O Estado de São Paulo (2020-06-03)

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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 3 DE JUNHO DE 2020 Especial H5


Roberto DaMatta


l]


Luiz Carlos Merten


Ator, cantor, DJ. Ansel Elgort
tem estado em evidência de-
pois que seu nude no chuveiro
viralizou e ajudou a arrecadar
uma fortuna para um hospital
dos EUA neste período de qua-


rentena. Em 2014, ele fez (mui-
to) sucesso em dupla com Shai-
lene Woodley em A Culpa É das
Estrelas. Três anos depois fez a

atração desta quarta, 3, no Cine-
ma Especial da Globo, após a no-
vela Fina Estampa.
Em Ritmo de Fuga – com sua
cara de anjo. Elgort faz Baby,
motorista de fuga que é ás do
volante no thriller de Edgar
Wright. Baby está sempre de fo-
ne de ouvido, para tentar esque-
cer o zumbido que ficou como
herança de um acidente de in-
fância. Isso faz com que a trilha
divida o destaque com o elenco.
O elenco, sim, porque o fil-
me também tem Lily James, co-
mo a mulher amada que vai fa-
zer Baby querer abandonar a vi-

da criminosa, e dois vence-
dores do Oscar, Jamie Foxx
e o hoje banido Kevin Spa-
cey, defenestrado por sua
conduta abusiva como pre-
dador sexual gay.
Baby conseguirá recons-
truir sua vida? Edgar Wright
veio do clipe e do cinema de
zumbis (Todo Mundo Quase
Morto). Fez Homem-Formiga
antes de Em Ritmo de Fuga. É
de cortar o fôlego. Baby, o car-
ro envenenado e o The Jon
Spencer Blues Explosion,
Bellbottoms. Você vai torcer
pelo moleque transgressor.

Sem intervalo


ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

A


pandemia forçou o não “sair
de casa” e o “isolamento so-
cial”. Do ponto de vista medi-
cinal e epidêmico, não há o que dis-
cutir. Mas há muito o que dizer so-
bre o que isso significa, porque ficar
sozinho é muito mais rotineiro em
sociedades individualistas e relati-
vamente igualitárias do que nos paí-
ses onde a casa é um espaço que vai
além da família fundada por um ca-
sal e fundada no amor romântico.
Pois, entre nós, a casa contém pes-
soas enlaçadas por carne e sangue,
congregando muitas gerações, além
de uma heterogeneidade fundada
na escravidão. Na senzala, confor-
me a incômoda demonstração-de-
núncia de Gilberto Freyre. Do escra-
vismo, fomos mais ou menos para a
criadagem e hoje o isolamento tortu-
ra as “donas de casa” mais ou menos
feministas socialistas, porque ela su-
prime essas pós-escravas, chama-
das de “empregas domésticas”, que
fazem tudo para seus patrões, perpe-

tuando gloriosa e inconscientemente
o nosso jamais politizado viés aristo-
crático. Base de um enraizado fascis-
mo de direita e de esquerda.
*
Estamos confinados em casa e, mais
que isso, a rua entrou casa adentro,
pois o vírus é abusado e injusto nas
suas escolhas. É uma burrice óbvia di-
zer que ele atinge os mais pobres, já
que eles sempre foram oprimidos pela
nossa superior presença de “brancos
que se lavam” e de intelectuais politica-
mente supercorretos, cujas reuniões
em prol da liberdade são regadas a
bom vinho porque ninguém é de ferro.
*
Para um antropologista das antigas
como eu, “sair de casa” tem muitos sen-
tidos. Chamo atenção para o fato de
que sair da morada de modo utilitário
como faz um americano ou burguês eu-
ropeu ao fazer uma compra é muito
diferente do brasileiro. Para nós, o
“sair de casa” tem tudo a ver com a
necessidade de se livrar do autoritaris-

