O Estado de São Paulo (2020-06-04)

(Antfer) #1

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A8 Política QUINTA-FEIRA, 4 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


WILLIAM


WAACK


V


amos pegar o bastão deixado
pelo general Hamilton Mou-
rão, que se converteu na voz
política pública entre os militares. Ele
encerra seu mais recente artigo, aqui
no Estadão, dizendo agora ser mais
importante do que nunca a “necessi-
dade de uma convergência” em torno
de uma agenda mínima de reformas.
Mas, para isso, é preciso refletir sobre
o que está acontecendo no Brasil.
Neste exato momento, fora a tripla
crise de saúde, economia e política, o
que está acontecendo é um seriíssi-
mo embate entre a farda e a toga. O
pessoal da farda (incluindo os que aca-
baram de trocá-la pelo paletó e grava-

ta ou pelo pijama) está convencido de
que, se houve “extremismos”, “exage-
ros retóricos” e “falas impensadas” con-
tra instituições, isso empalidece diante
do que o pessoal da toga no STF impôs
para cercear os poderes do presidente
da República – uma usurpação acompa-
nhada igualmente por falas irresponsá-
veis e desonestidade intelectual.
No mínimo desde o julgamento do
mensalão o pessoal da toga andava divi-
dido, mas se uniu ao entender que o pes-
soal da farda dá suporte a um presidente
que pensa dispor de poderes imperiais,
desrespeita limites entre Poderes esta-
belecidos na Constituição, age por inte-
resses políticos próprios e pessoais para

solapar instituições e só não jogou o País
ainda numa irrecuperável crise institu-
cional pois eles, os da toga, baseados em
princípios e doutrinas, foram capazes de
esclarecer e impor limites (como no ca-
so de medidas de combate à covid-19).
Não há saída à vista para esse embate
pois ele é a expressão de duas fortes for-
ças políticas que ocuparam duas insti-
tuições. Não é só entre o pessoal da far-
da no palácio que reina a sincera convic-
ção de que o pessoal da toga expressa
um “establishment” (sim, é essa pala-

vra meio fora de moda que se usa para
falar do STF) que se articulou para de-
fender privilégios que vão de ganhos da
magistratura a benefícios fiscais e prote-
ções a setores empresariais, passando
pelo funcionalismo público. A luta do
“establishment”, portanto, é para impe-
dir a reforma do Estado representada

por Bolsonaro e sua eleição.
No outro lado, figuras do STF sem-
pre atentas aos ventos das redes so-
ciais e opiniões publicadas encaram
Bolsonaro e o que ele significa como
um perigo real para as instituições de-
mocráticas e o estado de direito. Consi-
deram suas ações políticas e o endosso
explícito que concede a movimentos
contra o Congresso e o Judiciário co-
mo ações políticas que não são apenas
arroubos retóricos. São, nesse entendi-
mento, parte do aberto intuito de des-
truir as normas mínimas do confronto
político, da civilidade e do próprio jo-
go democrático.
Os bombeiros de sempre, de um lado
e de outro, conseguem debelar incên-
dios pontuais. Mas não têm a capacida-
de de resolver a situação de fundo que
resulta agora num precário equilíbrio.
A saber: a “via jurídica” para destronar
Bolsonaro, uma possibilidade com a
qual uma parte do STF flerta, passa por
uma PGR que não vê condições técni-
cas de denunciar o presidente. A rota
para derrubar o presidente via TSE de-

pende desse órgão alterar jurispru-
dência – fora o tempo que isso leva.
Bolsonaro e sua turma de alopra-
dos não dominam as ruas, não
dispõem de apoio nas Forças Arma-
das para levar adiante uma “revolu-
ção” que só existe na cabeça de malu-
cos nos quais o entorno do presiden-
te presta muita atenção. Talvez en-
tendam que vociferar contra o STF
nada vai produzir de prático, a não
ser dar tempo para alternativas políti-
cas “de centro” (que podem incluir
facilmente o Centrão) se articula-
rem e solidificarem.
Em outras palavras, ninguém tem
forças para vencer ninguém. As cri-
ses econômicas e de saúde demons-
traram fartamente a “necessidade
da convergência” à qual o general
Mourão se refere, mas também co-
mo diminui o espaço político para
essa convergência. O maior efeito
da demonstração da crise está, po-
rém, em outro aspecto.
Para a tal “necessária convergên-
cia” precisa-se de liderança. Quem?

