O Estado de São Paulo (2020-06-04)

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O ESTADO DE S. PAULO QUINTA-FEIRA, 4 DE JUNHO DE 2020 Especial H3


Caderno 2


Antonio Gonçalves Filho


O ano de 1964 foi marcado não
apenas pelo fatídico golpe mili-
tar que confiscou a liberdade de
artistas e intelectuais no Brasil.
Coincidência ou não, o ano re-
gistrou também uma mudança
de rota na obra do artista argen-
tino León Ferrari (1920-2013),
ele mesmo perseguido pela dita-
dura de seu país na época, a pon-
to de buscar refúgio no Brasil.
Ferrari estaria completando
100 anos em setembro, justo
motivo para a abertura de uma
exposição virtual, hoje, em ho-
menagem ao centenário de seu
nascimento (https://nararoes-
ler.art/exhibitions). Iniciativa
da Galeria Nara Roesler, que re-
presenta o artista, a exposição
conta com três dezenas de
obras de vários períodos e tem
como curador o venezuelano
Luis Pérez-Oramas, conhecido
por ter organizado uma históri-
ca Bienal de São Paulo, a trigési-
ma edição, em 2012.
Grande conhecedor de arte
latina – ele comandou a área
no Museu de Arte Moderna de
Nova York e hoje é assessor da
Galeria Nara Roesler, que tem
filial na cidade americana –, Pé-
rez-Oramas foi o curador da ex-
posição Tangled Alphabets no
MoMA, que reuniu, em 2009,
obras de León Ferrari e da artis-
ta brasileira de origem suíça
Mira Schendel. Os dois cria-
ram alguns de seus melhores
trabalhos no Brasil. Ferrari se
exilou em São Paulo em 1976 e
por aqui ficou até 1991. Para Pé-
rez-Oramas, sua passagem pe-
la cidade foi fundamental para
a definição do rumo de sua
obra derradeira, tanto como os
anos 1960 foram cruciais para
o desenvolvimento de sua lin-
guagem visual, em especial
1964, segundo o curador. Foi
nesse ano que ele realizou um
desenho seminal, Cuadro Escri-
to, origem de uma intensa bus-
ca pela fusão de signos gráficos
com a hermética caligrafia que
o levou à abstração.


Anticlerical. Artista político,
mais conhecido por suas obras
de caráter anticlerical, León
Ferrari foi além do panfletário,
reinventando a tradição da col-
lage ao introduzir elementos
que nem mesmo os cubistas
(Braque, Picasso) ou os surrea-
listas (Max Ernst) ousaram
acoplar à técnica. Há nas colla-
ges de Ferrari uma sofisticação
conceitual que obriga o espec-
tador a exercícios eruditos de
associação. “Ferrari reinven-
tou completamente a collage,
voltando-a para a desconstru-
ção do poder, como se verifica
em sua releitura do Juízo Final
de Michelangelo (1985), que,
submetido à defecação de pás-
saros, é um exemplo de obra
madura e também política, as-
sim como outras colagens que
conjugam figurações cristãs
com imagens eróticas orien-
tais”, observa o curador Pérez-
Oramas.
No centenário do artista ar-
gentino, conclui o curador, ele
queria destacar esse aspecto.
Num caminho oposto ao da po-
larização crescente no cenário
político, Ferrari evitou o dualis-
mo rasteiro, ampliando o deba-
te sobre o papel
das instituições
no mundo mo-
derno. Pérez-
Oramas lembra
que Ferrari foi
autor de uma car-
ta enviada ao en-
tão papa João
Paulo 2.º, pedindo que o infer-
no fosse revogado.


Inferno. Essa carta não era
um simples manifesto pessoal
contra o terror imposto pela
doutrina da Igreja, mas um ges-
to libertário de quem sofreu na
Terra o inferno imposto por
seus semelhantes. “Ele era um
homem muito discreto, apesar
da polêmica que envolve sua
obra”, observa o curador, lem-
brando que poucas vezes al-
guém ouviu Ferrari mencionar
sua tragédia pessoal, a perda
de um filho perseguido e mor-


