O Estado de São Paulo (2020-06-03)

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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 3 DE JUNHO DE 2020 Política A


Daniel Bramatti


O Senado adiou ontem a votação
de um polêmico projeto de lei pa-
ra combater as chamadas “fake
news”, em meio a um bombar-
deio de críticas de especialistas e
entidades defensoras de direitos
de usuários de internet. Grupos
bolsonaristas também se articu-
laram no ataque à proposta.
O projeto que estava na pauta
de ontem para votação é de au-


toria do senador Alessandro
Vieira (Cidadania-SE), e seu
teor havia sido negociado com
algumas organizações da socie-
dade civil. Pela manhã, porém,
o relator da proposta, Angelo
Coronel (PSD-BA), apresentou
uma nova versão, com modifica-
ções em quase todos os pontos
importantes.
A partir daí, a Coalizão Direi-
tos na Rede, que reúne entida-
des, pesquisadores e ativistas,
passou a pressionar pelo adia-
mento da votação, por conside-
rar que havia risco de “violação
de direitos fundamentais dos ci-
dadãos”. Uma nota da coalizão
afirmou que a proposta de Coro-
nel afirmou trazia restrições às
liberdades individuais e dava

margem a censura.
A nota ganhou o respaldo de
agências de fact-checking e de
entidades que defendem liber-
dade de expressão e direitos de
usuários das redes, além das
principais empresas internacio-
nais do setor de internet:
Google, Facebook, Twitter,
Instagram e WhatsApp. Pouco
depois, o adiamento da votação
foi anunciado pelo próprio
autor do projeto e pelo
presidente do Senado, Davi
Alcolumbre (DEM-AP).
Pablo Ortellado, professor da
USP e pesquisador do tema da
desinformação, resumiu em
uma postagem no Facebook as
principais restrições dos
especialistas ao relatório de

Coronel: “Obriga RG, CPF,
comprovante de endereço e
foto para ter conta em rede
social; proíbe plataformas de
moderar conteúdo; dá acesso
de dados cadastrais à polícia,
sem ordem judicial, e cria
sistema de pontos, meio
chinês, meio Black Mirror” –
referência a uma série de
televisão que mostra um futuro
transformado de forma
distópica pela tecnologia.
O destino da proposta
original de Alessandro Vieira é
incerto. O senador estava
trabalhando de forma
articulada com os deputados
Tabata Amaral (PDT-SP) e
Felipe Rigoni (PSB-PSB), mas
ontem eles anunciaram a
apresentação de um novo
projeto na Câmara, focado
“exclusivamente em
transparência e combate a
robôs não identificados”.
“Nosso projeto não trata
mais sobre checagem de fake

news e desinformação”,
anunciou Tabata, no Twitter.
“Eliminamos os pontos para os
quais não há consenso e vamos
manter ações que possam
diminuir, de imediato, o mal
que as fake news causam.”

Conceito. O fim da ênfase no
tema “fake news” decorre, entre
outros pontos, da dificuldade de
conceituar esse problema no
projeto de lei. Não há consenso
sobre a melhor forma de definir
notícias fraudulentas, nem
mesmo entre especialistas.
Agências de fact-checking

participaram de articulação
para suprimir este e outros
pontos da proposta a ser votada.
Uma das versões do projeto
de Alessandro Vieira definia
desinformação como
“conteúdo, em parte ou no
todo, inequivocamente falso ou
enganoso, passível de
verificação, colocado fora de
contexto, manipulado ou
forjado, com potencial de
causar danos individuais ou
coletivos, ressalvado o ânimo
humorístico ou de paródia”.
Esse trecho acabou
suprimido pelo próprio autor.
Uma nova versão encarregava o
CGI (Comitê Gestor da
Internet) de, no prazo de 12
meses, debater uma definição
com organizações da sociedade
civil, para então apresentar
uma nova proposta legislativa
sobre o tema. Na proposta mais
recente de Tabata e Rigoni, na
Câmara, o CGI não fica com
essa atribuição.

