O Estado de São Paulo (2020-06-03)

(Antfer) #1

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H6 Especial QUARTA-FEIRA, 3 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Caderno 2


Leandro Karnal


l]


TOYGER

SELVAGEM MISTURA


DE TIGRE COM GATO


ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Alexandra Marvar / NYT


Não faz muito tempo que os feli-
nos selvagens estavam associa-
dos à ideia de glamour, classe e
criatividade. Salvador Dalí trou-
xe sua jaguatirica para o St. Re-
gis. Tippi Hedren cochilava
com leões na sua sala de estar
em Los Angeles. O guepardo de
Josephine Baker passeava pelos
Champs-Elysées, com colar de
diamantes e tudo. Na época, es-
sas criaturas selvagens eram
animais de estimação chiques.
Mas, em meados da década
de 1970, uma onda de conscien-
tização e de legislação sobre a
proteção da vida selvagem
transformou tanto a visão so-
bre a posse dos grandes felinos
quanto a possibilidade de com-
prá-los legalmente.
Enquanto isso, uma criadora
de gatos chamada Jean Mill esta-
va trabalhando numa alternati-
va mais prática: seu bichinho
malhado feito leopardo tinha
apenas dez centímetros de altu-
ra. Em seu gatil no sul da Califór-
nia, Mill inventou uma raça de
gatos domésticos chamada ben-
gala, que proporcionava aos ad-
miradores de felinos selvagens
o melhor dos dois mundos: im-
pecável pelugem de leopardo,
tamanho e comportamento de
gato doméstico.
A filha de Mill, Judy Sugden,
de 71 anos, deu continuidade a
seu legado. Sugden cresceu ob-
servando e ajudando a criar a
raça bengala. Apesar de ter se
formado em arquitetura, ela
percebeu que sua verdadeira vo-
cação estava no gatil. “Pensei:
‘caramba, não quero ser arquite-
ta’”, disse ela, “Na verdade, o
que eu queria projetar era um
gatinho lindo.”
Pode parecer um plano de
carreira incomum, mas o mer-
cado de gatos de designer é
próspero, com a oferta sem
conseguir atender à demanda e
mais de 40 mil criadores de ga-
tos domésticos registrados em
todo o mundo se dedicando a
fornecer gatos ragdoll, sphynx
e de outras raças muito admira-
das. (A Peta, organização que
defende o direito dos animais
nos Estados Unidos, argumen-
tou que essa clientela deveria
adotar gatos de abrigo).
Na década de 1980, Sugden
imaginou um gato doméstico
com uma pelugem brilhante e
listrada de laranja e preto, lem-
brando um tigre. Teria orelhas
pequenas e redondas, nariz lar-
go e barriga branca, como um
tigre. Pesaria uns 4,5 quilos,
mas se moveria pela sala como
se pudesse derrubar uma gaze-
la. Tudo isso evocaria a seduto-
ra “essência do tigre”, disse ela.
Seria chamado de toyger – um
tigre de brinquedo.
Uns vinte anos depois do ex-
perimento de Sugden, em 2007,


a Associação Internacional de
Gatos (Tica, na sigla em inglês)
declarou que o toyger era uma
raça de gatos de competição.
Deu na capa da revista Life. “Vai
ter uma febre de toyger”, disse à
revista a então presidente da Ti-
ca, Kay DeVilbiss.
E, de fato, o apelo dos gatos
de aparência selvagem só au-
mentou nos últimos anos, disse
Anthony Hutcherson, 45 anos,
escritor de discursos políticos,
criador de gatos bengala e anti-
go pupilo de Mill. “Acho que as
pessoas querem coisas que as
fazem pensar em ‘selvagem’ de
imediato”, disse ele em seu ga-
til, o Jungletrax, no sul de Mary-
land. “Padrões de alto contras-
te, coloração extraordinária,

aparência e proporções de um
leopardo de verdade.”
À medida que as preferências
foram mudando, disse Hutcher-
son, “o mercado explodiu” para
gatos bengala, com cerca de 2
mil criadores de Baltimore a Bu-
careste e cerca de 60 mil Benga-
la registrados em todo o mun-
do. Enquanto isso, Sugden esti-
ma que apenas 150 criadores
em todo o mundo estejam dedi-
cados ao toyger.
Entre eles está Anthony Kao,
50 anos, que cria toygers e ou-
tros animais, como papagaios e
espécies de corais, no seu gatil
Urban Exotic Pets, em Los An-
geles. “O principal motivo pelo
qual temos essa raça é que pode-
mos satisfazer a curiosidade hu-

mana pelo exótico sem um
exótico de verdade”, disse ele.

