O Estado de São Paulo (2020-06-02)

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A8 Política TERÇA-FEIRA, 2 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


ELIANE


CANTANHÊDE


O


presidente Jair Bolsonaro
recebeu um relatório do
Exército e outro da Agência
Brasileira de Inteligência (Abin)
mostrando com gráficos, curvas epi-
demiológicas e estudos científicos
que o isolamento social era, como é,
a forma mais eficaz de conter a disse-
minação e as mortes pela covid-19.
O que ele fez? Deixou para lá, se é
que não jogou no lixo, junto com as
orientações da OMS e as pesquisas
sérias sobre a cloroquina.
Isso confirma que, ao contrário
do que disse na reunião de 22 de
abril, o presidente não está preocu-

pado com a qualidade dos relatórios
de inteligência da Polícia Federal, dos
órgãos de informações de Exército,
Marinha e Aeronáutica e da própria
Abin. Na verdade, ele não dá a menor
bola para eles.
O importante, para Bolsonaro, não é
ter relatórios de inteligência, e de técni-
cos inteligentes, para refletir, tomar
decisões e governar. Ele só quer infor-
mes que confirmem o que ele acha –
como no caso do isolamento social – e
que avisem direitinho se alguém está
se metendo com sua família, amigos e
aliados. Não é questão de inteligência,
é de interesse.

Para que Bolsonaro precisaria da
Abin (órgão de assessoramento direto
da Presidência), se ele tem todas as cer-
tezas? Quando os relatórios da Abin e
das Forças Armadas chegam, ele já foi
emprenhado pelos ouvidos por filhos,
gurus, empresários que financiam fake
news contra instituições e por puxa-sa-
cos variados que pululam à sua volta –
como de qualquer presidente.
“Se os fatos não correspondem à ver-
são, danem-se os fatos.” Se os dados
não correspondem à vontade do presi-

dente, danem-se também. E assim vai-
se vivendo, e morrendo, com Bolsona-
ro jogando relatórios fora, indo a aglo-
merações golpistas, exibindo-se em he-
licópteros, jet skis e cavalos, com meio
milhão de infectados, 30 mil mortos e
uns malucos replicando a macabra Ku

Klux Klan na porta do STF.
É chocante, mas não é novidade a
guerra de Bolsonaro com ciência, esta-
tística, pesquisas, estudos internacio-
nais e racionalidade, para prestigiar
achismos, teorias e maluquices em no-
me de uma ideologia que ninguém en-
tende direito, mas em torno de 30% de
brasileiros seguem obtusamente. O pas-
sado condena. E se repete o tempo to-
do. Desde a campanha, por exemplo, o
presidente desconfiava de pesquisas e
das urnas eletrônicas e depois até já acu-
sou, sem mostrar qualquer prova, que a
própria eleição foi fraudada. É inédito
que seja o vencedor a denunciar fraude.
O cientista Ricardo Galvão foi demiti-
do do Inpe porque os dados sobre des-
matamento da Amazônia (como os da
Abin sobre isolamento) diferiam do
que o presidente exigia. Novos estudos
confirmaram os de Galvão, o desmata-
mento em abril foi o maior em dez anos
e a destruição da Mata Atlântica tam-
bém só aumenta. Aliás, com o ministro
Ricardo Salles aproveitando a “distra-

ção” com a pandemia para passar boi-
adas, as coisas podem piorar muito.
Assim, dados científicos de Saú-
de, Ambiente e Educação não va-
lem. Bolsonaro não quer, nem tem
paciência, para estudos sobre temas
nacionais e estratégia. Ao acusá-lo
de querer interferência política na
PF e acesso direto aos relatórios de
inteligência, o ex-ministro Sérgio
Moro se refere a dados que possam
ter uso político contra familiares e
aliados, como “10 a 12 deputados do
PSL”, ou de espionagem contra ad-
versários. (Na mesma cesta, podem
estar o Coaf e a Receita.)
Ah! Ontem, o presidente criticou
as posições de Moro contra o aumen-
to de posse e porte de armas e a favor
de medidas duras contra contamina-
dos pela covid-19 que pusessem pes-
soas em risco deliberadamente. Nos
dois casos, Moro se pautou em da-
dos científicos e estatísticas. Mas er-
rou. Não era inteligência que o chefe
esperava dele, da PF, da Abin...

