Estado de Minas (2020-06-05)

(Antfer) #1

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  1. ESTADO DE MINAS Sexta-feira,5dejunhode^2020


●Edição:Carlos Marcelo●Ediçãod earte:JúlioMoreira●Revisão:AdemarFulgêncio●Contato:[email protected]

Estranha ebela vertigem


Em novo livro, opoeta cariocaEucanaã Ferraz utiliza olirismo


parafazeroleitor mergulhar em abismos entreocéu eassombras


EmRetratoscomerro,opoetacarioca
EucanaãFerrazpercorremundosconcretos
eimaginados,faladoditoedonãodito,fala
desegredosefatos.Nonovolivro,Eucanaã
descreve,comumlirismoaomesmotem-po
restritoeamplo,osabismoseoabsurdodo
amor,doindizível desejoquenosconcerne.
Eleseencanta comabelezaeaperfeiçãoque
atudose cola,também“ilumina” ohorror,as
sombras,omedo,aloucura,tudoissonuma
miscelâneaímparquesómesmoapoesiaé
capazdeengendrar.
“Nãofuieuquemfezomundo/esei que
issoconta ameufavor”;“sóosilêncio que
reluzéouro”,opoetasugere.Avidanãose
submete,nãose deixafixardeformaalguma.
Todoretratomente,ésuscetível aosolhos
quealipousam,quealidormem.Avidaape-
nasri. Detudo,edetodos.Ela,avida,sabe,nos
dedentroenos defora,quetudoestáincom-
pleto,tudoquemedrabuscaalgumtipode
redenção.
Divididoem“dobras”,olivrocomeçana
segundaparte.Aprimeira,comoumaespé-
ciedeausência essencialaocontextodos
erros,emprestaumdinamismoúnicoeespe-
cial àestruturapoética.Opoeta,acadaverso,
confirmaoimponderável esecontradiz,sem
qualquerprejuízoparaambasas partes.Cabe
aoleitormergulhar emumsentimentode
vertigemeestranhamento.
Eucanaãvaidolirismopuroaocético,ao
pesado,semperderoprumo,comosolhos
voltadosparaadelícia –eparao“terror”–da
escrita.Apoesiaapaziguaefere,eopoeta
transitacomopoucosentreocéueassom-
bras.Chamaaatençãoamaturidadepoética
dodonodeumapoesiafeitapara“gente
grande”,emtodosossentidos.Espécie de
samurainordestino,oucarioca,éumpoeta
forteeexigequeosseuspossíveisleitores
tambémsejam.
Quasetudocabenouniversopoéticode
Eucanaã,oamorlírico,odesejo,comotam-
bémosórdido,onada,tudoissomisturado
numamiscelâneaqueemnadaatrapalhaa
excelência dospoemas dolivro.“Osol forte
dosdias”servemuitoparaapoesia,que
exerceexemplarmente suafunção.Euca-naã
édonodeumasintaxemusical.Lerospoe-
masdeRetratoscomerroemvozaltafun-
cionaedinamizaesseprocessodesentimen-
talidades.Nadaderimas. Nadadefáceiscon-
struções.Certaspoesiasvãodos“áureosanos
milesetecentos”,oudebemantes,aoinfini-
to,ealém.
Eucanaãparecequetorceparaotime
adversário,torçeevelapelafantasiaeécapaz
defalarsobre“aberrações”,entreelaso
próprio amor,talvezamaiordetodasaber-
rações contemporâneas. Apoética de
Eucanaãnãoserestringeaporquêsecon-
clusões.Elesabebemdosseusdeslimitesno
âmbitodaliteraturaetransitaàvontadeden-
trodesseuniversoquese expandeebrilhaa
cadanovolivro.


