O Estado de São Paulo (2020-06-05)

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O ESTADO DE S. PAULO SEXTA-FEIRA, 5 DE JUNHO DE 2020 Metrópole A


Carlos Wizard, novo titular da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE)


Roberta Jansen / RIO


O Brasil está em negociações
para se tornar um dos produ-
tores mundiais da vacina con-
tra a covid-19 que está sendo
desenvolvida pela Universi-
dade de Oxford em parceria
com a AstraZeneca. A produ-
ção brasileira abasteceria to-
da a América Latina. O acor-
do do governo com a iniciati-
va privada colocaria o país na
dianteira, em um momento
em que corria o risco de estar
no fim da fila da vacina.
A AstraZeneca anunciou on-
tem que já fechou acordos in-
ternacionais para a produção
de 1,7 bilhão de doses e segue
em busca de novos parceiros.
Os acordos já firmados são
com o Reino Unido, os Estados
Unidos, a CEPI (Coallition for
Epidemic Preparedness Inno-
vations), a Aliança de Vacinas
(Gavi) e o Instituto Serum, da
Índia. Mas ainda há uma capaci-
dade adicional de produção de
300 milhões de doses para al-
cançar o objetivo de ter um
ponto de partida de 2 bilhões
de doses. Para além dessa meta
inicial, o objetivo é continuar
buscando parceiros.
“Já há negociações com dife-
rentes governos de diferentes
países, entre eles o Brasil”, afir-
mou a infectologista brasileira
Sue Ann Clemens, diretora da
Iniciativa Global de Saúde da
Universidade de Siena e pesqui-
sadora da Unifesp, que está
coordenando os centros de tes-
tagem da vacina no Brasil. “Es-
sa é uma oportunidade muito


grande para o nosso país não só
no campo da pesquisa clínica,
mas também na produção de
imunizantes.”
Para a pesquisadora, tanto o
Instituto Butantã, em São Pau-
lo, quanto a Fiocruz, no Rio,
têm plena capacidade e reco-
nhecimento internacional pa-
ra produzir as vacinas necessá-
rias não só para o Brasil como
para toda a América Latina. A
grande vantagem de se ter uma
produção local, segundo Cle-
mens, para além da transferên-
cia de tecnologia, seria o aces-

so mais fácil e mais rápido ao
imunizante. “Até meados do
ano que vem já teríamos a vaci-
na pronta para ser aplicada”,
afirmou a infectologista, que
também é consultora da Funda-
ção Bill e Melinda Gates para
imunizantes.
O Brasil estava sob o risco de
ser um dos últimos a ter acesso
a vacina. As decisões polêmi-
cas do governo de Jair Bolsona-
ro sobre a hidroxicloroquina e
as medidas de isolamento,
bem como as trocas dos minis-
tros da Saúde, fizeram com que

o país sequer fosse convidado
para o lançamento da “Colabo-
ração Global para Acelerar o
Desenvolvimento, Produção e
Acesso Equitativo a diagnósti-
cos, tratamento e vacina con-
tra o covid-19”, no fim de abril,
na Organização Mundial de
Saúde (OMS).
O acordo privado pode alte-
rar essa circunstância. Segun-
do a pesquisadora, ao Brasil
também foi oferecida a prima-
zia na compra de doses da vaci-
na. “Essa foi uma das primeiras
perguntas que eu fiz para o An-

drew (Pollard, que coordena o
desenvolvimento da vacina de
Oxford), quando ele me ligou,
pedindo que fizesse a ponte pa-
ra fazermos testes no Brasil: se
teríamos acesso prioritário”,
contou Clemens. “Ele respon-
deu que isso estava em discus-
são, mas que a capacidade de
produção deles era limitada. De-
pois disso, no entanto, eles fir-
maram o acordo com a AstraZe-
neca, ampliando a capacidade
de produção. Sei que o Brasil já
tem em mãos uma ordem de
compra e que foi um dos primei-

ros países abordados para a pos-
sibilidade de produção local.”
Das mais de 100 vacinas con-
tra a covid-19 em desenvolvi-
mento hoje no mundo, a de Ox-
ford é a que está na fase mais
avançada das testagens, a 3,
que vai aferir a eficácia do imu-
nizante em pelo menos 10 mil
pessoas. A meta dos pesquisa-
dores é conseguir antes do fim
deste ano um registro provisó-
rio da vacina e um sinal verde
dos órgãos reguladores para
seu uso em caráter emergen-
cial.

Mateus Vargas / BRASÍLIA


De malas prontas para assu-
mir um cargo no Ministério
da Saúde, o empresário Carlos
Wizard defende o uso de co-
quetel de medicamentos, in-
cluindo a cloroquina, para pa-
cientes como forma de preve-
nir o novo coronavírus. Ao Es-
tadão, ele usou como exemplo
o coquetel adotado em Porto
Feliz, interior de São Paulo.


