O Estado de São Paulo (2020-06-04)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-15:20200604:
O ESTADO DE S. PAULO QUINTA-FEIRA, 4 DE JUNHO DE 2020 Metrópole A


Falta medicamento


para sedar e


entubar pacientes


Sem esses remédios, a ventilação mecânica não pode ser feita de


forma adequada e o internado corre maior risco de morrer


Brasília mede


temperatura


no metrô


Érika Motoda


Demitido do Ministério da Saú-
de por, entre outros motivos, di-
vergir do presidente Jair Bolso-
naro quanto ao uso da cloroqui-
na no tratamento do novo coro-
navírus, Luiz Henrique Mandet-
ta fez uma referência irônica –
mas sem citar nomes – sobre o
medicamento durante o primei-
ro painel sobre saúde na Brazil
Conference at Harvard & MIT,
realizado ontem e transmitido
pelo Estadão. “Uma pessoa lei-
ga propor a cloroquina e outro


leigo fazer o protocolo que libe-
ra o medicamento no mesmo
dia é o mais próximo de um estu-
do duplo-cego que temos no
Brasil”, afirmou.
O ensaio clínico duplo-cego
consiste no desconhecimento
tanto do pesquisador como do
paciente sobre qual grupo o pa-
ciente se encontra durante o es-
tudo. No fim de abril, o Conse-
lho Federal de Medicina
(CFM) liberou o medicamento
após uma reunião com o presi-
dente no mesmo dia. Apesar de
reconhecer que não há ainda
comprovação de segurança e
eficácia do tratamento, o CFM
afirmou na ocasião que a libera-
ção ocorreu por causa da excep-
cionalidade da pandemia.
A professora e chefe do depar-
tamento de Saúde Global e Po-
pulação de Harvard, Marcia Cas-

tro, que também participou do
painel, criticou Bolsonaro e o
presidente dos Estados Uni-
dos, Donald Trump, por desva-
lorizarem a ciência. Ela credi-
tou especialmente à falta de li-
derança o cenário negativo dos
dois países. Para ela, o Brasil ti-
nha estrutura “de dar inveja a
outros países” para dar uma res-
posta efetiva à pandemia: o
SUS. Mas, por falta de uma boa
gestão federal, há “5.570 gover-
nanças paralelas, cada uma ten-
tando resolver o problema”.
Para Henrique Neves, dire-
tor-geral da Sociedade Benefi-
cente Israelita Brasileira Albert
Einstein, que tem contato tan-
to com o sistema público quan-
to com o privado, um melhor
diálogo entre os dois poderia
também ter resultado em uma
melhor contenção. “A área pú-
blica lotou (com doentes pelo co-
ronavírus) quando a área priva-
da ainda não tinha ocupado um
terço do que havia preparado.”

Fabiana Cambricoli


Além da dificuldade de am-
pliar o número de leitos de
UTI e respiradores, Estados
brasileiros enfrentam agora
a falta de sedativos e relaxan-
tes musculares usados na en-
tubação de pacientes graves
com covid-19. Sem esses re-
médios, a ventilação mecâni-
ca não pode ser feita de forma
adequada e o paciente corre
maior risco de morrer.
Segundo o Conselho Nacio-
nal de Secretários de Saúde (Co-


nass), todas as secretarias esta-
duais relataram à entidade ter
um ou mais medicamentos des-
sa classe em falta ou com esto-
que crítico. Já há investigações
abertas em ao menos dois Esta-
dos (Rio e Amapá) para apurar
óbitos de pacientes que não tive-
ram acesso a essas medicações.
Segundo médicos e gestores
ouvidos pelo Estadão, a situa-
ção deve-se principalmente à
crescente procura por esses me-
dicamentos por causa do alto
número de doentes que preci-
sam ser entubados e do período

prolongado de internação des-
ses pacientes em UTIs. “É um
uso prolongado e geralmente é
usada uma combinação de dro-
gas de acordo com a gravidade e
o objetivo. Todos ficaram falan-

do do risco de colapso por falta
de leito, mas agora temos o ris-
co da falta desses medicamen-
tos essenciais para a sobrevivên-
cia do paciente”, destaca Eder-
lon Rezende, membro do conse-
lho consultivo da Associação de
Medicina Intensiva Brasileira.
Com a alta inesperada na de-
manda, dificuldade de importa-
ção de matérias-primas e alta
do dólar, o mercado nacional
não estaria conseguindo suprir
a procura, dizem gestores. Se-
cretarias da Saúde consultadas
pelo Estadão informaram alta
de mais de 700% na utilização
desses medicamentos desde o
início da pandemia. Em Ala-
goas, o número de doses utiliza-
das do relaxante muscular rocu-
rônio subiu 787%. No Rio Gran-
de do Norte, o aumento na utili-
zação de anestésicos e betablo-
queadores foi de 200%. No Pa-
rá, a alta foi de 100%.
O rocurônio é o que reúne o
maior número de queixas de
problemas no abastecimento.
Levantamento feito pelo Co-
nass com todas as secretarias
da Saúde revelou que, das 25 pas-
tas que responderam ao ques-
tionário, 24 têm problemas no
abastecimento do item. Os nú-
meros foram apresentados on-
tem em reunião de comissão da

Câmara dos Deputados.
Presente no encontro, um re-
presentante no Conass relatou
que o órgão mandou ofício para
o Ministério da Saúde no dia 14
de maio solicitando auxílio do
governo federal aos Estados na
relação com fornecedores. O
problema foi tema de novo ofí-
cio, enviado no dia 29. Hoje, a
maioria desses medicamentos
é comprada diretamente pelos
Estados e municípios ou pelos
hospitais, mas as secretarias
avaliam que uma intervenção
do ministério junto à Anvisa e
aos fabricantes pode facilitar a
compra. Questionado, o minis-
tério não respondeu. Ao Co-
nass, prometeu auxiliar na nego-
ciação com fornecedores.
Também presente na reu-
nião, o presidente do Sindicato
da Indústria de Produtos Far-
macêutico (Sindusfarma), Nel-
son Mussolini, disse que labora-
tórios estão trabalhando em
máxima capacidade para dar
conta da demanda e agora a pro-
dução está normalizada. “Tive-
mos problema quando houve
lockdown na Índia e estamos
tendo dificuldades com frete in-
ternacional. O número de voos
foi reduzido e o preço subiu. An-
tes pagávamos US$ 2 por quilo
transportado e agora, US$ 15.”