Ligres, beefalos e ursos gro-
lar. Os seres humanos vêm
combinando as características
favoráveis de um ser vivo com
outro há séculos, produzindo
criações que vão desde a maçã
Honeycrisp ao husky siberiano.
Tais esforços criativos têm ge-
rado – não sem uma grande obje-
ção dos ativistas do bem-estar
animal – espécies híbridas, co-
mo o beefalo, mistura de boi
com búfalo, o ligre, misto de
leão com tigre e até o urso gro-
lar (meio pardo, meio polar).
Mas, apesar das aparências, o
toyger nada tem a ver com o ti-
gre – pelo menos não mais que

os quase 96% do DNA de tigre
que há em todos os gatos do-
mésticos. Como seus cromosso-
mos evoluíram de maneira bem
diferente desde que as espécies
se separaram, 11 milhões de
anos atrás, criar um tigre selva-
gem a partir de um gato domes-
ticado hoje seria uma impossibi-
lidade biológica.
Então, como você consegue
que um gato doméstico se pare-
ça com um tigre sem ter ascen-
dência tigresa? “Não temos os
genes”, disse Sugden, em sua
casa em Los Angeles. “Então,
temos que fazer uma coisa
meio fake.”
Hoje, os gatinhos toyger po-
dem custar até US$ 5 mil – pre-
ço comparável ao de um tigre de
verdade no mercado america-
no. Se os preços parecem altos é
porque esses criadores devem
cobrir todo o custo de um dono
de pet (comida, contas de veteri-
nário, seguro de animais de esti-
mação), multiplicado muitas
vezes. Além disso, envolver-se
para valer com a evolução gené-
tica de uma espécie é um sério
investimento.
Os testes de DNA felino que

ajudam os criadores (e donos
de pet) a fazer exames sobre as-
pectos ou distúrbios morfológi-
cos custam a partir de US$ 89
por felino. E, para continuar a
pesquisa, Hutcherson recente-
mente trabalhou com um gene-
ticista de gatos, Dr. Chris Kae-
lin, da Universidade de Stan-
ford, para clonar um de seus ga-
tos campeões, a um custo de
US$ 25 mil.
Como cada gatinho é um in-
vestimento, os criadores nesse
nível tendem a avaliar seus po-
tenciais compradores com tan-
to rigor quanto um comprador
avalia o vendedor. Os contratos
geralmente estipulam que o
comprador deve castrar seu ga-
to e que nenhum gato acabará
num abrigo. Os gatos ainda vêm
com uma política de devolução
incondicional.
A localização também é um
problema: os gatos considera-
dos híbridos, como o bengala,
são ilegais em alguns lugares, co-
mo Nova York e Havaí. Em Rho-
de Island, os donos de toygers –
por causa da presença bengala
em sua linhagem – precisam de
uma permissão, assim como os
proprietários de jacarés, chim-
panzés ou lobos de estimação.
“Existe muita gente neste
mundo que não liga para o toy-
ger”, disse Sugden. “Tem mui-
ta coisa neste mundo para que
ninguém liga. Mas ninguém li-
gava para a Mona Lisa até des-
cobrirmos a existência da Mo-
na Lisa.” / TRADUÇÃO DE RENATO
PRELORENTZOU

lExótico

H


á 80 anos, em junho de 1940,
completou-se uma retirada
que é tratada como épica pe-
lo Ocidente: Dunquerque. Esse lu-
gar (entre a França e a Bélgica) apre-
senta um templo católico em meio
às areias, de onde deriva o nome:
igreja das dunas (dun-kerke).
O maior conflito da história huma-
na teve começo, na Europa, em se-
tembro de 1939. Derrotada a Polô-
nia, as divisões alemãs não pare-
ciam dispostas a bombardear seus
inimigos ocidentais. Os meses fi-
nais de 1939 e iniciais de 1940 foram
de tenebroso silêncio dos canhões a
Oeste. O período foi batizado de
Guerra de Mentira (em inglês, pho-
ney war; em francês, drôle de guer-
re). A vida transcorria em Londres,
Amsterdã, Bruxelas e Paris como se
não existisse um perigo nazista.
Os franceses tinham adotado pos-
tura defensiva e confiavam de for-
ma exagerada na sua imensa e custo-
sa Linha Maginot, uma rede de casa-
matas e concreto, armamentos sub-
terrâneos, depósitos de munições e
até hospitais e transporte nas pro-

fundezas do solo para enfrentar a guer-
ra que estava na memória dos velhos
marechais de Paris: um conflito de trin-
cheiras. Sim, em 1914, a Linha Maginot
teria sido poderosa e intransponível.
Mas, estávamos em 1940. O novo mun-
do era de aviões e de tanques decisi-
vos. Os ingleses, protegidos pela sua
poderosa marinha, deslocaram tropas
para a França. O povo das ilhas não
sofria uma invasão desde 1066 e isso
pode ter aumentado a confiança de
Londres. A confiança na tática defensi-
va foi exagerada.
Quando a guerra de mentira se tor-
nou de verdade, a rapidez da mudança
foi assustadora. A região acidentada e
com vegetação densa nas fronteiras da
França, Bélgica e Luxemburgo era con-
siderada uma barreira natural. Como
na Linha Maginot, o alto-comando
francês cometeu o erro de supor que
seria impossível para os tanques ale-
mães (Panzer) atravessarem o Rio Mo-
sa e as áreas ao redor. Curiosamente, a
floresta antiga parece ter dado sorte
duas vezes ao exército alemão: nas vitó-
rias de 1940 e na contraofensiva com-
batendo o avanço aliado, em 1944.

