O Estado de São Paulo (2020-06-03)

(Antfer) #1

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A8 Política QUARTA-FEIRA, 3 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


VERA


MAGALHÃES


A


reação ao assassinato, pela po-
lícia de Minneapolis, do ex-se-
gurança George Floyd, em 25
de maio, foi o estopim para a eclosão
de manifestações que se espalharam
primeiro pelos Estados Unidos, mas
que começam a ganhar o mundo,
contra o racismo e o fascismo.
Não é a primeira vez que o mundo
assiste a movimentos de rua combina-
dos, que vão ganhando corpo e agre-
gando insatisfações sociais e políticas
antes latentes. Aconteceu em 1968.
Mais recentemente, ocorreu em 2013,
no Brasil e também em diversos paí-
ses. No ano passado, protestos varre-

ram diversos países da América Latina.
E agora? O que o movimento racial
dos Estados Unidos e os ainda localiza-
dos, mas inquietantes, confrontos no
Brasil entre bolsonaristas e oposicio-
nistas têm de inédito? O óbvio: são mo-
vimentos que, para além do chavão “co-
meçaram pacíficos, mas descambaram
para a violência”, ocorrem em meio à
maior pandemia em mais de um sécu-
lo. E isso não é um detalhe desprezível.
No momento em que a França, por
exemplo, começa a ensaiar uma reaber-
tura para o turismo e outras atividades
econômicas, Paris se viu com as ruas api-
nhadas de pessoas protestando também

contra a violência policial contra negros.
Os Estados Unidos e o Brasil nem che-
garam ainda a sair da quarentena, que
tanto lá quanto cá se dá de forma irregu-
lar, desordenada e tumultuada por pre-
sidentes ciclotímicos e desinteressa-
dos no combate efetivo ao coronavírus.
Não são os únicos traços em comum
das novas jornadas de junho, cuja di-
mensão ainda somos incapazes de pre-
ver. Se em 2013 os motivos iniciais po-
diam parecer frívolos, agora já se parte
de questões que, para dar significado

universal à frase repetida por Floyd pa-
ra o policial branco que o asfixiou, im-
pedem a sociedade de respirar.
Racismo, surgimento de um neofas-
cismo que incorpora elementos de su-
premacia racial e autoritarismo políti-
co, tudo turbinado pelas redes sociais,

um mundo assolado por mortes e de-
vastação econômica e um futuro que
ninguém ousa desenhar são compo-
nentes capazes de fazer a revolta social
escalar a níveis nem ensaiados há sete
anos, ou mais recentemente.
A Terra está em transe. Governantes
desprovidos de empatia social e com-
preensão de seu dever, como Jair Bolso-
naro e Donald Trump, encaram mo-
mentos cruciais como esses da história
da humanidade como oportunidades
vulgares para fotos, seja desengonça-
do em cima de um cavalo, como o nos-
so, ou portando uma Bíblia com a qual
não tem nenhuma intimidade, como
no do “amigo” artificialmente tingido.
O de cá copia o de lá, a ponto de
receber de bom grado, com reverência
tacanha, carregamentos rejeitados de
cloroquina do primo ab(e)astado que
se cansou antes de insistir num trata-
mento ineficaz.
A força das imagens de pessoas indo
às ruas contrariando o necessário dis-
tanciamento social mostra o quanto

governos são estéreis para condu-
zir nações nessa crise inédita. É
uma pandemia, como já houve ou-
tras até mais letais, mas ela chega
num mundo hiperpovoado, marca-
do por diferenças sociais, econômi-
cas e culturais brutais e incapaz de
uma governança solidária, algo que
garantiu o caminho em outros mo-
mentos-chave da História, como os
pós-guerras mundiais.
A Terra pode ser uma visão emo-
cionante quando observada, em to-
da a sua circunferência, pelas lentes
de um foguete que busca o infinito,
como nós, quarentenados de todo o
mundo, vimos no último fim de se-
mana no lançamento do Falcon 9.
Mas, assolada pela peste, pela ini-
quidade e pela mediocridade de al-
guns dos seus principais líderes, é
um planeta inóspito para os huma-
nos de 2020, que não hesitam em
encarar até o vírus e o risco de morte
para ir às ruas e poder gritar: “Não
consigo respirar”.

