O Estado de São Paulo (2020-06-03)

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A12 QUARTA-FEIRA, 3 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Internacional


Beatriz Bulla
CORRESPONDENTE / WASHINGTON

O discurso incendiário do
presidente Donald Trump,
que defendeu uma repressão
dura contra os protestos nos
EUA, agravou ainda mais a si-
tuação. As manifestações con-
tra o racismo e a violência po-
licial, que chegaram ao oita-
vo dia, tiveram ontem mais
gente na rua do que o habi-
tual em Nova York, Los Ange-
les e Washington.
Em Nova York, uma multi-
dão desceu a Primeira Avenida
e se concentrou na Foley Squa-
re nas primeiras horas da tarde.
Protestos também ocorreram
em outros pontos da cidade, co-
mo Brooklyn e Queens. As aglo-
merações preocupam as autori-
dades sanitárias, que temem
uma nova onda de contamina-
ções na cidade mais afetada pe-
la covid-19 no país.
Atlanta, Los Angeles e Hous-
ton também registraram uma
concentração grande de pes-
soas, assim como a capital, que
viveu uma madrugada caótica
depois da violência registrada
na segunda-feira, quando a polí-
cia usou bombas de gás e balas
de borracha para retirar os ma-
nifestantes da frente da Casa
Branca – o objetivo era abrir ca-
minho para Trump posar para
fotos diante da Igreja de St.
John segurando uma Bíblia na
mão.
Os manifestantes acabaram
se dispersando pelos bairros de
Washington e foram caçados
durante a madrugada. A segu-
rança foi reforçada. Veículos
blindados da Guarda Nacional
cercaram a Casa Branca e cruza-
mentos estratégicos. Helicópte-
ros deram rasantes durante a
noite, jogando luz sobre quem
estivesse na rua.
De acordo com o New York Ti-
mes, citando fontes do Departa-
mento de Justiça, a ordem para
reprimir os protestos pacíficos
diante da Casa Branca foi dada
pessoalmente pelo secretário
de Justiça, William Barr. A deci-
são foi criticada por democra-
tas – e também por alguns repu-
blicanos.
“Donald Trump transformou
o país em um campo de batalha,
alimentada por velhos ressenti-
mentos e novos medos”, afir-
mou Joe Biden, adversário do
presidente nas eleições de no-
vembro. “É isso o que queremos
ser? É isso que queremos passar
para nossos filhos e netos?” Mui-
tos viram no discurso de Biden,
feito na Filadélfia, o relança-
mento de sua campanha, até en-

tão discreta em razão da pande-
mia de coronavírus.
Alguns aliados também se
queixaram, embora o tom das
críticas tenha sido mais ame-
no. “A questão é, foi certo usar
gás lacrimogêneo para abrir ca-
minho para que o presidente ti-
rasse uma foto? Claro que
não”, afirmou o senador Tim
Scott, único negro republicano
no Senador.
A diocese episcopal de
Washington, que é comandada
por uma mulher, Mariann Bud-
de, também reclamou do presi-
dente. “Foi um ultraje”, afir-
mou Mariann. “O presidente

usou a Bíblia e uma das igrejas
da minha diocese, sem nos per-
guntar, como cenário para uma
mensagem antiética dos ensi-
namentos de Jesus e de tudo o
que nossa igreja prega.”

Em queda. Alguns analistas,
porém, preferiram explicar o
gesto de Trump – que não é reli-
gioso e não frequenta a igreja.
Pesquisas do Public Religion Re-
search Institute, realizadas em
abril, mostram que o presiden-
te perdeu apoio entre os evan-
gélicos brancos (11 pontos por-
centuais), católicos brancos (
pontos porcentuais) e protes-
tantes brancos (18 pontos por-
centuais).
Ontem, foi a vez de Trump
fazer um afago aos católicos. Ao
lado da primeira-dama, Mela-
nia, ele esteve no santuário na-
cional dedicado a João Paulo II,
em Washington. Os dois posa-
ram para fotos diante da está-
tua do papa, mas não escapa-
ram de uma nova saraivada de
críticas.
As mais duras vieram do arce-
bispo de Washington, Wilton
Gregory. “Acho desconcertan-
te e repreensível que qualquer
instalação católica se permita

ser tão flagrantemente manipu-
lada de uma maneira que viola
nossos princípios religiosos”,
disse o arcebispo. “Ele (João
Paulo II) certamente não tolera-
ria o uso de gás lacrimogêneo
para silenciar, espalhar ou inti-
midar os manifestantes para ti-
rar fotografias em frente a um
lugar de oração e paz.”
Diante dos ataques, a Casa
Branca convocou seus aliados
mais fiéis, que ontem defende-
ram as últimas ações do presi-
dente. “A imprensa caiu na táti-
ca dos agitadores profissio-
nais”, disse o senador republica-
no Marco Rubio. “Todos sa-
biam que a multidão tinha de
ser dispersada em razão do to-
que de recolher. E esperaram a
polícia entrar em ação para ter a
história que queriam e dizer
que os policiais atacaram mani-
festantes pacíficos.”
Kellyanne Conway, assesso-
ra da Casa Branca, respondeu à
bispa da igreja de St. John. “A
igreja não é dela. A Bíblia não é
dela. Não examinamos o cora-
ção e a alma das pessoas ou jul-
gamos a fé ou por que o presi-
dente quis caminhar até lá”, dis-
se Kellyanne. “Precisamos de
mais orações, não menos.”