‘Abin paralela’ de


Bolsonaro tem


de PMs a aliados


A falta que faz liderança


Tânia Monteiro /BRASÍLIA


Na última semana, o presiden-
te Jair Bolsonaro decidiu tro-
car mais uma vez o número
do telefone celular, a sexta
mudança desde que assumiu
o governo. Ele, no entanto,
passou para o novo aparelho
os antigos contatos. A lista do
seu aplicativo tem mais de
dez mil nomes, entre apoiado-
res civis e militares, políticos
e simpatizantes.
A parte mais influente é forma-
da especialmente por agentes de
órgãos de inteligência e de tro-
pas de elite das polícias. Trata-se


de um abrangente serviço parti-
cular de informações impulsio-
nado na campanha de 2018.
Em reunião no Palácio do Pla-
nalto, a 22 de abril, Bolsonaro con-
firmou a seus ministros que man-
tinha o serviço próprio de infor-
mações e desdenhou do trabalho
da ABIN, da Polícia Federal e dos
centros de inteligência das For-
ças Armadas. “Sistemas de infor-
mações: o meu funciona. O meu,
particular, funciona”, disse. “Pre-
firo não ter informação do que
ser desinformado por sistema de
informações que eu tenho.”
É comum o presidente enca-
minhar parte dessas denúncias

filtradas a aliados ou mesmo pu-
blicar em suas redes socais, sem
checagem. Vez ou outra ele apa-
ga a postagem e pede desculpas.
A maioria chega à Agência Brasi-
leira de Inteligência (ABIN).
Um integrante do órgão afir-
mou ao Estadão que as denún-
cias repassadas, muitas sem fun-
damento, sobrecarregam o sis-
tema de informações.
Ainda de madrugada, Bolso-
naro costuma selecionar infor-
mações recebidas no What-
sApp entre aquelas que preci-
sam ser “checadas” por seus as-
sessores ou “cobradas” às res-
pectivas áreas. O presidente

costuma encaminhar as mensa-
gens diretamente para minis-
tros e auxiliares.
No tempo de deputado, ele re-
cebia a ajuda do filho e vereador
Carlos Bolsonaro (RJ). Agora,
conta com assessores do gabine-
te, como o tenente-coronel da
Polícia Militar do Distrito Fede-
ral Márcio Cavalcante de Vas-
concelos e o coronel do Exérci-
to Marcelo Costa Câmara. To-
dos trabalham no 3.º andar do
Palácio do Planalto, a poucos
metros da sala de Bolsonaro.
Todas as manhãs, o general
reformado Augusto Heleno Ri-
beiro, ministro do Gabinete de
Segurança Institucional (GSI),
cumpre um antigo ritual dos
ocupantes do cargo de chefe do
sistema de informações de rece-
ber o presidente na garagem do
Planalto e subir com ele para o
gabinete, repassando dados en-
tregues pela Abin. Mas Bolsona-
ro já deixou claro que essas in-
formações só “desinformam”.
Numa entrevista recente na
portaria do Palácio da Alvora-
da, o presidente disse que sou-
be, por meio de seus informan-
tes, amigos policiais civis e mili-
tares no Rio, que algo estava
“sendo armado” contra ele e
sua família. Afirmou ter sido avi-
sado com antecedência da pos-
sibilidade de busca e apreensão
nas casas de filhos dele e da