E-MAIL: [email protected]
TWITTER: @VERAMAGALHAES
POLITICA.ESTADAO.COM.BR/COLUNAS/VERA-MAGALHAES/

‘Não consigo respirar’


PERFIS ENTREVISTA


Danilo Pássaro e


Eduardo Moreira


ajudaram a criar dois


movimentos que


surgiram nos últmos dias


Jussara Soares / BRASÍLIA


O Ministério da Justiça determi-
nou a instauração de um in-
quérito para apurar o vazamen-
to de supostos dados do presi-
dente Jair Bolsonaro, de seus fi-
lhos, de ministros e aliados. O
pedido da investigação pela Po-
lícia Federal foi confirmado ao
Estadão pelo ministro da Justi-
ça, André Mendonça, ontem.
A divulgação dos dados ocor-
reu na noite de anteontem, em
perfis no Twitter que dizem ser
ligados ao grupo hacker Anony-
mous Brasil. Além de Bolsona-
ro, dados atribuídos a Carlos,
Eduardo e Flávio e aos minis-
tros Damares Alves e Abraham


Weintraub também foram ex-
postos. Uma das contas que va-
zaram informações foi suspen-
sa logo depois e o site em que
estavam armazenadas saiu do
ar. Entre os dados vazados estão
emails, telefones, endereços,
perfil de crédito, renda, nomes
de familiares e bens declarados.
O Anonymous atua em ou-
tros países e ressurgiu no do-
mingo, após a morte de George
Floyd durante uma abordagem
policial nos Estados Unidos. A
conta que vazou supostos da-
dos de autoridades brasileiras
ontem estava sem publicar no
Twitter desde outubro de 2018.
No domingo, anunciou a volta.
No Twitter, Mendonça afir-
mou que “as investigações (so-
bre o vazamento de informações)
devem apurar crimes previstos
no Código Penal, na Lei de Segu-
rança Nacional e na Lei das Or-
ganizações Criminosas”. O Pa-
lácio do Planalto e o Gabinete
de Segurança Institucional (G-

SI) não se manifestaram oficial-
mente sobre o vazamento até a
conclusão desta edição. Em re-
servado, auxiliares, no entanto,
confirmaram que os dados são
de Bolsonaro, mas disseram
que estão desatualizados.
O presidente afirmou, via re-
des sociais, que o episódio de
vazamento é “clara medida de
intimidação” do grupo hacker.
“Medidas legais estão em anda-
mento, para que tais crimes não
passem impunes”, disse Bolso-
naro no Facebook.
O vereador Carlos Bolsonaro
(Republicanos-RJ) confirmou
que os dados são verdadeiros.
“A turma ‘pró-democracia’ va-
zou meus dados pessoais e de
outros na internet. Após ter-
mos violações do direito à livre
expressão, agora ferem a priva-
cidade. Sob a desculpa de ‘com-
bater o mal’, justificam seus cri-
mes e fazem aquilo que nos acu-
sam, mas nunca provam”, disse
Carlos, em referência ao in-

quérito no Supremo Tribunal
Federal que apura fake news.
Na tarde de ontem o deputa-
do Eduardo Bolsonaro (PSL-
SP) afirmou que, assim como o

irmão e senador Flávio Bolsona-
ro (Republicanos-RJ), iria à polí-
cia registrar queixa. Flávio, no
Twitter, atribuiu o vazamento a
“marginais ‘pró-democracia’” e

disse que a PF já começou a
identificar os responsáveis.