Oitavo dia. Manifestações contra racismo e violência policial tiveram mais gente do que o habitual em Nova York, Houston, Los Angeles


e Washington; democratas e até alguns republicanos condenam decisão do presidente de usar a força para dispersar aglomerações


PARIS


Os franceses ganharam um pre-
sente ontem: os cafés, símbolos
de Paris, abriram as portas de-
pois de um longo período de iso-
lamento social. No primeiro dia
da nova fase, apesar das restri-
ções, foram registradas várias
aglomerações nos bares e res-
taurantes da capital.
A população também recupe-
rou ontem a liberdade de viajar
a vários pontos do país sem jus-
tificativa. As conquistas, po-


rém, devem ser aproveitadas
com prudência, segundo o go-
verno, que teme uma nova onda
da pandemia, que já provocou
mais de 28 mil mortes no país e
paralisou grande parte da eco-
nomia francesa.
“Estou emocionada”, disse
Martine Depagniat, enquanto
saboreava um expresso na par-
te externa do Café de la Co-
médie, a dois passos do Museu
do Louvre e do Teatro Co-
médie-Française. “Eu realmen-
te senti falta do sabor de um ver-
dadeiro expresso. Acredito que
as pessoas precisavam recupe-
rar alguma normalidade.”
Na região de Butte aux Cail-
les, Barthélémy Bru, de 30 anos,
termina de instalar as mesas e
cadeiras na área externa do res-
taurante Les Tanneurs de la But-

te, deixando no mínimo um me-
tro entre as mesas, conforme
exigido pelas autoridades para
reduzir os riscos de contágio.
“É um grande dia. Esperamos
que os clientes voltem”, disse
Bru, confiante no dia ensolara-
do e nos 25º C da primavera pari-
siense.
A alguns metros dali, Petro
Jaupi, dono do restaurante Au-
berge de la Butte, desinfeta as
mesas antes de receber os pri-
meiros clientes. “Esperamos
que o clima continue bom, por-
que tudo o que temos são as
áreas externas”, explica.
O governo francês decidiu ini-
ciar a fase 2 da flexibilização do
confinamento após a queda do
número de contágios registra-
da desde o início da primeira
etapa, em 11 de maio. Na práti-

ca, significa o fim da proibição
de deslocamentos a mais de 100
quilômetros do domicílio, uma
medida muito aguardada pelos
moradores das grandes cidades

e por famílias separadas duran-
te mais de dois meses.
“É possível que no próximo
fim de semana eu consiga ver
meus netos em Nantes”, disse

Linda Espallargas, que vive em
Paris. “Mas vou no meu carro
para ficar bem isolada, pois te-
nho mais de 65 anos.”
Após a reabertura de parques
e jardins, no sábado, as praias,
museus, monumentos, zoológi-
cos e até os teatros também fo-
ram liberados ontem, mas com
o respeito ao distanciamento e
o uso obrigatório de máscara.
Os cinemas só devem reabrir na
fase 3, a partir de 22 de junho.
Os cafés, bares e restauran-
tes ficaram fechados por mais
de dois meses. A partir de ago-
ra, na região de Paris, eles só
poderão utilizar as áreas exter-
nas para receber clientes. Al-
guns estabelecimentos, no en-
tanto, não devem retomar as
atividades, pois não são rentá-
veis sem o serviço interno. “De
qualquer maneira, estou otimis-
ta”, disse Hervé Becam, vice-
presidente da União de Indús-
trias da Hotelaria. / AFP

l A ideia de interromper por um
dia as atividades nas redes so-
ciais para protestar contra o racis-
mo surgiu do blecaute proposto
pela indústria fonográfica. Rapida-
mente, a manifestação ganhou o
apoio de celebridades, que resol-
veram postar uma imagem preta
no Instagram, Twitter e Face-
book, acompanhada da hashtag
#blackouttuesday (Blackout Tues-
day). Entre os artistas que partici-
param estavam Susan Sarandon,
Rihanna, Elton John, Taylor Swift,
Justin Bieber, Shakira e mais
uma seleção de subcelebridades.
Mas o que parecia um gesto
simpático se tornou mais um moti-
vo de discórdia. Muitos ativistas
do movimento negro dos EUA
reclamaram que os famosos esta-
vam usando a hashtag #blackli-
vesmatter, o que direcionava os
quadrados pretos para as redes
sociais do grupo Black Lives Mat-
ter, empurrando as mensagens

relevantes para baixo da página,
longe dos olhos da população.
Houve também quem acusasse
de oportunismo celebridades
sem histórico de ativismo social.
“Percebi que muita gente que não
postou nada nos últimos dias inva-
diu a internet com esses quadra-
dos pretos. Depois de um silêncio
constrangedor, agora você posta
uma tela preta para se sentir me-
lhor”, escreveu a modelo Emily
Ratajkowski.
O protesto original, da indústria
fonográfica, foi considerado um
sucesso, com adesão de Apple,
YouTube, Amazon, Disney e Net-
flix. O Spotify inseriu 8 minutos e
46 segundos de silêncio em algu-
mas playlists – tempo que Geor-
ge Floyd esteve no chão imobiliza-
do pela polícia de Minneapolis.

Retórica incendiária de Trump agrava


protestos contra racismo nos EUA


lCríticas

Símbolos de Paris, cafés reabrem com normas rígidas


JUSTIN LANE/EPA/EFE

Revolta. Manifestantes protestam na Foley Square, em Nova York: aglomerações preocupam autoridades sanitárias, que temem novo avanço da pandemia

Celebridades levam


manifestação para


as redes sociais


“Donald Trump
transformou o país
em um campo de batalha,
alimentada por velhos
ressentimentos e novos
medos. É isso o que
queremos ser? É isso
que queremos passar
para nossos filhos e
netos?”
Joe Biden
CANDIDATO DEMOCRATA À
PRESIDÊNCIA

BERTRAND GUAY / AFP

Liberação. Franceses correram para cafés no primeiro dia

Serviços são feitos na


parte externa e seguindo


distanciamento; no


primeiro dia, porém,
muitos ignoraram regras

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