O Estado de São Paulo (2020-06-05)

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A6 Política SEXTA-FEIRA, 5 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


A


ida às ruas de torcidas organi-
zadas e de grupos pela demo-
cracia no Rio, São Paulo e Curi-
tiba serviu como aperitivo. E não foi
aprovada. A intenção é boa, o temor
com a audácia dos atos golpistas exis-
te e resistir à escalada contra as insti-
tuições é preciso. Mas há que se consi-
derar a questão da oportunidade e da
forma: quem, como, quando, onde e
por que, tal como no jornalismo.
Há que se investigar a possibilidade
de infiltrados, de “black blocs”, no mo-
vimento pela democracia para promo-
ver vandalismos e confrontos com as
polícias. Se você dá um espirro hoje,

tem sempre uma câmera ou um celular
por perto, mas não há um só registro do
momento em que o ato pacífico descam-
bou na Avenida Paulista. Com pedrada
de manifestante? Ou com bombas de
efeito moral da polícia? A única imagem
de infiltração é daquela bolsonarista
com um taco de beisebol (beisebol?!)...
Assim, a união de corintianos e pal-
meirenses pela democracia, que mere-
ce aplausos, produziu comparações in-
cômodas com atos bolsonaristas. De
um lado, as torcidas com gente parru-
da e agressiva, vestida de preto e em
ritmo de guerra. Do outro, famílias até
com crianças usando os símbolos e co-

res nacionais (da maioria...), como se
estivessem passeando.
Imagem é tudo e, nesse confronto,
inverteram-se objetivos e percepções.
Afinal, os parrudos de preto defendem
a democracia, os princípios, as boas
causas, enquanto as aparentemente
inocentes famílias usam a bandeira na-
cional contra a democracia, o Supre-
mo e o Congresso.
No dia seguinte aos choques dos no-
vos manifestantes com as polícias dos
governadores João Doria e Wilson Wit-

zel, de oposição, o presidente Jair Bolso-
naro, que confraterniza alegremente e
até a cavalo com golpistas em plena pan-
demia, chamou de “marginais” e “terro-
ristas” os que passaram a dividir as ruas
com seus apoiadores. Já o vice Hamil-
ton Mourão acusou a novidade paulista

de “baderna” e indagou em artigo no
Estadão: “Aonde querem chegar? A in-
cendiar as ruas do País, como em 2013?”
Quem defende a democracia é “ter-
rorista” e faz “baderna”. Quem prega
golpe contra a democracia é e faz o
quê? E, enquanto Bolsonaro e Mourão
condenavam os manifestantes pró-de-
mocracia, setores bolsonaristas fa-
ziam uma leitura enviesada do artigo
142 da Constituição para defender o
uso das Forças Armadas contra os Po-
deres. São movimentos isolados?
Líderes da saudável resistência de
instituições, partidos, entidades e cida-
dãos pró-democracia vêm-se declaran-
do contra atos de rua fora por causa da
pandemia. Se os bolsonaristas fazem
aglomeração, problema deles, os pró-
democracia são também pró-ciência,
isolamento social, vida. Mas esse não é
o argumento principal.
O pedido para não disputar as ruas
agora tem base mais complexa: a desi-
gualdade, literalmente, de armas. De
um lado, juristas, artistas, intelectuais

e cidadãos se armam com as pala-
vras e manifestos. De outro, Bolso-
naro amplia a munição disponível
para a sociedade, enquanto reduz a
fiscalização das armas de civis e milí-
cias; atiça o bolsonarismo contra go-
vernadores, enquanto adula as polí-
cias estaduais – ou seja, deles.
Convém, assim, avaliar o risco de
atos contra Bolsonaro provocarem
confrontos desiguais com milícias e
polícias e até justificativa para con-
vocação das Forças Armadas. Vira e
mexe, militares e o entorno do presi-
dente se referem a um cenário de
caos social que não interessa a nin-
guém, a não ser a golpistas.
Líderes responsáveis e do bem
têm de desprezar o egocentrismo do
ex-presidente Lula e mobilizar o cen-
tro, unir as esquerdas, buscar alian-
ças com a direita democrática e resis-
tir. Mas sem criar pretextos e am-
biente favorável para golpes defendi-
dos à luz do dia, com estímulo e em-
purrão de... vocês sabem de quem.

O ministro da Educação, Abra-
ham Weintraub, atacou o Parti-
do Comunista Chinês e alegou
“liberdade de expressão” em
depoimento por escrito entre-
gue à Polícia Federal ontem,
no inquérito que apura supos-
to crime de racismo. Segundo
o ministro, as publicações
questionadas na investigação
eram críticas ao governo chi-
nês, uma “ditadura comunista
que despreza os princípios que
regem uma democracia libe-
ral”, e não ao povo do País.


