O Estado de São Paulo (2020-06-05)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-8:20200605:
H8 Especial SEXTA-FEIRA, 5 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Ignácio de Loyola Brandão


ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

l]


Caderno 2


D


esperto a cada dia pensan-
do: o que ele vai dizer hoje
para nos afligir? Quando di-
go desperto, deveria dizer desperta-
mos, porque somos, no mínimo,
dois terços da população brasileira
sofrendo do mesmo mal: a espera da
palavra presidencial no puxadinho
do ódio frente ao Alvorada. Esse é
um pensamento que oprime. A cada
dia, são vergastadas vindas de um
iletrado, ofensas a todos e à língua
portuguesa, recorrências ao pala-
vrão, ao mesmo tempo que em nos-
sas mentes aumenta a angústia da
espera: quando ele virá? Ele. Todos
sabem o quê? Ele promete, sonha,
gostaria que se concretizasse.
Está próximo o dia em que ele vai
cumprir a palavra? O filho anun-
ciou, agora é a ruptura. Vai intervir
em tudo e em todos em nome da

democracia? A democracia dele tem
outra etimologia. Aqui, o demo é de
demônio. Sartre disse: o inferno são os
outros. Estava errado. O inferno é o
Brasil hoje com esse presidente.
Decidi. Chega. Chega, presidente.
Não aguento mais. Não aguentamos
mais. O senhor vem procurando cor-
roer nossos espíritos, tentando nos ani-
quilar moralmente, buscando nos des-
truir, minando nossas forças. Resisto.
Não sou apenas eu, não estou sozinho.
Somos milhões.
Presidente, decida logo! Tire o paletó
e nos encontre ali na porta, anunciando:
é agora. Pegue seus filhos e coloque-os à
frente das forças armadas.
Junte os milicianos a que estão liga-
dos. Acrescente seus empresários alia-
dos e coloque-os no ministério da Eco-
nomia. Arrebanhe seus seguidores na
redes sociais e deixe-os no comando

do combate à pandemia. Chame o Aras
e coloque-o logo no Supremo. Peça ao
02 que apanhe logo um cabo e um sol-
dado e feche o que ele acha que tem de
fechar. Jogo limpo. Às claras. Mas não
nos deixe nessa agonia, nessa ansieda-
de que corrói, aguilhoa. Estão esgota-
dos na farmácias os estoques de ansio-
líticos. Os laboratórios não dão conta
de produzir às toneladas. Terapeutas,
psiquiatras, psicanalistas, psicotera-

peutas estão exaustos. O senhor, cien-
tista, nos diga que medicamento vai cu-
rar esta esquizofrenia pior do que o ví-
rus da covid-19.
Estamos vivendo o suplício chinês
da água pingando numa chapa de me-
tal, plim plim, plim, até ficarmos lou-
cos, surtarmos. Se é possível surtar
mais do que estamos. Assim, decida lo-
go. Saia para rua com seus tanques,
uma vez que foi dito na porta do Alvora-
da: “não dá mais, hoje é o último dia.”
Último dia do quê?

Não me deixe – não nos deixe – em
suspenso a cada momento, cada minu-
to, segundo. É essa sua intenção? Nos
dissolver?
Presidente.
Defina a situação. Não fique prome-
tendo. A espera alucina. Como diz o
ditado popular, transe ou saia de cima.
Desocupe a moita. O Brasil está esgota-
do, avariado, demolido, arrasado, en-
fraquecido. Diga logo o que quer. Não
adianta ficar esbravejando na porta do
Palácio. Chega de nos tratar como mo-
leques na escola, que gritam “te espero
lá fora”. Resolva.
Jogo aberto. Quem tiver de ser pre-
so, será. Quem tiver de ser condenado,
será. Quem tiver de perder os direitos,
perderá. Quem o senhor decidir que
deve ser torturado, será. Quem tiver
de ser exilado, será. Mas abra o jogo.
Basta de sadomasoquismo. Seja claro,
não hesite um minuto, não fique nessa
indecisão que nos mata, não nos deixa
dormir, provoca urticária, nos come
pelas beiradas, e pode nos deixar doen-
tes, neuróticos, deprimidos, em panda-
recos, abilolados, com úlcera no estô-
mago, câncer. Assim é a espera, a cada
dia na expectativa, olhando o relógio, o