“Precisa ter mais evidência do
que uma cidade com 75 mil ha-
bitantes, com mais de 500 in-
fectados e sem nenhum óbi-
to?”, questionou Wizard.
A reportagem levantou, po-
rém, que a informação não é
correta. Oficialmente, a cida-
de de 51.928 habitantes regis-
tra 60 casos positivos e 3 óbi-
tos pela doença. A vizinha Sal-
to, com o dobro da população


  • 104.688 moradores –, que
    não adota o medicamento,
    tem 64 casos e apenas uma
    morte. Em Porto Feliz, o uso
    da hidroxicloroquina associa-
    da a outros medicamentos co-
    meçou no início de abril, bem
    antes do protocolo de 20 de
    maio do Ministério da Saúde,


liberando para pacientes com
sintomas leves.

lComo o senhor pretende contri-
buir para o enfrentamento da pan-
demia do coronavírus?
Comecei a fazer primeiras reu-
niões com principais direto-
res da secretaria. São 600 fun-
cionários, entre servidores,
bolsistas e consultores. E um
orçamento de R$ 20 bilhões.
O Ministério da Saúde não tra-
balha sozinho. Trabalhamos
diretamente ligados aos secre-
tários de cada Estado e muni-
cípio. A comunidade interna-
cional está muito preocupada
em oferecer vacina para co-
vid-19. Estamos já em conta-
tos avançados com Oxford.

lQual a sua visão sobre o uso
da cloroquina como tratamento?
Qual nossa orientação, em no-
ta técnica distribuída a secretá-
rios de Estados e municípios?
Com base em estudos feitos
no Brasil, e internacionalmen-
te, em centenas de países, que
comprovadamente indicaram
que a cloroquina e a hidroxiclo-
roquina preservam a vida, na
fase 1 da covid-19, logo que pa-
ciente demonstra primeiros si-
nais. Os resultados são muito
satisfatórios. No ministério an-
tigo, no tempo do Mandetta,
diziam: se você está com febre
leve, fica em casa. E as pessoas
ficavam. Essa conduta trouxe
milhares de pessoas a óbito.
Elas ficavam em casa, não rece-
biam tratamento. A doença
evolui. Milhares foram a óbito.
Com essa nova orientação téc-
nica estamos salvando vidas.

lJá há dados que mostram me-
lhores resultados após divulga-
ção da mais recente orientação
do ministério sobre cloroquina?

Acredito que em 30 dias vai ter
uma comparação muito nítida.
Do que era, e qual está sendo
resposta.

lEm relatórios diários, técnicos
da SCTIE não apontam benefício
da cloroquina contra a covid-19.
Quais estudos comprovam a efi-
ciência?

Não trabalhamos com observa-
ções empíricas. O Ministério
da Saúde só toma suas deci-
sões, normativas, com base em
estudos científicos, publicados
em revistas especializadas na
área médica internacional. Es-
tamos trabalhando com vidas.
Não podemos correr risco. Ca-
so você queira, especificamen-
te, vou pedir para a assessora
mandar um calhamaço de pelo
menos cem estudos comprova-
dos internacionalmente.

lPretende ampliar a orientação
do ministério sobre cloroquina?
Vamos combinar. Você não vai
colocar cloroquina, chame de
coquetel, conjunto, grupo de
vários fármacos que preconiza-
mos. A resposta é sim. Se um
pai de família é diagnosticado,
quando volta para casa tam-
bém recomendamos tratamen-
to profilático para esposa, so-
gra, filhos, quem estiver no nú-
cleo familiar. Profilaticamente
falando, já recomendamos sob
orientação médica.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Giovana Girardi


O controverso estudo publica-
do em 22 de maio na revista The
Lancet com mais de 96 mil pa-
cientes internados, que havia
concluído que o uso da cloro-
quina ou da hidroxicloroquina
em pacientes com o coronaví-
rus, mesmo quando associados
a outros antibióticos, aumenta
o risco de morte e arritmia car-
díaca nos infectados, foi retira-
do de circulação ontem por
três de seus quatro autores.
O estudo havia motivado a


suspensão, por parte da Organi-
zação Mundial de Saúde, de
uma pesquisa global com a dro-
ga. Mas logo após a publicação
uma série de questionamentos
e suspeitas foi levantada sobre
a base de dados utilizada no tra-
balho, o que fez a OMS retomar
nesta quarta os testes clínicos
com a substância. Ainda na ter-
ça, a Lancet havia divulgado um
“manifesto de preocupação” a
respeito do estudo. E agora os
cientistas se manifestaram pu-
blicamente, afirmando que
não tiveram condições de con-
firmar a veracidade dos dados
apresentados.
A pesquisa publicada na Lan-
cet tinha sido apresentada co-
mo a maior já realizada sobre
os efeitos que a cloroquina e a
hidroxicloroquina têm no trata-
mento do coronavírus, de mo-