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


O governo do Distrito Federal
testa um equipamento que veri-
fica automaticamente a tempe-
ratura corporal das pessoas na
entrada do estação do metrô na
rodoviária de Brasília, no cen-
tro da capital. Os passageiros
com febre, um dos sintomas da
doença, são abordados por pro-
fissionais de saúde e submeti-
dos a teste rápido de coronaví-
rus. A tecnologia é chinesa e
tem a capacidade de fazer a


análise de 30 pessoas por segun-
do. Os resultados são apresenta-
dos em uma tela, de modo que
qualquer transeunte pode veri-
ficar a própria situação.
As leituras são feitas por duas
câmeras colocadas nos portões
de embarque e desembarque do
metrô. Essas câmeras também
são capazes de identificar passa-
geiros sem máscara de prote-
ção facial. O acessório é de uso
obrigatório no Distrito Federal,
sob pena de multa de R$ 2 mil.
A tecnologia foi cedida por
uma empresa ao governo distri-
tal, sem custos, para um perío-
do de testes. Os equipamentos,
instalados na segunda-feira de-
verão permanecer fazendo as

medições por até 30 dias. Um
outro kit também foi instalado
no Palácio do Buriti, sede do go-
verno local.
Chefe da Unidade de Admi-
nistração da Rodoviária e Área
Central, José Martins de Olivei-
ra disse que após a fase de expe-
rimentos o governo vai avaliar o
custo-benefício. Cada câmera,
com os respectivos acessórios,
pode custar pelo menos R$ 60
mil. “A vantagem é que ela de-
nuncia quem não está com más-
cara e evita aglomerações, ao
permitir a leitura das tempera-
turas a distância”, disse Olivei-
ra. Cerca de 350 mil pessoas pas-
sam diariamente pela rodoviá-
ria. / VINÍCIUS VALFRÉ

Em evento, Mandetta ironiza recomendação de cloroquina


lNo Estado

OMS decide retomar testes com hidroxicloroquina. Pág. A16 }


Rio e Macapá


têm hospitais


investigados


BRAZIL CONFERENCE

Painel. Entre as conclusões, a necessidade de obter maior diálogo entre SUS e rede privada

‘Um leigo propor e outro


fazer o protocolo que


libera é o mais próximo


de um estudo duplo-cego
que temos’, afirmou


222%
Foi o aumento na utilização do
sedativo midazolam em São Pau-
lo em maio, na comparação com
janeiro e fevereiro.

RAHEL PATRASSO/REUTERS-12/5/

Crise. Falta de
medicamento
torna entubação
mais arriscada

Ao menos dois hospitais de refe-
rência para tratamento de co-
vid-19 no País são investigados
por suspeita de que a morte de
alguns pacientes tenha sido cau-
sada pela falta de medicamen-
tos utilizados na entubação.
No Rio, a Defensoria Pública
abriu ação para apurar os óbitos
de sete pacientes em maio no
Hospital Municipal Ronaldo
Gazolla por suposta falta de se-
dativos e anestésicos.
“A prefeitura admite dificul-
dades no abastecimento, mas
nega que tenha havido falta a
ponto de pacientes ficarem
sem. De qualquer forma, conti-
nuamos a investigação e solici-
tamos fiscalizações aos conse-
lhos de medicina e de farmá-
cia”, diz a defensora Alessandra
Nascimento, subcoordenadora
da coordenação de saúde e tute-
la coletiva da Defensoria.
Também em maio, o enfer-
meiro Evandro Costa, de 42
anos, morreu por covid-19 após
a Unidade Centro Covid 1, em
Macapá, afirmar que não conse-
guiria fazer sua entubação por
falta das medicações necessá-
rias. Segundo Amerson da Cos-
ta Maramalde, advogado que re-
presenta a família do enfermei-
ro, profissionais de saúde que
eram amigos do paciente chega-
ram a fazer uma mobilização pa-
ra encontrar os medicamentos
que permitiriam a entubação
de Evandro, mas, quando conse-
guiram, o enfermeiro já estava
morto.
A Secretaria Municipal da
Saúde do Rio informou que
abriu sindicância para apurar
os fatos no Hospital Ronaldo
Gazolla e que o procedimento
corre em sigilo até a sua conclu-
são. A pasta confirmou a dificul-
dade na aquisição dos medica-
mentos e diz estar fazendo
“constantes remanejamentos
dos estoques, conforme neces-
sidade para atender as unida-
des com maior demanda”. A fen-
tanila, por exemplo, está sendo
substituída por outros medica-
mentos com as mesmas fun-
ções, “uma vez que não há atual-
mente no mercado fornecedo-
res com disponibilidade para
venda e entrega do produto”.
A Secretaria Estadual da Saú-
de do Amapá não respondeu
aos questionamentos da repor-
tagem. / F.C.
Free download pdf