E-MAIL: [email protected]
TWITTER: @ECANTANHEDE
ELIANE CANTANHÊDE ESCREVE ÀS TERÇAS E
SEXTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Ao exigir relatórios, Bolsonaro
não visa dados estratégicos, mas
sim de aliados e adversários

Julia Lindner / BRASÍLIA


O presidente Jair Bolsonaro
está decidido a recriar o Mi-
nistério da Segurança Públi-
ca, separado da Justiça. Se-
gundo seus interlocutores, o
presidente aguarda apenas o
melhor momento para colo-
car o plano em prática, uma
vez que ainda há resistências
internas sobre aumentar o nú-
mero de pastas. Integrantes
da bancada da bala na Câma-
ra, que fazem lobby para ter
um ministério dedicado de
forma exclusiva ao tema, têm
reunião marcada no Palácio
do Planalto nesta semana pa-
ra tratar do assunto.
A ideia de dividir a pasta ga-
nhou força com a exoneração
do ex-ministro Sérgio Moro,
que exigiu a unificação da Justi-
ça e da Segurança Pública em
um superministério antes de as-
sumir o cargo. Com a mudança,
a estrutura hoje comandada
por André Mendonça ficará es-
vaziada, sem seus órgãos mais
importantes, como a Polícia Fe-
deral, o Departamento Peniten-
ciário Nacional (Depen) e a Polí-
cia Rodoviária Federal (PRF).
Um dos principais cotados pa-
ra assumir o novo Ministério da
Segurança Pública, o ex-deputa-
do Alberto Fraga (DEM) esteve
na terça-feira passada no Palá-
cio do Planalto. Na ocasião, de-
fendeu a divisão das pastas. “Se
você pegar a estrutura da Se-
nasp (Secretaria Nacional de Se-
gurança Pública) e criar o minis-
tério não há acréscimo nenhum
de despesa, a não ser o salário
do ministro. Só isso”, defendeu
Fraga na ocasião.
No início de maio, após a de-
missão de Moro, Bolsonaro ad-
mitiu que Fraga teria chance de
ser nomeado ministro. “É meu
amigo desde 1982”, justificou.
Uma tentativa de dividir os


ministérios em janeiro deste
ano quase precipitou a saída de
Moro do cargo. Na ocasião, Bol-
sonaro chegou a anunciar que
estudava a separação em reu-

nião no Palácio do Planalto
com secretários estaduais de se-
gurança. Diante da repercussão
negativa e a sinalização de que
estava esvaziando seu então

“superministro”, recuou.

Quarta onda. O líder da Frente
Parlamentar da Segurança Pú-
blica, a chamada bancada da ba-
la, Capitão Augusto (PL-SP),
afirmou ao Estadão/Broadcast
que a expectativa é recriar o mi-
nistério até o mês que vem. Na
visão do deputado, é preciso se
preparar para a “quarta onda”
da crise do coronavírus, que en-
volve um possível aumento na
violência no fim do ano.
“A crise econômica sempre
vem acompanhada de um au-
mento da violência. Então, se-
ria o momento de recriar (o Mi-
nistério da Segurança), já se pre-
parando para essa quarta onda
que virá em decorrência da pan-
demia. A primeira onda é da saú-

de, a segunda da economia, ter-
ceira a da política e a quarta é da
segurança”, disse Augusto.
Quando assumiu o cargo, no
fim de abril, André Mendonça
chegou a sondar o coronel Araú-
jo Gomes, ex-comandante da Po-
lícia Militar de Santa Catarina,
para assumir a Secretaria Nacio-
nal de Segurança Pública. A no-
meação, no entanto, não saiu e o
cargo está vago desde a demis-
são do antigo titular da secreta-
ria, o general Teophilo Gaspar,
no início do mês passado. “Eu
estou em conversa com o minis-
tro (Mendonça), mas em relação
à Secretaria Nacional da Segu-
rança Pública. Nos próximos
dias é que vou saber como vai se
encaminhar”, afirmou o coronel
ao Estadão/Broadcast.