“plantação” de provas contra a
família, o que não se concreti-
zou. Neste caso, atribuiu a ofen-
siva ao adversário e governador
do Rio, Wilson Witzel (PSC).
Ao ser questionado sobre o
sistema próprio de informação,
Bolsonaro já afirmou em entre-
vista: “É um colega de vocês da
imprensa que com certeza eu te-
nho, é um sargento no batalhão
de operações especiais no Rio,
um capitão do Exército de um
grupo de artilharia em Nioa-
que, um policial civil em Ma-
naus. É um amigo que eu fiz em
um determinado local faz anos,
que liga pra mim e mantém con-
tato pelo zap”, relatou. “Descu-
bro muitas coisas, que lamenta-
velmente não descubro via inte-
ligência oficial, que é a PF, a Ma-
rinha, a Aeronáutica e a Abin.”
Um dos participantes do ser-

viço de informações paralelo re-
feridos pelo presidente é Apare-
cido Andrade Portela. Militar re-
formado do Exército, ele conhe-
ceu Bolsonaro nos anos 1970
em Nioaque, Mato Grosso do
Sul, quando serviram juntos.
Ele costuma transmitir ao presi-
dente informações políticas lo-
cais e a situação na fronteira.
Outro informante é o antigo
assessor Waldir Luiz Ferraz, 67
anos. Ele foi convidado a traba-
lhar em Brasília, mas preferiu
permanecer no Rio, especial-
mente depois que Witzel se tor-
nou adversário do clã Bolsona-
ro. O auxiliar do presidente ope-
ra uma espécie de sucursal ca-
rioca da rede de informações.
Numa operação da Polícia Fe-
deral de busca e apreensão no
Palácio das Laranjeiras, residên-
cia do governador, na madruga-
da de 26 de maio, Waldir estava
na calçada em frente para repas-
sar informações ao presidente,
revelou a revista Veja. Com 2,
mil contatos no WhatsApp, ele
disse ao Estadão que recebe
mais de 1.000 mensagens por
dia, entre denúncias, críticas e
apoios. Após uma filtragem, dez
a 15 são repassadas a Bolsonaro.

Eleição. A rede de informantes
cresceu vertiginosamente na últi-
ma eleição, mas antes já tinha aju-
dado a eleger Bolsonaro e seus fi-
lhos a cargos no Legislativo. A ca-
pilaridade da rede do presidente
lhe permite, inclusive, que ele re-
ceba informações muito seme-
lhantes às que chegam às mesas
dos governadores oposicionistas
do Rio, Wilson Witzel, e de São
Paulo, João Doria, de suas respec-
tivas seções de inteligência das
polícias, as P-2.
Foi por meio da rede no What-
sApp que a família Bolsonaro re-
cebeu um vídeo da autópsia do
corpo do ex-agente do BOPE
Adriano Magalhães da Nóbrega,
ligado a milícias, morto, em feve-
reiro, num cerco da polícia no in-
terior da Bahia. A imagem foi di-
vulgada no Twitter pelo senador
Flávio Bolsonaro, filho do presi-
dente, que já condecorou o ex-
policial. O parlamentar que acu-
sou a polícia baiana de torturar
Nóbrega antes da execução. Apa-
rentemente surpreendido, o se-
cretário de Segurança Pública da
Bahia, Maurício Barbosa, che-
gou a dizer que o vídeo não foi
feito dentro do IML, onde havia
uma equipe reduzida. Mas não
explicou a origem da imagem.

BRASÍLIA


A jornalista do Estadão Gabrie-
la Biló teve seus dados divulga-
dos ontem por um perfil do
Twitter que reúne apoiadores
do governo Jair Bolsonaro. A
conta chamada Black Dog com-
partilhou dados pessoais da fo-
tógrafa, como RG, CPF, telefo-
ne, endereço e uma foto da casa
de sua família, em São Paulo.
Criada em 6 de março de 2019, a
conta tem 8.879 seguidores.
Procurado, o Twitter infor-


mou ter regras que determinam
os comportamentos e conteú-
dos permitidos na plataforma,
incluindo a política de informa-
ções privadas. “Após o recebi-
mento de denúncias de possí-
veis violações a essa política,
uma equipe do Twitter analisa
o caso e toma as medidas cabí-
veis”, informou a rede social.
Um trecho de uma entrevista
concedida pela jornalista, em
2018, para estudantes da Escola
de Comunicação e Artes (ECA)
da Universidade de São Paulo
(USP) foi editado e comparti-
lhado pelo perfil de forma a dis-
torcer a declaração da profissio-
nal; assim como outro vídeo fil-
mado pelo militante bolsonaris-
ta Oswaldo Eustáquio, que se
apresenta como “jornalista in-
vestigativo” no Twitter, de