mo familiar. Ademais, muitos saem
descumprindo o bom senso médico
porque residem em cabanas miserá-
veis e sufocantes, as quais fazem com
que as ruas, feiras e praças sejam inex-
primivelmente atrativas.
Quando somos supercontrolados
em casa, cujas hierarquias inconscien-
tes (como mostrei no meu livro A Casa
& Rua, publicado há três décadas) são
as mais absolutas e o poder de um laca-
niano pai jamais é posto em causa sem
alto risco, o “ir para a rua” é um ato de
liberdade. Pois é na rua e com os “meni-
nos e meninas de rua” que podemos
falar e trocar experiências proibidas
em casa. Esse foi o meu caso.
Não que minha casa fosse ruim.
Mas eu precisava, como todo ser hu-
mano não imbecil, de sair da família e
da casa para poder comparar e discu-
tir certos assuntos importantes, proi-
bidos no lar. A sexualidade, por exem-
plo; a religião e, sobretudo, a dimen-
são básica do trabalho e da política,
dois temas profundamente ligados,

mas proibidos ou inibidos em casa.
Por muitos motivos. O principal sen-
do o da profunda injustiça, havida co-
mo natural, de ter nascido numa casa
na qual os negros eram subordinados
e, na rua, eu aprendia que seria possí-
vel discutir um sistema mais justo e
mais equitativo.
Como – eis o ponto! – discutir igual-
dade e justiça social, quando na casa se
vive um regime de plena injustiça e bru-
tal desigualdade? Um dado chocante:
não saber o nome completo das nossas
empregadas...
*
Vejam o problema: se a rua nos tira-
va de casa, onde estávamos literal-
mente “trancados”, ela nos punha em
contato com algo novo e até hoje pro-
blemático no Brasil. Refiro-me à im-
pessoalidade e à eventualidade de en-
contros e contextos regidos por igual-
dade (como a fila, alvo de um outro
livro, Fila & Democracia, escrito em
colaboração com Alberto Junqueira),
e escolhas.
Conforme escrevi muitas vezes, os
laços amorosos e afetivos da casa (que
ampliam o desequilíbrio de um presi-
dente eleito com o dever de, no míni-
mo, discipliná-los) são o esqueleto das

aristocracias nas quais as posições
de poder eram ocupadas automati-
camente por descendência. Os fi-
lhos do rei seriam reis! Esse era o tal
“direito divino” que as revoluções
liquidaram.
Ora, os princípios que governam
os laços de família são o exato opos-
to dos elos que singularizam os rela-
cionamentos da rua. Os do lar, por
serem dados e não escolhidos, são
hierarquizados e “aristocráticos” –
mesclados de corporeidade e basea-
dos em idade e gênero. Já os da rua,
da praia, escola e da praça – os “de
fora” – são impessoais e igualitários.
Assentados em preferências e esco-
lhas. São, reitero o que tenho escri-
to, individualizados e formam a ba-
se da tal democracia tão falada e tão
pouco entendida nesse nosso obscu-
ro Brasil.
Quando vivemos, portanto, a ca-
sa sem o seu cósmico contraponto,
a rua; quando não chegamos ainda a
perceber que casa e rua devem ope-
rar ajustando os seus princípios bási-
cos, sofremos as escolhas e angús-
tias de um igualitarismo existencial
forçado. Haja, como diz uma queri-
da amiga, pratos para lavar...

Infância Clandestina
(Argentina/Brasil, 2011). Dir. de Benjamin
Avila, roteiro de Marcelo Müller e Benjamin
Avila, com Ernesto Alterio, César Troncoso,
Teo Gutiérrez Moreno, Violeta Palukas.

Juan ou Ernesto? A história do
garoto que leva uma vida du-
pla acompanhando a família.
Os pais e o tio militam na clan-
destinidade, contra a ditadu-
ra argentina, na década de


  1. Precisam disfarçar-se,
    trocar de identidade. O garo-
    to Juan agora chama-se Ernes-
    to. Apaixona-se por uma cole-
    guinha de classe, e isso pode
    complicar tudo. O filme foi co-
    produzido com o Brasil e é
    bem bom. / L.C.M.
    CURTA!, 22h05. COLORIDO, 112 MIN.


ELGORT,


VELOZ E


‘EM RITMO


DE FUGA’


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A casa sem a rua

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