“Não é possível que se afir-
me que a postagem se dirigiu a
um povo. O que quer que o PCC
(Partido Comunista Chinês) fa-

ça não pode ser tido como ex-
pressão da vontade popular chi-
nesa, uma ditadura comunista,
campeã de violações aos direi-

tos humanos, o que inclui até
mesmo genocídio em décadas
passadas”, escreveu Weintraub.
O ministro é investigado por
racismo após publicar um tuí-
te em que insinuou que a China
vai sair “fortalecida da crise
causada pelo coronavírus, apoi-
ada por seus ‘aliados no Bra-
sil’”. A publicação usou perso-
nagens da Turma da Mônica na
Muralha da China e substituiu
a letra “r” pelo “l”, para fazer
referência ao modo de falar do
personagem Cebolinha, o que
foi visto como tentativa de ridi-
cularizar os chineses. Segundo
Weintraub, o uso da lingua-
gem e da imagem dos persona-
gens de quadrinhos foi para
dar “humor” à publicação.
No documento, o ministro
diz ainda que a imputação de

crime decorre de “interpreta-
ção extensiva” baseada em
“sensibilidades de determina-
dos grupos sociais”. “Não se
pode imputar um crime nessas
circunstâncias, sob pena de se
revogar um princípio e direito
maior constitucional, que é a
liberdade de expressão”, escre-
veu. “Onde está a discrimina-
ção ou preconceito? Há apenas
referência a um governo.”
O pedido de investigação
partiu do vice-procurador-ge-

ral da República, Humberto
Jacques de Medeiros, ao vis-
lumbrar que o ministro “teria
veiculado manifestação depre-
ciativa, com a utilização de ele-
mentos alusivos à procedência
do povo chinês”. Após a posta-
gem de Weintraub, a Embaixa-
da da China no Brasil repudiou
a publicação. “Tais declara-
ções são completamente absur-
das e desprezíveis, que têm cu-
nho fortemente racista e objeti-
vos indizíveis, tendo causado
influências negativas no desen-
volvimento saudável das rela-
ções bilaterais China-Brasil.”
Ao deixar o prédio da PF on-
tem, o ministro foi carregado
nos braços por apoiadores que
o aguardavam. “A liberdade é a
coisa mais importante em uma
democracia e a primeira coisa
que vão tentar calar é a liberda-
de de expressão. Obrigado pe-
lo apoio, gente”, disse Wein-
traub, usando um megafone.

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ELIANE CANTANHÊDE ESCREVE ÀS TERÇAS E
SEXTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

À PF, Weintraub nega racismo e alega ‘liberdade de expressão’


Apoiadores. Ministro é recebido após deixar prédio da PF

Patrik Camporez
Breno Pires / BRASÍLIA


Uma força-tarefa do Tribu-
nal de Contas da União (T-
CU) encontrou indícios de
fraudes em 55 contratos fir-
mados pelo governo federal
com empresas de tecnologia
da informação desde 2017.
Juntos, os acordos custaram
R$ 500 milhões. Entre as ir-
regularidades detectadas pe-
lo grupo estão falta de justifi-
cativa para as contratações
e ausência de detalhamento
do serviço que seria presta-
do pela empresa, o que levou
os auditores a apontar um
potencial risco de corrup-
ção e desvio de dinheiro.
A investigação foi iniciada
em 31 de julho do ano passado e
envolve contratos em 11 minis-
térios, incluindo as pastas da
Saúde, Cidadania, Educação,
Economia e Infraestrutura,
além de 17 órgãos do governo.
Nem todos os contratos foram
fechados no governo Jair Bol-
sonaro, mas receberam aditi-
vos ou foram mantidos em vi-
gor pela atual gestão. Do total
apontado como suspeito de ir-
regularidade, pelo menos R$
100 milhões ainda estavam vi-
gentes em março de 2020.
O TCU verificou que em ne-
nhum dos 55 contratos era pos-
sível calcular o custo real dos
serviços prestados, pois não
houve justificativa técnica ou
econômica para a contratação
da empresa. Sem essas infor-
mações, os órgãos de controle
não conseguem saber se os
acordos atendem aos critérios
mínimos de economicidade.
Outro problema constata-
do pelos auditores é que 83%


dos contratos não tinham o de-
talhamento dos serviços para
os quais determinada empre-
sa foi contratada. Essa “fragili-
dade”, na avaliação dos audito-
res, facilita o possível desvio
de recursos.