Vera Rosa
Julia Lindner / BRASÍLIA


O presidente da Fundação Cultu-
ral Palmares, Sérgio Camargo,
classificou o movimento negro
como “escória maldita”, que abri-
ga “vagabundos”, e chamou Zum-
bi de “filho da puta que escraviza-
va pretos”. A portas fechadas, Ca-
margo também manifestou des-
prezo pela agenda da “Consciên-
cia Negra” e prometeu botar na
rua diretores da autarquia que
não tiverem como “meta” a de-
missão de um “esquerdista”.
As afirmações do presidente
da Fundação Palmares foram fei-
tas durante reunião com dois ser-
vidores, no dia 30 de abril. O Esta-
dão teve acesso ao áudio da con-
versa e apurou que o encontro
ocorreu, na tarde daquele dia, pa-
ra tratar do desaparecimento do
celular corporativo de Camargo.
Ao ser cobrado pelo ressarcimen-


to do telefone, ele ficou irritado e
alegou que o aparelho sumiu no
período em que estava afastado
do cargo, por decisão judicial.
No diálogo, Camargo diz que
havia deixado o celular numa ga-
veta da fundação e insinua que
o furto pode ter sido proposital,
com o intuito de prejudicá-lo. É
nesse momento que ele se refe-
re ao movimento negro de for-
ma pejorativa. “Eu exonerei
três diretores nossos (...). Qual-
quer um deles pode ter feito is-
so. Quem poderia? Alguém que
quer me prejudicar, invadir es-
se prédio para me espancar, in-
vadir com a ajuda de gente da-
qui... O movimento negro, os va-
gabundos do movimento ne-
gro, essa escória maldita”, disse
o presidente da Fundação Pal-
mares. “Agora, eu vou pagar es-
sa merda aí”, completou, numa
referência ao telefone.
A gravação veio à tona na es-
teira dos protestos antirrascis-
tas nos EUA após a morte do se-
gurança George Floyd, asfixia-
do por um branco. Discípulo do
escritor Olavo de Carvalho, gu-
ru do bolsonarismo, Camargo
se apresenta no Twitter como
um “negro de direita, antiviti-

mista, inimigo do politicamen-
te correto, livre”. Jornalista de
formação, ele coleciona polêmi-
cas. Em um post recente, após o
assassinato de Floyd – vítima da
brutalidade policial norte-ame-
ricana –, Camargo afirmou, por
exemplo, que “nosso inútil mo-
vimento negro tenta i4 mportar
para o Brasil os atos anarquistas
e criminosos do Black Lives Mat-
ter, a antifa negra dos EUA”.
Na conversa com os dois servi-
dores da Palmares, um deles
coordenador de gestão, Camar-
go afirmou que seu afastamento
da autarquia, por três meses,
ocorreu porque suas opiniões
em redes sociais foram censura-
das. Na época, a Justiça conside-
rou suas declarações, minimizan-
do o crime de racismo, incompa-
tíveis com o cargo. Camargo rela-
tou que, por causa dessa suspen-
são, teria de devolver o salário de
dezembro e tentaria parcelar o
débito em dez vezes. Logo de-
pois, ameaçou fazer retaliações.
Entre um palavrão e outro, o
presidente da Fundação Palma-
res afirmou que o processo para
tirá-lo da instituição “não vai
dar em nada” porque teria havi-
do “usurpação” do poder do pre-

sidente Jair Bolsonaro. “Esses
filhos da puta da esquerda não
admitem negros de direita. Vou
colocar meta aqui para todos os
diretores, cada um entregar um
esquerdista. Quem não entre-
gar esquerdista vai sair. É o míni-
mo que vocês têm que fazer”.

Expressão. Sob o argumento
de que suas opiniões refletem “li-
berdade de expressão”, Camar-
go mais uma vez criticou Zumbi
dos Palmares, que dá nome à au-
tarquia. “Não tenho que admi-
rar Zumbi dos Palmares, que, pa-
ra mim, era um filho da puta que
escravizava pretos. Não tenho
que apoiar agenda consciência
negra. Aqui não vai ter, vai ter
zero da consciência negra”.
O Ministério Público Federal
encaminhou representação à