do observacional. Ela foi feita a
partir de uma base de dados da
Surgisphere Corporation, uma
pequena empresa americana
que apresentou informações
de diversos hospitais de vários
países. O fundador da empre-
sa, Sapan Desai, apareceu co-
mo co-autor do trabalho.
Nesta quarta, o jornal inglês
The Guardian publicou uma re-
portagem levantando suspei-
tas sobre a empresa. Disse que
ela tinha em sua equipe um es-
critor de ficção científica e um
“modelo de conteúdo adulto”
e que os dados apresentados
não batiam com a realidade de
alguns hospitais, como da Aus-
trália, por exemplo.
Os outros três autores do es-
tudo, Mandeep Mehra, Frank
Ruschitza e Amit Patel, afir-
mam en nota divulgada ontem
pela Lancet, que lançaram uma
revisão independente, por uma
terceira parte, dos dados da Sur-
gisphere, com o consentimen-
to de Desai, “para avaliar a ori-
gem dos elementos da base de
dados, para confirmar que esta-
vam completos e também para
replicar as análises apresenta-
das no estudo”.

Na nota, os pesquisadores di-
zem, porém, que os revisores
informaram que a Surgisphere
não transferiria toda a base de

dados e os contratos dos clien-
tes porque isso “violaria os
acordos de confidencialida-
de”. Sendo assim, dizem que
não foi possível “conduzir uma
revisão independente e priva-
da” e os revisores iam se retirar
do processo. “Sempre deseja-
mos realizar nossa pesquisa de
acordo com as mais altas dire-
trizes éticas e profissionais.
Nunca podemos nos esquecer
da responsabilidade que te-
mos, como pesquisadores, de
garantir escrupulosamente

que nós nos calçamos em bases
de dados que aderem aos nos-
sos altos padrões. Com base
nesse desenvolvimento, não
podemos mais garantir a veraci-
dade das fontes de dados primá-
rias. Por causa desse desenvol-
vimento infeliz, os autores soli-
citam a retirada do artigo”, es-
creveu o trio.
“Todos nós entramos nessa
colaboração para contribuir de
boa fé e em um momento de
grande necessidade durante a
pandemia de covid-19. Lamen-
tamos profundamente a vocês,
editores e leitores da revista
por qualquer constrangimento
ou inconveniência que isso pos-
sa ter causado.”
A revista afirmou que “leva a
sério as questões de integrida-
de científica” e disse que “há
muitas questões pendentes so-
bre a Surgisphere e os dados
que supostamente foram in-
cluídos neste estudo”. Apesar
das possíveis falhas deste estu-
do, outras pesquisas vêm indi-
cando que a cloroquina e a hi-
droxicloroquina têm pouca ou
nenhuma efetividade para tra-
tar a covid-19 ou proteger con-
tra a doença.

Número de


testados no Brasil


deve ser de 5 mil


Acordo com empresa permitiria que a produção brasileira abastecesse toda a América Latina; Unifesp já coordena a testagem no Brasil


No ministério, bilionário defende


uso preventivo da substância


lA dimensão

lPelo menos 5 mil brasileiros
vão participar dos testes da nova
vacina contra a covid-19 – e não
apenas 2 mil, como anunciado
ontem. A princípio, metade dos
voluntários será selecionada em
São Paulo, sob a coordenação da
Unifesp, e a outra metade no Rio,
pelo Instituto Dor de Pesquisa
(Idor). Eventualmente, o recruta-
mento pode ser ampliado para
outros Estados. Em todo o mun-
do, serão 50 mil pessoas, 30 mil
delas apenas Estados Unidos.
Dois países africanos e um
pais asiático, cujos nomes não
foram ainda divulgados, também
vão participar do estudo, além do
Brasil e do Reino Unido, que já
iniciou os testes. / R.J.

País negocia possibilidade de fazer vacina


DADO RUVIC/ILLUSTRATION/REUTERS-10/4/

Imunizante. Expectativa é de, em caso de sucesso, obter doses aplicáveis até meados de 2021, segundo infectologista

DENNY CESARE/ESTADÃO–29/11/

Empresário diz que em


30 dias será possível


ver avanços com o
uso do polêmico


medicamento no Brasil


Wizard. ‘Com a orientação,
estamos salvando vidas’

ENTREVISTA


GEORGE FREY/REUTERS–27/3/

Três dos 4 principais


autores se retrataram,


alegando não poder


confirmar a base de


dados usada na pesquisa


Estudo da ‘Lancet’


sobre cloroquina é


retirado do ar


96 mil
Pacientes internados seriam o
foco da pesquisa. Mas a Surgisp-
here se recusou a compartilhar
os centros clínicos participantes,
alegando confidencialidade.

O medicamento. Outros estudos não comprovam eficácia
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