to pela ditadura argentina.
Artista várias vezes censurado.
Ferrari tinha entre seus desafe-
tos o atual papa Francisco, que,
na época arcebispo de Buenos
Aires, chegou a proibir uma ex-
posição sua. Em 2004, o sacer-
dote pediu aos católicos uma
“jornada de jejum e orações”
contra sua obra e intercedeu pa-
ra fechar uma individual de Fer-
rari no Centro Cultural Recole-
ta, em Buenos Aires. Em 2007, a
Bienal de Veneza
dedicou a ele o
Leão de Ouro, as-
censão que culmi-
nou com a mos-
tra no MoMA de
Nova York em
2009, onde fo-
ram exibidos tra-
balhos pertencentes a séries
que também estão na exposição
virtual da Galeria Nara Roesler.
A galerista admite que o traba-
lho político de León Ferrari ain-
da assusta o mercado de colecio-
nadores, mas essa resistência
tende a diminuir com o interes-
se de museus internacionais
por sua obra, citando o espa-
nhol Museo Nacional Reina So-
fia como exemplo.
A instituição tem diversos
trabalhos de Ferrari, especial-
mente dos anos 1980, em sua
coleção, e vai promover uma
mostra retrospectiva dedicada

a ele em 2021, segundo o cura-
dor Pèrez-Oramas. Conside-
rando esse acervo, deverá ser
uma exposição direcionada ao
trabalho abstrato do artista. A
exposição virtual organizada
por Oramas vai numa outra di-
reção. Ao replicar a forma carac-
terística das línguas de fogo (co-
mo descritas no texto bíblico
de Atos 2), ele concebeu uma
tipologia abstrata, desenhos
que são, de acordo com o cura-
dor, “testemunhos de uma das
experiências mais dramáticas
na vida do artista, que figuram
como metáforas abstratas do
inferno judaico-cristão realiza-
das por alguém que, mais tarde
em sua vida, dirigiria uma carta
ao papa exigindo o cancelamen-
to da noção do Inferno”.

Galáxias. A obra abstrata de
León Ferrari não é tão conheci-
da como esses desenhos, gravu-
ras e colagens. Um dos exem-
plos na exposição é a escultura
de uma série exibida em São
Paulo pela primeira vez em
1978, na Pinacoteca do Estado,
por iniciativa da crítica Aracy
Amaral. Essas obras tridimen-
sionais, chamadas por ela de
“galáxias lineares”, conservam
o caráter poético de seu proces-
so embrionário, não desvincu-
lado, segundo o curador Pérez-
Oramas, do impacto que teve a

arte concreta brasileira sobre
sua criação. “A construção da
linha e a transparência apare-
cem em São Paulo, quando ele
mescla a tradição argentina e
europeia ao que ele viu no Bra-
sil dos anos 1970.”
Essas estruturas prismáti-
cas, que parecem gaiolas, algu-
mas em escala monumental, fo-
ram desenhadas, como lembra
o curador, para eventos partici-
pativos, performáticos e sono-
ros. Porém, como frisa Pérez-
Oramas, “o legado mais interes-
sante da produção brasileira de
Ferrari está ligado às releituras
da Bíblia e à denúncia dos horro-
res políticos e da violência insti-
tucional”.
Em sua longa temporada bra-
sileira, afastado da terra natal,
Ferrari integrou-se ao circuito
experimental paulistano, bus-
cando a revitalização da sua lin-
guagem artística por meio de
técnicas variadas, da heliogra-
fia e fotocópia à arte postal. No
retorno ao lar argentino, o artis-
ta voltou a produzir obras po-
líticas, denunciando os desapa-
recimentos registrados duran-
te a ditadura militar, como o de
seu filho Ariel, ativista político
que, ao lado da mulher grávida,
foi sequestrado e assassinado
pela ditadura argentina. León e
Alicia Ferrari nunca tiveram
acesso ao corpo do filho.

CENTENÁRIO DE LEÓN


FERRARI TEM MOSTRA


HEREGE


Artes*


NA ROTA OPOSTA À
DA POLARIZAÇÃO
POLÍTICA, FERRARI
SEMPRE EVITOU
O DUALISMO
RASTEIRO

FOTOS GALERIA NARA ROESLER

Escultura. Série em metal feita em São Paulo (anos 1970)

Revisão. ‘Juízo Final’ de Michelangelo com titica de aves

Nova caligrafia. Escrita hermética leva à rota da abstração

Série bíblica. Referências às ‘línguas de fogo’ da Bíblia e carta ao papa pelo fim do inferno

Artista argentino que viveu em São Paulo e foi premiado na


Bienal de Veneza ganha exposição virtual na Nara Roesler

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