National Geographic - Portugal - Edição 231 (2020-06)

(Antfer) #1

O


s combates acabaram há 75 anos, mas
Maria Rokhlina, hoje com 95, ainda
sente a guerra nas suas mãos, em cada
dedo. Nascida na Ucrânia, sonhou tor-
nar-se piloto. Em 1941, quando tinha
16 anos, os nazis infiltraram-se profun-
damente no território da sua pátria.
“Passei da carteira da escola para a
guerra”, diz. Tornou-se médica de
combate e prestou serviço nas forças armadas
soviéticas durante quatro anos.
Um dia, quando ajudava a transportar um sol-
dado ferido através das águas agitadas do rio Dnie-
pre, o remo partiu-se e teve de remar com as mãos
nas águas geladas. As dores que sente nos dedos
continuam a ser tão fortes que ainda hoje é injec-
tada nas articulações para aliviar o sofrimento.
Em 1942, Maria ficou retida na cidade cercada
de Estalinegrado. A batalha arrastou-se durante
mais de seis meses, reduzindo a cidade a escom-
bros e dizimando a população. As temperaturas de
Inverno costumavam descer até -20ºC. Maria refu-
giou-se com os soldados soviéticos numa fábrica
de tractores, mas não havia sequer um pedaço de
papel ou lenha para queimar. “Tínhamos de aque-
cer-nos uns aos outros com os nossos corpos”, diz.
“Fizemos ali um juramento: nunca nos esquecer-
mos de Estalinegrado, nunca nos esquecermos
daqueles a quem ficámos abraçados” naquilo a
que chama “círculos de aquecimento”.
Depois, há ainda aquelas recordações que
Maria Rokhlina tentou esquecer, mas não conse-
guiu: o calor dos intestinos de um soldado mori-
bundo, enquanto tentava reintroduzi-los no seu
abdómen. Ou como uma colega médica sua foi
violada e assassinada pelos alemães, que lhe cor-
taram os seios. “Não consigo perdoar-lhes aquilo
que fizeram e aquilo que vi.”
No entanto, à semelhança dos círculos de aque-
cimento, também os horrores forjaram vínculos.
Um soldado soviético prometeu-lhe que a pediria
em casamento se ambos sobrevivessem à guerra
na primeira vez que a viu. Estiveram casados
durante 48 anos. — Eve Conant

YEVSEI
RUDINSKY


Navegador soviético


A GUERRA CHEGOU para
Yevsei Rudinsky, estudante e ginasta,
quando o enviaram para um gabinete
de recrutamento e lhe disseram que o
país precisava de cem mil pilotos. “Eu
não sonhava com a aviação, mas
gostava muito de estudar”, conta
Yevsei, hoje com 98 anos. Atraído pela
cartografia e pela astronomia, recebeu
formação para se tornar navegador no
extremo setentrional da Rússia, onde
os pilotos polares ensinavam os mais
inexperientes a orientarem-se em
condições atmosféricas traiçoeiras,
sem mapas fiáveis. O seu baptismo de
guerra ocorreu nos céus sobre Kursk,
cenário da maior batalha de tanques
da guerra. “Era navegador de um
bombardeiro de mergulho, um
Petlyakov PE-2. Chamávamos-lhe
carinhosamente Peshka” [peão de
xadrez]. Recorda-se de só ter sentido
medo depois de aterrar. “Quando
vemos a quantidade de buracos que
há no nosso avião ou percebemos a
maneira como os Messerschmitts nos
atacaram, começamos a sentir medo.”
E acrescenta: “Quem não sente nada,
não é humano. E, no final, somos
todos humanos.” — Eve Conant


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