O ex-ministro da Justiça e Segu-
rança Pública, Sérgio Moro, afir-
mou ontem, em nota, que o pre-
sidente Jair Bolsonaro, ao pres-
sionar por políticas de flexibili-
zação da posse e porte de armas
de fogo, desejava promover
uma “rebelião armada” contra
as medidas de isolamento so-
cial determinadas por governa-
dores e prefeitos, como forma
de reduzir o ritmo de contágio
da covid-19.
No mesmo texto, Moro diz
que “não é medida responsá-
vel” a revogação de portarias
que aumentavam o controle e
rastreamento de armas e muni-
ções de armas de fogo, confor-
me revelou o Estadão em abril.


“Sobre políticas de flexibiliza-
ção de posse e porte de armas,
são medidas que podem ser legi-
timamente discutidas, mas não
se pode pretender, como deseja-
va o presidente, que sejam utili-
zadas para promover espécie
de rebelião armada contra medi-
das sanitárias impostas por go-
vernadores e prefeitos, nem
sendo igualmente recomendá-
vel que mecanismos de contro-
le e rastreamento do uso dessas
armas e munições sejam sim-
plesmente revogados, já que há

risco de desvio do armamento
destinado à proteção do cida-
dão comum para beneficiar cri-
minosos”, escreveu Moro. “A re-
vogação pura e simples desses
mecanismos de controle não é
medida responsável.”
A divulgação da nota foi uma
resposta ao presidente, que, ho-
ras antes, ao conversar com
apoiadores em frente ao Palá-
cio do Alvorada, acusou o ex-mi-
nistro de ter agido de forma “co-
varde” ao não se manifestar, na
reunião ministerial do dia 22 de
abril, sobre a portaria que revo-
gou a possibilidade de prisão pa-
ra quem descumprisse medidas
de distanciamento social. Na
reunião, Bolsonaro pressionou
Moro a assinar uma portaria pa-
ra ampliar o limite para a com-
pra de munições no País e defen-
deu armar a população contra
governantes que impõem qua-
rentena, “para impedir uma di-
tadura no País”.
A declaração do presidente

ocorreu após ele ser abordado
por um apoiador em uma cadei-
ra de rodas que se disse vítima
de um assalto. Segundo o relato
do homem, ele é comerciante e
afirmou que, por estar desarma-
do, não conseguiu se defender.
“Para vocês entenderem um
pouquinho quem estava do

meu lado. Essa IN (instrução
normativa) 131 é da Polícia Fede-
ral, mas por determinação do
Moro. É uma instrução normati-
va, ignorou decretos meus e ig-
norou lei para dificultar a posse
e porte da arma de fogo para as
pessoas de bem”, afirmou Bol-
sonaro a apoiadores. A norma

citada pelo presidente foi publi-
cada em 2018, antes de Moro as-
sumir a pasta, e trata de procedi-
mentos relativos a registro, pos-
se, porte e comercialização de
armas de fogo e munição.