‘Risco’. Além de Bolsonaro e
seus filhos, teriam sido alvo do
grupo hacker o deputado esta-
dual Douglas Garcia (PSL-SP),
aliado do presidente, e o empre-
sário Luciano Hang, dono da
Havan. Garcia também já havia
confirmado o vazamento de
seus dados pelo grupo. “Anony-
mous Brasil, de forma crimino-
sa, acaba de divulgar todos os
meus dados nas redes sociais.
Para que colocar os meus fami-
liares em risco? Para que divul-
gar o endereço de minha casa?
Os lugares em que trabalhei? Es-
tou indo agora mesmo na dele-
gacia fazer um boletim de ocor-
rência”, escreveu o deputado.
O Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Huma-
nos não confirmou a autentici-
dade dos dados atribuídos a Da-
mares, mas divulgou nota na
qual fala em “clara violação aos
direitos fundamentais à intimi-
dade, à vida privada, à honra e à
imagem”. / COLABOROU JULIA
LINDNER

Adriana Ferraz
Renato Vasconcelos


Enquanto alguns dos movi-
mentos em defesa da democra-
cia que surgiram nos últimos
dias foram criados por entida-
des que representam setores
da sociedade, como juristas ou
integrantes de movimentos de
renovação política, por exem-
plo, outros grupos começaram
a se juntar a partir da atuação
pessoal de seus líderes.
O motorista de aplicativo Da-
nilo Pássaro, 27 anos, por
exemplo, participou de um ato
político pela primeira vez no
domingo, quando foi à Aveni-
da Paulista protestar junto
com o movimento Somos De-
mocracia. O protesto, que reu-
niu integrantes de torcidas or-
ganizadas para se contrapor a
um ato a favor do presidente
Jair Bolsonaro, acabou em con-
fusão com a Polícia Militar,
que usou bombas de gás.
Morador da Brasilândia, bair-
ro da zona norte de São Paulo,
Pássaro é filiado ao PSOL e diz


que sua formação vem de suas
vivências na igreja, no movi-
mento estudantil e na arqui-
bancada do Corinthians.
“Cresci em Igreja Evangéli-
ca. Sempre gostei de estudar a
bíblia, mas via uma diferença
muito grande entre a prática
de muitas igrejas e os ensina-
mentos de Jesus, de olhar pe-
los mais necessitados”, disse.
Atualmente frequentador da
Igreja Batista, Pássaro, que é
formado em Teologia, chegou
a servir como missionário no
Haiti pela Igreja Bola de Neve.
Como estudante, o jovem
sempre frequentou a rede pú-
blica, onde tomou contato
com o movimento estudantil.
“Foi lá que eu conheci pessoas
ligadas a partidos políticos e
movimentos sociais e conse-
gui me aprofundar mais”, diz.
Integrante da Gaviões da
Fiel desde os 13 anos, ele afir-
ma que o movimento que le-
vou à criação do Somos Demo-
cracia nasceu entre os torcedo-
res, diante do que consideram
escalada autoritária do gover-
no federal. A tradição do clube
em apoio à democracia, conta
Pássaro, serviu de inspiração
para o movimento.
“A história da Democracia
Corintiana é uma diretriz para
a gente, mas não só o movi-
mento de Sócrates e Casagran-

de, toda a história do Corin-
thians.” A exposição que teve
após a participação no ato fez
com que Danilo fosse alvo de
ameaças nas redes sociais, em-
bora não o tenha levado a regis-
trar boletim de ocorrência.”
Na manhã de ontem, o uni-
versitário conversou com o Es-
tadão vestido com a camiseta
da seleção brasileira, frequen-
temente utilizada em protes-
tos de bolsonaristas. “A extre-
ma direita se apropria de sím-
bolos nacionais justamente pa-
ra cooptar o patriotismo abs-
trato da população e acho que
a gente chegou num momen-
to, dada essa disputa de narra-
tivas, de também nos apro-
priar dessas bandeiras, cami-
sas, símbolos”, afirma.

Além de dirigir o Somos De-
mocracia, Danilo é estudante
do curso de História da Univer-
sidade de São Paulo (USP).

Viralizou. Responsável por
criar e espalhar a hashtag (pala-
vra-chave) “Somos 70 por cen-
to”, compartilhada por usuá-
rios de diversas redes sociais
no último fim de semana, o
economista Eduardo Moreira
disse que não tinha grandes
pretensões. “A ideia surgiu
num debate. Apesar do aumen-
to da rejeição ao presidente
mostrada na pesquisa, os parti-
cipantes se mostraram frustra-
dos por conta dos 30% que
apoiam o presidente não te-
rem baixado de patamar”, dis-
se Moreira.