quando a fotógrafa fazia uma re-
portagem em frente ao endere-
ço da ativista Sara Fernanda Gi-
romini, conhecida como Sara
Winter. O vídeo foi editado pa-
ra sugerir que a repórter amea-
çou dar um tiro na ativista.
O trecho editado traz Sara
afirmando para a repórter:
“Me ameaçou e disse que a or-
dem é dar um tiro na minha
cara. É eu morrer com um tiro
na minha cara”. A frase sem edi-
ção é: “Você sabia que o Anti-
fas (grupo contra o fascismo)
me ameaçou e disse que a or-
dem é dar um tiro na minha
cara para eu morrer com um
tiro na minha cara?”
A repórter estava em frente
ao endereço da ativista para
acompanhar o trabalho da Polí-
cia Federal, que havia ido ao

local para intimar Sara a pres-
tar depoimento no inquérito
das fake news, em tramitação
no Supremo Tribunal Federal
(STF). Desde então, a fotógra-
fa vem sendo atacada nas re-
des sociais.
Foi a própria Sara quem divul-
gou no Twitter que a Polícia Fe-
deral estava na casa dela. Além
do Estadão, outros órgãos de
imprensa foram ao local cobrir
a ação da PF, como de costume,
nesse tipo de situação.

Na ocasião, Gabriela Biló esta-
va do outro lado da rua da casa
da ativista quando foi abordada
por ela e por Oswaldo Eustá-
quio. Os dois a agrediram ver-
balmente e Eustáquio tentou
impedir a equipe de deixar o lo-
cal, se recusando a tirar a mão
da porta do carro.
Ele já foi condenado, em feve-
reiro, a indenizar o jornalista
Glenn Greenwald por ter ofen-
dido a mãe dele, Arlene
Greenwald, que morreu em de-
zembro vítima de um tumor no
cérebro. Meses antes, o militan-
te postou nas redes sociais que
a doença da mãe de Greenwald
era mentira. A mulher dele, San-
dra Terena, é secretária nacio-
nal de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial no Ministério
da Mulher, da Família e dos Di-

reitos Humanos.
O vídeo publicado pela conta
no Twitter Black Dog não mos-
tra os xingamentos feitos à re-
pórter pela ativista e pelo mili-
tante que a acompanhava. Dian-
te das agressões, a profissional
questionou se a Polícia Federal
havia estado no endereço e,
sem resposta, se retirou do lo-
cal. O endereço da ativista não
foi divulgado pelo Estadão em
nenhum momento.

Edição. O vídeo ainda traz ou-
tros trechos editados e coloca-
dos de forma descontextualiza-
da da entrevista da jornalista pa-
ra estudantes da USP, direciona-
da a alunos do curso de Jornalis-
mo. Em um deles, Gabriela fala
sobre a “recompensa social” da
cobertura jornalística, mas a pa-
lavra “social” foi suprimida e
“recompensa” é repetida várias
vezes enquanto na imagem apa-
recem cifrões.

l ‘Desinformado’

Generais e ministros do
Supremo estão às turras,
sem solução à vista

“Sistemas de informações:
o meu funciona. O meu,
particular, funciona.” (...)
Prefiro não ter informação
do que ser desinformado
por sistema de
informações que
eu tenho.”
Jair Bolsonaro
PRESIDENTE, DURANTE REUNIÃO
MINISTERIAL EM 22 DE ABRIL

DIDA SAMPAIO/ESTADÃO - 24/5/

Rede particular de informações citada por presidente em reunião


é formada por agentes de órgãos de inteligência e policiais de elite


GSI. General Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, acompanha manifestação de apoio ao presidente Jair Bolsonaro, em Brasília


Fotógrafa do ‘Estadão’ tem dados pessoais divulgados


Ataque à profissional foi


feito após ela cobrir ação


da Polícia Federal em


frente à casa da ativista
bolsonarista Sara Winter


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