Procuradoria da República no
Distrito Federal, no mês passa-
do, pedindo que o presidente da
Fundação Palmares responda na
Justiça por improbidade admi-
nistrativa. A iniciativa foi toma-
da depois de Camargo ter deter-
minado, no dia 13 de maio – data
da abolição da escravatura –, a pu-
blicação de uma série de artigos
depreciativos sobre Zumbi, nas
redes e no site da instituição.
No áudio ao qual o Estadão
teve acesso, Camargo também
se referiu a uma mãe de santo
como “macumbeira” e avisou
que não daria verba para terrei-
ros. “Tem gente vazando infor-
mação aqui para a mídia, vazan-
do para uma mãe de santo, uma
filha da puta de uma macumbei-
ra, uma tal de Mãe Baiana, que
ficava aqui infernizando a vida
de todo mundo”, disse ele, numa
referência a Adna dos Santos.
Conhecida como Mãe Baiana,
Adna é uma das lideranças mais
atuantes do candomblé no Distri-
to Federal. “Não vai ter nada para
terreiro na Palmares enquanto eu
estiver aqui dentro. Nada. Zero.
Macumbeiro não vai ter nem um
centavo”, garantiu Camargo. Em
outro trecho, ele trata com des-

dém a cultura afrodescendente.
“Eu não vou querer emenda des-
sa gente aqui. Para promover ca-
poeira? Vai se ferrar”, esbravejou.
A Defensoria Pública da
União (DPU), que analisa recur-
so contra a nomeação de Camar-
go, é definida por ele como um
órgão “miserável” e “totalmen-
te aparelhado, (...) de esquerda”.
Em nota divulgada ontem, Ca-
margo lamentou o que chamou
de “gravação ilegal” de uma reu-
nião interna. Afirmou que a Fun-
dação Palmares está em “sinto-
nia” com o governo Bolsonaro e
sob um novo modelo de coman-
do, voltado para a população.
“(...) Não apenas para determina-
dos grupos que, ao se autointitu-
larem representantes de a toda
população negra, histórica e deli-
beradamente se beneficiaram do
dinheiro público”, escreveu. “In-
felizmente, ainda existem, na ges-
tão pública, pessoas que não assi-
milaram esta mudança e tentam
desconstruir o trabalho sério que
está sendo desenvolvido.”
lReunião
“Os vagabundos do
movimento negro,
essa escória
maldita.”
Sérgio Camargo
PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO
PALMARES

Rafael Moraes Moura / BRASÍLIA


O procurador-geral da Repú-
blica, Augusto Aras, disse on-
tem que, no seu entendimen-
to, as Forças Armadas podem
ser usadas em ações pon-
tuais, como garantir a lei e a
ordem num eventual cenário
de ruptura institucional. O
presidente Jair Bolsonaro e
seus apoiadores têm citado o
artigo 142 da Constituição, de
forma distorcida, segundo es-
pecialistas ouvidos pelo Esta-
dão, para justificar uma inter-
venção militar para resolver a
crise do governo com o Supre-
mo Tribunal Federal (STF).
Para a Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), no entanto,
o artigo não permite isso.
As declarações de Aras foram
dadas ao programa Conversa
com Bial, da TV Globo, ontem
de madrugada. Mais tarde, ele
divulgou nota em que afirma
que as instituições estão “fun-
cionando normalmente” e que
a Constituição brasileira “não
permite intervenção militar”.
“A Constituição não admite
intervenção militar. Ademais,
as instituições funcionam nor-
malmente. Os poderes são har-
mônicos e independentes entre
si. Cada um deles há de praticar
a autocontenção para que não
se venha a contribuir para uma
crise institucional. Conflitos en-
tre Poderes constituídos, asso-
ciados a uma calamidade públi-
ca e a outros fatores sociais con-
comitantes, podem culminar
em desordem social”, escreveu
Aras. “As Forças Armadas exis-
tem para a defesa da pátria, para
a garantia dos poderes constitu-
cionais e, por iniciativa de quais-
quer destes, para a garantia da


lei e da ordem, a fim de preser-
var o regime da democracia par-
ticipativa brasileira.”
O procurador-geral se mani-
festou após ser cobrado a dar

explicações sobre declarações
feitas no programa de TV. Ao
apresentador, Aras afirmou:
“Um poder que invade a compe-
tência de outro poder, em tese,
não deve merecer a proteção
desse, garante da Constituição.
Porque se os poderes constituí-
dos se manifestarem dentro
das suas competências, sem in-
vadir as competências dos de-
mais poderes, nós não precisa-
mos enfrentar uma crise que
exija dos garantes uma ação efe-
tiva de qualquer natureza.” In-
dagado se o Brasil está próximo

desse cenário, Aras respondeu:
“Não será o procurador-geral o
catalisador de uma crise institu-
cional dessa natureza”.