“Disse, então, a frase: ‘o pro-
blema do Brasil é que os 30%
se sentem como 70%. Os 70%
se sentem como 30%”. Senti
que a frase tinha acertado o al-
vo. Postei ela então no twitter
e ali começou o movimento.”
Segundo o economista, os re-
presentantes dos outros 30% -
que são, portanto, minoria - co-
locaram a maioria com medo
com seus robôs e estratégias
de difamação e violência. “Al-
guém que faça parte de um gru-
po de WhatsApp com 100 pes-
soas onde 5 são radicais bolso-
naristas não têm coragem de
se expor, por se sentir como se
minoria fosse. A ideia do movi-
mento é resgatar esse direito,
empoderar as pessoas para
que voltem a falar.”

Protestos agregam
convulsão social a uma
crise sem paralelo

‘Precisamos


unir todos os


democratas’


Fernando Guimarães,
coordenador ‘Direitos Já!’

lO decano do Supremo Tribunal
Federal (STF), ministro Celso de
Mello, arquivou anteontem o pedi-
do apresentado por partidos da
oposição para apreender os celu-
lares do presidente Jair Bolsona-
ro e de seu filho, vereador Carlos
Bolsonaro (Republicanos-RJ).
Celso, no entanto, alertou o
presidente de que descumprir
ordem judicial implica “transgre-
dir a Constituição, qualificando-
se, negativamente, tal ato de de-

sobediência presidencial”, o que
configuraria crime de responsabi-
lidade. No fim de maio, Bolsona-
ro disse que, mesmo que houves-
se decisão judicial, não entrega-
ria seu aparelho. “Tá na cara que
eu jamais entregaria meu celu-
lar. A troco de quê?”, afirmou.
PDT, PSB e PV haviam solicita-
do ao STF a apreensão dos apare-
lhos na investigação sobre supos-
ta interferência política do presi-
dente na Polícia Federal. Celso
concordou com a posição do pro-
curador-geral da República, Au-
gusto Aras, de que cabe ao Minis-
tério Público solicitar diligências,
e não a terceiros. / RAFAEL
MORAES MOURA

Inquérito vai apurar vazamento de dados de Bolsonaro


WERTHER SANTANA/ESTADÃO

lO fato de o Direitos Já reunir
representantes da direita, esquer-
da e centro aproxima o grupo do
movimentos das Diretas Já? É
por isso a semelhança no nome?
Sem dúvida. O momento é ex-
tremamente delicado e exige
demonstrações de responsabili-
dade histórica. Não é hora de
olharmos para o retrovisor, re-
moer diferenças ou fazer cálcu-
los eleitorais. Precisamos unir
todos os democratas em seus
gestos de grandeza no firme pro-
pósito de salvaguardar a demo-
cracia, afinal, é justamente ela e
somente ela que pode assegurar
a liberdade para as disputas dos
distintos projetos de sociedade.

lNa avaliação dos integrantes
do grupo, a democracia corre
perigo hoje no Brasil? De que
forma a sociedade deve se mobili-
zar contra avanços autoritários?
A democracia vem sendo mi-
nada a cada dia por esse gover-
no, cujo líder exercita a sua
forte vocação autoritária. Seu
projeto é o enfrentamento per-
manente das instituições repu-
blicanas, dos limites constitu-
cionais do exercício da Presi-
dência da República, do des-
monte de todos os avanços
democráticos e civilizatórios
conquistados pela sociedade.

lDe que forma esses outros gru-
pos que estão surgindo podem
ajudar nessa defesa da democra-
cia? A tendência é que todos se
tornem uma coisa só?
Todos os movimentos que sur-
girem em defesa da democra-
cia são muito bem-vindos. Es-
peramos contar com a partici-
pação de todos eles no nosso
grande ato dia 26. Cada um
tem as suas características e
não há razão para que se tor-
nem uma coisa só.

Decano nega pedido


de apreensão de


celular de presidente


Perfis que divulgaram as


informações dizem ser


ligados a grupo hacker;


presidente fala em


tentativa de ‘intimidação’


Paulista. Integrante da torcida Gaviões da Fiel, Danilo Pássaro esteve na Paulista domingo

Motorista e


economista


à frente das


mobilizações


Danilo Pássaro, motorista, e Eduardo Moreira, economista

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