calendário. Venha com seu desejo
mais íntimo desde que se elegeu. Es-
tamos aqui, desarmados. Mas não es-
tamos escravizados.
Será agora? Daqui uma hora?
Duas, uma semana, um mês, em 2021
ou 2022? Súbito me lembrei que o
Reich de Mil Anos durou apenas do-
ze e o líder dele se matou num subter-
râneo. Será agora, quando será, vai
ser, quando? Está próximo? Demo-
ra? Quando, quando, quando, quan-
do, e este quando não está chegando.
Saia do chiqueirinho da porta Alvo-
rada e venha para campo aberto com
seus tanques, navios, canhões, arma-
mentos, bombas nucleares, napalm,
armas químicas, pó de mico, o que
tiver e acabe com essa história.
Saia do armário.
Escancare.
Só precisamos saber quantos vão
sobrar, depois da fome, das prisões,
mortes, das epidemias, do corona.
Quantos estarão vivos para o senhor
governá-los? Bye Bye Brasil, como
disse Cacá Diegues. Pelo amor desse
Deus que o senhor diz que está aci-
ma de tudo: quando será esse mo-
mento?

O MAGO FAZ


Yamandu Costa, mestre do violão de sete cordas, lança


álbum em que reverencia a cultura latino-americana


]
ANÁLISE:

João Marcos Coelho
ESPECIAL PARA O ESTADO


Yamandu Costa, mago do vio-
lão sete cordas e senhor absolu-
to do instrumento, comemo-
rou, em 24 de janeiro passado,
seu primeiro aniversário mo-
rando fora do Brasil. Assoprou
as velinhas dos 40 anos em sua
nova casa, em Lisboa, ao lado da
mulher, a também violonista,
só que clássica, Elodie Bouny,
francesa nascida na Venezuela,
e dos dois filhos, Benício, de 9, e
Horácio, de 7 anos. E trabalhou
nos detalhes finais do seu ál-
bum Festejo, lançado semana
passada apenas em versão digi-
tal, mas já presente nas platafor-
mas de streaming.
O novo álbum pode ser quali-
ficado como um dos mais belos
tributos que o violonista de Pas-
so Fundo, nascido e crescido na
fronteira do Brasil com o Uru-
guai e Argentina, faz à música e
à cultura latino-americanas. So-
bretudo a da Venezuela, Colôm-
bia e Caribe. “Recebi de heran-
ça esta paixão pela cultura lati-
no-americana”, diz Yamandu
em entrevista ao Estadão. “En-
quanto todos no Brasil ficam
olhando para a América e a Eu-
ropa, não veem que temos ao
nosso lado culturas belíssimas,
de uma vivacidade incrível.
Com Festejo, foquei mais na
música de países como Colôm-
bia e Venezuela, tão rica e dan-
çante, assim como a do Caribe.
Desta vez, deixei de lado a Ar-
gentina, que sempre teve um
protagonismo evidente em
meus discos, e na minha manei-
ra de tocar. E te digo: me sinto
cada vez mais apaixonado pela
cultura latino-americana.”
A mudança para Lisboa foi
uma questão de logística, nada
teve a ver com a pandemia. “Mi-
nha carreira estava se intensifi-
cando muito, e eu já estava can-
sado de viajar demais entre Bra-
sil-Europa-Brasil. Me cansei dis-
so e resolvi me fixar num ponto
mais central.” De fato, além dos
32 CDs autorais – 33 agora, com
Festejo –, Yamandu tem tocado
com frequência, de 2015 para
cá, o concerto Fronteira, que gra-
vou com a Orquestra de Mato
Grosso, com sinfônicas como a
Orquestra de Paris, a Gewand-
haus de Leipzig e a de Roterdã.
Sem contar as dezenas de apre-


sentações anuais por festivais
de toda a Europa, Japão e até
África. “A pandemia, aliás, pri-
morosamente enfrentada aqui
em Portugal, transformou
2020 num ano profissionalmen-
te perdido. Mas, em compensa-
ção, nunca convivi tanto com
meus filhos. E continuo traba-
lhando e gravando, produzindo
em casa. Vejo de longe o que

acontece no Brasil. Para este go-
verno, a cultura não é uma coisa
importante. Pelo caos, pelo mo-
do irresponsável do governo de
agir – ou melhor, não agir – em
relação à pandemia, agradeço a
cada dia ter tomado previamen-
te a atitude de sair de meu País.”
E por falar em pandemia, a
gestação de Festejo aconteceu
durante dois anos e meio em

que Yamandu e o arranjador
Marcelo Jiran praticamente
não se viram – apenas uma vez
em 30 meses de trabalho. Um
no Rio, outro em Belo Horizon-
te, trocaram áudios de bases
dos arranjos com os solos de
Yamandu. A distância, como só
poderia ser hoje em dia. “A fei-
tura começou comigo mandan-
do as coisas para ele, que colo-