Isolamento. Bolsonaro ainda
citou uma outra portaria, que
previa prisão para quem des-
cumprisse medidas de distan-
ciamento social, para atacar o
ex-ministro da Justiça. “Assim
como essa IN, tem uma porta-
ria que o novo ministro revogou
que, apesar de não ter força de
lei, orientava a prisão de civis.
Por isso que naquela reunião se-
creta, o Moro, de forma covar-
de, ficou calado. E ele queria
uma portaria ainda, depois, que
multasse quem estivesse na
rua. Perfeitamente alinhado
com outra ideologia que não
era nossa”, disse. “Graças a
deus ficamos livres disso”, com-
pletou o presidente.
Na nota, Moro defendeu o iso-
lamento social como medida
mais eficaz de combate à pande-
mia do novo coronavírus e criti-
cou o que classificou como
“ofensas e bravatas” do presi-
dente. / RAYSSA MOTTA, FAUSTO
MACEDO e J.L.

PARA LEMBRAR

lFlexibilização

Moro diz que Bolsonaro desejava


promover uma ‘rebelião armada’


Inteligência? Que nada!


Em julho de 2018, o então pre-
sidente Michel Temer sancio-
nou a lei que criou o Ministé-
rio da Segurança Pública. A
pasta passou a abrigar órgãos
como PF, Polícia Rodoviária
Federal e Departamento Peni-

tenciário Nacional – até en-
tão subordinados ao Ministé-
rio da Justiça. Eleito, Jair Bol-
sonaro fundiu Segurança Pú-
blica e Justiça e o “supermi-
nistério” foi assumido por
Sérgio Moro. Em janeiro, Bol-
sonaro passou a cogitar a re-
criação da pasta da Segurança
Pública, o que agravou a crise
com o então ministro.

PGR dá aval


para prorrogar


inquérito


Lobby pela retomada do ministério parte de integrantes da bancada da bala na Câmara; Bolsonaro espera melhor momento para o anúncio


ADRIANO MACHADO /REUTERS - 12/5/

“Sobre políticas de
flexibilização de posse e
porte de armas, não se pode
pretender, como desejava o
presidente, que sejam
utilizadas para promover
espécie de rebelião armada.”
Sérgio Moro
EX-MINISTRO DA JUSTIÇA

Em nota, ex-ministro


rebate presidente que,


mais cedo, o acusou de


ter atitude ‘covarde’ na


reunião do dia 22 de abril


Ex-juiz. Moro critica ‘ofensas e bravatas’ do presidente

Temer separou
ministério

BRASÍLIA

A Procuradoria-Geral da Repú-
blica (PGR) vai avalizar pedido
da Polícia Federal (PF) para
prorrogar por 30 dias as investi-
gações sobre a suposta tentativa
do presidente Jair Bolsonaro de
interferir politicamente na cor-
poração. O procurador-geral da
República, Augusto Aras, tam-
bém vai pedir que Bolsonaro
preste depoimento por escrito.
A decisão final sobre a prorro-
gação do inquérito será do rela-
tor do caso no Supremo Tribu-
nal Federal (STF), Celso de Mel-
lo. Auxiliares de Bolsonaro ava-
liam pedir a suspeição de Celso
de Mello nesta investigação. Pa-
ra eles, a mensagem do decano a
interlocutores na qual compara
o Brasil à Alemanha nazista con-
figuraria “crime de segurança
nacional”. Assessores jurídicos,
no entanto, descartam por ora
adotar a estratégia.

Fake news. O presidente do
Supremo, Dias Toffoli, marcou
para o dia 10 o julgamento so-
bre a continuidade ou não das
apurações de outro inquérito, o
das fake news. Na última quin-
ta-feira, o ministro Edson Fa-
chin, submeteu o caso para o co-
legiado, optando por não conce-
der a liminar pedida por Aras
para suspender a apuração, que
atingiu empresários e aliados
de Bolsonaro. A PF intimou on-
tem investigados para que pres-
tem depoimento nos próximos
dias. / RAFAEL MORAES MOURA,
JUSSARA SOARES e BRENO PIRES

GABRIELA BILO / ESTADÃO - 23/1/

Planalto decide recriar pasta da Segurança


Custo. Alberto Fraga, um dos cotados para assumir a pasta: ‘Não há acréscimo de despesa, a não ser o salário do ministro’
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