Repercussão. A posição de
Aras gerou críticas dentro e fo-
ra do Ministério Público Fede-
ral. Para o subprocurador-geral
da República Nicolao Dino,
“contraria o que diz a Constitui-
ção, pois considera a falsa pre-
missa de que a democracia é tu-
telada pelas armas.”
“É uma visão equivocada do
regime democrático e do siste-

ma de freios e contrapesos, pois
este funciona a partir do equilí-
brio entre os Poderes Executi-
vo, Legislativo e Judiciário, e
sob a fiscalização do MP (art
127, CF). Num estado demo-
crático de direito, o crivo de
qualquer possível conflito en-
tre Poderes é o Judiciário, sen-
do o filtro último o STF”, acres-
centou Dino. Para um outro in-
tegrante da PGR, Aras clara-
mente recuou na nota, em rela-
ção ao que disse na entrevista,
como forma de reduzir danos.
No Twitter, o ministro do

STF Gilmar Mendes afirmou
que é “ incompatível com a
Constituição de 1988 a ideia de
que as forças armadas podem fe-
char o STF ou o Congresso”. “O
Exército não é milícia”, disse.
A OAB divulgou ontem um pa-
recer jurídico em que conclui
que o artigo 142 da Constituição
não autoriza uma intervenção
militar. Para a entidade, a Carta
não confere às Forças Armadas
a “atribuição de intervir nos
conflitos entre os Poderes em
suposta defesa dos valores cons-
titucionais, mas demanda sua
mais absoluta deferência peran-
te toda a Constituição”.
“A interpretação que confere
às Forças Armadas a atribuição
de um Poder Moderador, ao
contrário, ignora os limites
constitucionais a elas impos-
tos, para livrá-las de qualquer
controle constitucional, tor-
nando-as a intérprete máxima
da Carta Cidadã”, diz o parecer.
Bolsonaro e apoiadores citam
o artigo 142 para criar a narrati-
va de que não seria ilegal um de-
creto de “intervenção militar”
para conter o que consideram
excessos do Supremo Tribunal
Federal. Juristas sem vínculos
com o governo consultados pe-
lo Estadão, porém, afirmam
que ao incentivar esse entendi-
mento, presidente flerta com
crimes de responsabilidade.
O Ministério da Defesa afir-
mou que as Forças Armadas
“sempre cumpriram as suas atri-
buições constitucionais previs-
tas no artigo 142, sem necessida-
de de parecer jurídico oficial,
não estando previsto no referi-
do artigo ‘intervenção militar’
conforme já ressaltado publica-
mente, por mais de uma vez”. /
COLABOROU TANIA MONTEIRO

lAlternativa

Após críticas, senadores adiam


votação de projeto sobre fake news


Camargo chama movimento negro de ‘escória maldita’


lPoderes

Depois de afirmar que ‘um poder que invade competência de outro não deve merecer proteção’, procurador-geral atenua fala em nota


“Nosso projeto não trata
mais sobre checagem de
fake news e desinformação.
Eliminamos os pontos para
os quais não há consenso.”
Tabata Amaral
DEPUTADA (PDT-SP)

Proposta foi alterada por


relator na véspera da


análise pelo plenário;
entidades e empresas


pediram mais prazo


NA WEB
Portal. Ouça
os áudios de
Sérgio Camargo

estadao.com.br/e/camargoaudios
6

Em reunião fechada,


presidente da Fundação


Palmares diz ainda que


‘macumbeiro não vai ter


um centavo’ da autarquia


“A Constituição não admite
intervenção militar. As
instituições funcionam. Os
poderes são harmônicos e
independentes entre si”.
Augusto Aras
PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

GABRIELA BILO / ESTADAO-28/11/

Militares podem atuar em crise, diz Aras


Procurador-geral da República. Augusto Aras durante sessão do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília
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