A tática das divisões de tanques pas-
sou a incorporar uma mobilidade
inédita e assustadora. Os veículos
avançavam muitos quilômetros por
dia e passaram com relativa facilidade
pelas Ardenas. Bélgica, Holanda, Lu-
xemburgo e a fronteira francesa foram
atacadas em poucos dias a partir de
dez de maio daquele ano (1940). Um
pouco antes, o movimento de avanço
já tinha atacado Dinamarca e Noruega.
A guerra relâmpago alemã (Blitzkrieg)
surpreendeu todos, Hitler inclusive.
Líderes de tanques e oficiais tomaram
decisões, aparentemente, sem um to-

tal controle de Berlim. As divisões fran-
cesas e inglesas foram sendo encurrala-
das em Dunquerque, uma praia aberta
e sem defesas naturais. Um soldado
francês e brilhante historiador, Marc
Bloch, escreveu, depois, a obra A Estra-
nha Derrota (Zahar). Churchill fez
uma análise do episódio na sua obra
Memórias da Segunda Guerra Mundial
(HarperCollins). Os dois autores são
excelentes, porém, ambos escreveram
após Dunquerque. A distância cronoló-
gica ajuda na clareza. Os fatos do mo-

mento estão imersos em brumas e sem
destino indicado.
Centenas de milhares de soldados
apanhados em uma armadilha podero-
sa. Os ingleses tomaram uma decisão
que se revelou sábia: enviar todos os
barcos disponíveis (de militares a bar-
cos de pesca e de turismo) para resga-
tar o máximo de homens do outro lado
do Canal. O resultado foi extraordiná-
rio: o número de resgatados foi imen-
samente superior ao esperado. A força
aérea alemã poderia ter causado o
caos bombardeando a praia e os bar-
cos. Os ataques foram relativamente
leves. Por que a Luftwaffe evitou usar
seu poderio? Há várias hipóteses, ne-
nhuma inteiramente satisfatória. Ou-
tro dado curioso é que o general ale-
mão (Gerd von Rundstedt) não com-
partilhava da ideia dos colegas oficiais
de ataques relâmpago e preferia cons-
truir pontos seguros de retaguarda.
Sua tática foi derrotada pelo alto-co-
mando germânico. Ele seria promovi-
do a Marechal de Campo logo em se-
guida. Premiou-se um militar que, se
tivesse feito valer sua estratégia, teria
impedido ou retardado o rápido avan-
ço sobre Dunquerque.
Na hora em que a expansão nazista
parecia irrefreável, despontou ainda
mais a liderança de Winston Chur-
chill. Sempre vale a pena ler seus livros

e ver o filme O Destino de Uma Nação
(Darkest Hour, 2017, direção Joe
Wright). Gary Oldman ganhou Os-
car pelo desempenho brilhante co-
mo primeiro-ministro britânico.
Também é forte ver Dunquerque
(Dunkirk, 2017, Christopher No-
lan). Acompanhe bons filmes e lem-
bre-se de que o objetivo dos roteiris-
tas e do diretor não é preparar alu-
nos para a prova do Enem. Obras
cinematográficas são sobre histó-
ria, jamais históricas em si. O filme
mira na narrativa cativante e nos
grandes prêmios e o júri de Oscar
nunca foi dominado por historiado-
res. Se houvesse essa reviravolta, o
cinema viraria uma boa fonte histo-
riográfica e o público correria das
salas. Dizendo de outra forma: todo
filme é histórico, pois sempre mos-
tra como um determinado momen-
to construiu a memória do passado.
Nenhum filme é “fiel” ao que ocor-
reu. Os cuidados de verossimilhan-
ça dos grandes estúdios servem pa-
ra conferir maior apelo comercial
ao produto. Discutir se um filme é
baseado em fatos reais é puro precio-
sismo. O principal argumento é o
mercado e a cabeça dos produtores.
Cinema pode ser arte e sempre é par-
te de uma indústria cultural. É preci-
so manter a esperança e a lucidez.

Cresce a demanda nos EUA por felinos híbridos e outros


animais associados à ideia de glamour e criatividade


MICHELLE GROSKOPF/NYT

“O principal motivo pelo
qual temos essa raça (toyger)
é que podemos satisfazer a
curiosidade humana pelo
exótico sem ser um
exótico de verdade”
Anthony Kao, CRIADOR

Legado. Judy Sugden, em sua casa em Los Angeles com seus toygers, deu seguimento ao mercado iniciado pela mãe, inventora da raça bengala

A hora da retirada


Quando a guerra de mentira se
tornou de verdade, a rapidez da
mudança foi assustadora
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