cava a orquestra em cima. Um
pouco antes da metade inver-
teu-se o processo: eu ficava es-
perando e ele mandava a base
pronta. Foi um disco muito tra-
balhado.”
Jiran, mineiro de Belo Hori-
zonte cinco anos mais novo
que Yamandu, parece irmão gê-
meo dele, musicalmente falan-
do. Praticamente autodidata,
tem como mote “O meu apren-
dizado é ouvir”. Ou seja, como
Yamandu, que não é muito da-
do a partituras, ele também faz
do ouvido privilegiado e a inco-
mum habilidade para tocar
muitos instrumentos diferen-
tes (algo que tem em comum
com André Mehmari) suas ha-
bilidades essenciais.
Eles se conheceram em Belo
Horizonte, em 2011, e não se lar-
garam mais. Em Festejo, Jiran
fez todos os arranjos e toca to-
dos os instrumentos. E olhe
que a lista é longa: piano acústi-
co e elétrico, vibrafone, baixo
elétrico, “baixolão”, saxofones

alto e soprano, flauta transver-
sal, clarinete e percussão (con-
gas, bongôs, cowbell, clave,
shakers, caxixi, vassourinha,
tamborim, coquinhos, agogô e
efeitos). Jiran esbanja catego-
ria em cada um deles. E foi ca-
paz de construir arranjos leves
para um Yamandu mais amadu-
recido. Afinal, ele agora é um
senhor de 40 anos.

Guerreiro. Gilson protege
favela de 100 mil habitantes

Disco ressalta


maturidade


João Marcos Coelho

O senhor vem procurando
corroer nossos espíritos,
buscando nos destruir

Q


uem já assistiu a um show de Yamandu
Costa sabe que ele põe fogo na plateia. É
difícil ficar parado compartilhando
uma virtuosidade aparentemente infini-
ta. Em geral com uma amplificação poderosa,

seu violão de sete cordas ocupa sozinho todos
os espaços. A musicalidade nele é algo totalmen-
te espontâneo. O acorde aparentemente errado
acaba sendo uma passagem para uma modula-
ção inesperada. Uma nota fora do lugar o leva
para outras aventuras melódicas.
Seus álbuns em geral possuíam esta chama
genial do improviso em estado puro. Acho que
ele jamais tocou uma música do mesmo jeito.
Em seus dedos e nas sete cordas, a cada vez ele
as reinventa, no calor da hora.
Festejo marca sua entrada no universo da
maturidade. Quarenta anos, diz ele rindo.
“Tem a ver com maturidade da gente, vai pas-
sando o tempo e você vai percebendo o que faz

bem e entende que menos é mais. Enfim, é pre-
ciso paciência pra chegar na maturidade, e
acho que estou chegando nela. Sem dúvida, a
calmaria chegou pra mim nestes últimos
anos”.
Uma das frases do arranjador e toca-tudo
Marcelo Jiran define bem seu estado de espíri-
to atual: “Ele é a música em forma de um ser
humano gentil”. O álbum tem doze músicas,
todas dançáveis ou originárias de danças da
Venezuela, Colômbia e Caribe, com destaque
para Cuba. Mas elas não nos fazem pular do
sofá e dançar junto.
A reação é batucar junto, sacudir levemente
o corpo. Sintomaticamente, três das faixas

mais atraentes são de um gênero essencialmen-
te melancólico: Bolero Doce e Bolero Negro, de
Yamandu, e Sambolero, clássico da bossa nova
de Luiz Bonfá. Faltou acrescentar uma música
que a dupla fez a meio-caminho da produção e
gravação do disco: Beliscando gostoso. Tudo aqui
respira a malemolência, não a sacolejo desbre-
gado. Porque, na verdade, Yamandu nos convi-
da a um passeio de descobertas pela riquíssima
música latina. Lá estão dois Porros, dança cari-
benha da Colômbia, de Gentil Montaña (um
deles com jeitão de xote por causa do arranjo
de Jiran); a célebre Danzón no. 2, do mexicano
Arturo Márquez; e a antológica Guajira a mi ma-
dre, do cubano Ñico Rojas.

MARISTELA MARTINS

De olhos bem
fechados.
Yamandu Costa
compõe e grava em
sua casa em Lisboa

FESTEJO
BAGUAL PRODUÇÕES
NAS PLATAFORMAS SEXTA (5)

CD

FESTEJO


Chega, presidente.


Abra o jogo

Free download pdf