando, Hélio Pellegrino, Otto
Lara Resende e Paulo Mendes Cam-
pos, companheiros de geração literá-
ria, os arcos do viaduto de Santa Tere-
sa. Nem tocando fogo em casa de famí-
lia para ver beldades de camisola a
sair esbaforidas, como fizeram Drum-
mond e Pedro Nava certa madrugada
dos anos 1920. Só tive a confirmação
de que Murilo de fato existia quando
encontrei, na biblioteca da Praça da
Liberdade, um exemplar de O Ex-
Mágico, publicado em 1947.
Murilo Rubião, isto era certo, estava
inteiramente desemparelhado na fic-
ção brasileira – e mesmo na ficção con-
tinental, pois ainda não sobreviera o
cacofônico boom da literatura latino-
americana. Livros como Cem Anos de
Solidão, com personagens capazes de
literalmente voar, ainda não haviam si-
do escritos. Para desconforto dos críti-
cos que amam organizar autores em
times, não havia, na paisagem literária,
algum escritor “tipo Murilo Rubião”.
Em papel impresso e até em carne e
osso, Murilo voltou à circulação em
1965, quando a Imprensa Oficial de Mi-
nas publicou Os Dragões e Outros Con-
tos. Tinha quase 50 anos, mas aos desa-
visados poderia até dar impressão de
ser um estreante. Bem poucos leitores,

na verdade, tinham sabido até então
avaliar devidamente a arte de Murilo,
cujo nome no máximo aparecia, entre
muitíssimos, na vala comum do vasto
etc da ficção nacional contemporânea.
Nem mesmo as antenas agudíssimas
de Mário de Andrade, com quem ele se
correspondeu entre dezembro de 1939
e dezembro de 1944, souberam captá-
lo de imediato. “Mário gostava do au-
tor”, me disse certa vez Murilo, sem
sombra de ressentimento, “e fazia o
possível para gostar da obra...”
Antonio Candido, sempre tão aten-
to, leu Os Dragões e, numa carta ao au-

tor, se penitenciou por não haver, de-
zoito anos antes, registrado condigna-
mente a chegada de O Ex-Mágico. Foi
mestre Candido o responsável por dar
ao contista a devida visibilidade, ao re-
comendá-lo como objeto de estudo ao
jovem professor Jorge Schwartz, que
em 1971 buscava um tema para sua tese
em teoria literária. Por essa via, o nome
de Murilo chegou também ao editor
Jiro Takahashi, da Ática, que procura-
va um ficcionista de qualidade para
inaugurar coleção. Jiro foi a Belo Hori-

zonte e propôs a Rubião lançar O Piro-
técnico Zacarias com 30 mil exempla-
res. O escritor, que em 1947 tivera de
pagar parte da edição de O Ex-Mágico,
recusado antes por seis editoras, rea-
giu com incredulidade. Esse camarada
está louco, pensou. Não estava – tanto
assim que em poucos anos O Pirotécni-
co batia nos 100 mil. Da quase total obs-
curidade, Murilo Rubião saltou para a
berlinda literária. “Me assustei um pou-
quinho”, admitia.
Bem antes disso, em 1966, o contista
teve a ideia de criar um suplemento
literário como encarte semanal do Mi-
nas Gerais, o diário oficial do Estado,
do qual era funcionário, e onde até en-
tão lhe cabiam tarefas como redigir ne-
crológios até de gente viva. Sob genera-
lizado ceticismo do establishment das
letras mineiras de então, Murilo pôs de
pé uma publicação que não tardou a
ressoar para além da província, e que,
mais de meio século depois, resistente
a crises de variada natureza, da falta de
recursos ao obscurantismo de adminis-
tradores estaduais, milagrosamente
sobrevive, hoje sob os bons cuidados
do contista e romancista Jaime Prado
Gouvêa e sua diminuta equipe.
O atual diretor do Suplemento Literá-
rio de Minas Gerais, aliás, vem a ser um
dos muitos escritores jovens que Muri-
lo Rubião teve a sabedoria e generosida-
de de acolher em torno da publicação.
Formou-se ali não igrejinha, como tan-
tas vezes acontece, mas uma federação
não só de grupos os mais diversos co-
mo de livres atiradores da literatura.

Daí nasceu uma informal Geração
Suplemento, da qual fizeram parte,
além de Jaime Prado Gouvêa, escri-
tores como Sérgio Sant’Anna, recen-
temente falecido, e Luiz Vilela.
Primeiro como colaborador, de-
pois como editor-assistente, no Su-
plemento tive o privilégio incompa-
rável de conviver com Murilo Ru-
bião, e se mais não aprendi não foi
por falta sua. Lições de literatura e
também de vida. Dele recebi aten-
ções por certo imerecidas – entre
elas, pedidos para ler e opinar so-
bre versões interminavelmente re-
tocadas de seus contos, alguns de-
les escritos ou principiados antes
de minha chegada ao mundo. O
exemplo radical seria O Convidado,
no qual 26 anos se passaram entre a
primeira e a última linha, merecen-
do crônica de Paulo Mendes Cam-
pos, que o viu brotar.
Num misto de emoção e vergo-
nha, me pesa a sem-cerimônia com
que, frangote das letras, eu palpita-
va na escrita de Murilo Rubião, segu-
ro de mim como nunca mais seria.
Tenho hoje a idade que tinha ele ao
morrer, e de muito tempo precisei
para compreender e admirar a silen-
ciosa persistência e o rigor implacá-
vel de um artista que em toda a vida
não publicou mais que 51 contos,
dos quais descartou uma dúzia e
meia. Quantos autores mais prolífi-
cos nos deixaram obra capaz de se
manter em pé com a firmeza dos 33
contos de Murilo Rubião?

Humberto Werneck


ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

l]


É CRUCIAL PERMITIR
AOS ADOLESCENTES

ESCOLHER
O QUE LER

O mágico eterno


Rubião deixou só 33 contos.
Obra mais sólida que a de
tantos que escreveram muito

AMANDA VOISARD/REUTERS

Papel dos pais. Além de entender melhor os temas escolhidos pelas crianças, é preciso dar abertura para as leituras online, sejam elas de ficção ou não
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