Preços. Ainda segundo o
TCU, 94% das contratações
não possibilitaram avaliação da
razoabilidade dos preços. “Ou
seja, os preços praticados não
tinham comparabilidade com a

vida real”, afirma trecho do rela-
tório técnico do órgão.
Nos contratos objeto de apu-
ração, os técnicos do TCU iden-
tificaram situações que eles
consideraram como “exempla-
res” do mau uso do dinheiro
público. Um dos contratos,
por exemplo, previa pagamen-
to de R$ 423 pela substituição
de um cabo de rede, R$ 879 pe-
la instalação de um aparelho te-
lefônico (apenas o serviço), R$
1.242 pela liberação da ferra-
menta online WhatsApp Web
(o que significa desbloquear o
firewall da rede, serviço feito
remotamente) e R$ 961 para ca-
dastrar um usuário na rede. O
custo total deste contrato era
de R$ 32 milhões.
Os auditores propõem, ago-
ra, que o tribunal notifique o
Ministério da Economia para
que a pasta adote uma série de
medidas, como a edição de nor-
mas de controle e portarias pa-
ra evitar fraudes na área. Em
caso de suspeitas de corrup-
ção, as informações são repas-
sadas à Polícia Federal.
Em nota, a secretaria de Go-
verno Digital do Ministério da
Economia afirmous que orien-
ta os 220 órgãos do Sistema de
Administração dos Recursos
de Tecnologia da Informação
(SISP) sobre diretrizes e práti-
cas legais recomendáveis nas
contratações da área de TI. “To-
dos os órgãos da administra-
ção pública federal são autôno-
mos para realizar contratações
e gerir seus contratos adminis-
trativos, e estão submetidos à
fiscalização dos órgãos de con-
trole”, diz o texto. Procurados,
Casa Civil e Palácio do Planal-
to não se manifestaram até a
conclusão desta edição.

Resistir e unir é preciso,
mas sem criar pretextos e
ambiente favorável a golpistas

ELIANE


CANTANHÊDE


Desigualdade de armas


lUma das contratações listadas
pela força-tarefa do Tribunal de
Contas da União (TCU) foi da In-
fortech Informática, feita pelo
Ministério da Saúde no valor de
R$ 8,6 milhões. O contrato havia
sido firmado em 2018, na gestão
de Michel Temer, mas quando foi
renovado, já no governo de Jair
Bolsonaro, levantou suspeitas de
ter sido superfaturado. Isso por-
que, 12 meses após ter sido con-
tratada, a empresa apresentou
um orçamento com a metade do

preço pelos mesmo serviços.
Além disso, na execução do con-
trato, foram assinadas duas or-
dens de serviço que, juntas, equi-
valiam a 99% dos R$ 8,6 milhões.
Chamou a atenção dos técnicos
do TCU o fato de que o contrato
deveria ser para a prestação de
serviços por um ano, mas consu-
miu o valor total em apenas dois
meses. “Carece de explicação
acerca do que efetivamente ocor-
reu”, diz o relatório.
Para os auditores do TCU, essa
situação “pode indicar que não
ocorreu a prestação dos serviços,
ou que podem ter sido prestados
em volume inferior ao volume ates-
tado e pago, o que caracteriza su-
perfaturamento de quantitativo”.

No relatório, eles apontam a ne-
cessidade de a própria pasta ini-
ciar uma apuração sobre o caso.
O representante da Advocacia-
Geral da União no Ministério da
Saúde, por sua vez, recomendou
que não houvesse renovação.
Segundo seu parecer, não havia
nos autos estudo que justificasse
essa variação, o que “poderia re-
presentar a existência de superfa-
turamento dos valores inicialmen-
te contratados”. Além disso, exis-
tia incerteza se o serviço era, de
fato, tecnologia da informação.
O Ministério da Saúde informou
que não houve a prorrogação,
mas não respondeu se foi aberta
investigação, conforme recomen-
dado pela AGU. / B.P. e P.C.

NA WEB
Vídeo. Ministro
é ‘escoltado’
por apoiadores

estadao.com.br/e/weintraubmec
6

DIDA SAMPAIO/ESTADAO

Investigado por post


considerado ofensivo a


chineses, ministro


também faz críticas a
Partido Comunista


PARA LEMBRAR

Pasta contratou


sem licitação


Em fevereiro, o Estadão re-
velou que o Ministério da
Cidadania firmou contratos
sem licitação, em 2019, para
contratação de serviços e
soluções na área de compu-
tação, apesar de alertas dos
órgãos de controle. A pasta
era comandada, na época,
pelo deputado federal Os-
mar Terra (MDB-RS).
Uma das empresas contra-
tadas foi a Business Techno-
logy (B2T), alvo da Polícia
Federal na Operação Gave-
teiro sob a suspeita de ter
sido usada como fachada
para desviar R$ 50 milhões
dos cofres públicos entre
2016 e 2018. Bolsonaro che-
gou a cobrar explicação do
então ministro sobre a con-
tratação, e o caso ajudou a
enfraquecer Terra, demitido
dias depois da publicação da
reportagem.

Corte cita empresa


escolhida pela


pasta da Saúde


MARCOS OLIVEIRA/AGENCIA SENADO-9/8/

TCU vê indício de


fraude em acordos


de R$ 500 milhões


Força-tarefa encontra suspeita de irregularidade em 55 contratos de


empresas de tecnologia com governo federal e vê risco de corrupção


TCU. Apuração mira contratos na Saúde, Cidadania, Educação, Economia e Infraestrutura
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