Reverênciasepríncipeshúngaros


EmRetratoscomerro,opoetareverencia
outrospoetasefaladepríncipeshúngaros
comamesmadesfaçatez,comamesma
graça,comamesmadelicadezacomque
chamaanossaatençãoparaas coisasdaciên-
ciaeasdelíciaseosmistériosquemoram
nummeroesingelomuro pintadodebranco.
Onada,destaforma, ganhaumestatutode
estrela.Umtipodepoesiaúnicafeitasobaluz
doencantamento.Éprecisopredisposiçãoe
fôlegoparacaptaros enigmas,paraperceber
osilêncio queemanadas “rosascompletas”.
Nenhumaresenha, nenhumacríticavai
estaràalturadapoesia.Nãocabeaquiomar,
aamplitudedesignosesentidosquecada
poemamostraerevela,revelaemostra,
numacirandamarcadaprincipalmente pelo
afeto.Retratoscomerroelevaoparadoxoque
sóapoesiaécapazdeproduzirnumgrau
máximo.
Apartirdotítulo(cadapoemapodeser
umafoto),os retratosnãoenganam,quando
muitooscilamos olhosdeacordocomas ver-
tigensquecadapintura,quecadaimagem
suscitaesugere.Poemassãoperigosos
demais.“Erram”,dessaforma, ostextos,por
serem,naturalesimplesmente,poemas.
Umapoesiafeitadeamálgamas,depedras
sobrepedras,defloressobreflores.Umtipo
depoesiadura,bem-vindadaprópria vida.


‘‘Comovocê‘‘trabalha’’ospoemas?Vocêosreescreve?
Trabalhomuito.Costumofazerasprimeiras
versõesdospoemasalápis,emcadernos.Só
passoparaocomputadorquandosinto queo
poemaestápróximodeumaversãofinal ou
quandojá nãoconsigoentenderoqueestá
escrito entresetasesobumaintrincadaredede
rabiscos,círculos,asteriscos.Éoquemais gosto
defazer,emborameenvolvacomalegria na
tarefademontaros livros.

Enocasodoseuslivros?Comosedáesseprocesso?
Nocasodolivro,entra emcenaasensaçãode
queestouconstruindoalgodefinitivoeisso
geraumaenormeinsegurança,quepodeser
assustadora.Já opoemapermiteumainfinita
possibilidadedeacertos,ajustes,variantes,e
issofazcomqueas desconfiançasevacilações
pareçammenosintimidadoras.Otrabalhode
fazeropoemaéalgoquemedágrandeprazer,
oquenãoexclui osofrimento.Mas éumsofri-
mento buscado.

Comosurgemostítulosdosseuslivros?
Emcertomomento,compreendoqueaescrita
dospoemas se encaminhaparaumaespécie de
ponto comum.Há,nisso,tanto umasurpresa
quantoumacoincidência comcertasinqui-
etaçõesminhas,quesãodeordemestética,mas
também,digamos,existencial.Aescolhadotítu-
lo quasesemprese dáaí.Maisqueumnome,
portanto,otítulofuncionacomoumaimagem
guia.Assim,depoisdeescolhido,nãoconsigo
trocá-lo.Olivroficasendoaquele, odotítulo.
Sinto issodemodotãofortequenãopossofazer
deoutromodo.Namelhordashipóteses,penso
queotítulolevaolivroparaoladoqueele, o
livro,quer,esei quenãodevodesobedecê-lo.

Háumarotinadetrabalhoparaescreverpoesia?
Nãotenhorotinadetrabalho.Comigonãofun-
cionaassim(nãoseise comalgumpoetafun-
cionarádeoutromodo),comhorários,disci-
plina. Costumopassarsemanasseguidastra-
balhandonunsversos,diaenoite,pordentro
dasmadrugadas,numaexaustãofísicaeemo-
cional quasetorturante,emuitasvezesposso
levarmesessemescrevernemumversosequer.

Qualasuaanálisedocenáriopolític o-culturaldonosso
país?

Ocenário políticoeculturalnopaísémuito
complexo. Semprefoi,eudiria. Agora,passamos
porummomento políticomedonho,quebusca
afetardiretamente avidaartísticaecultural
comsuamesquinharia esuaignorância. Aestu-
pidezarrogante davidapolíticabate-seexplici-
tamente contraainteligência ealiberdade,a
memória eacrítica.MasavidaculturalnoBrasil
éforte;elasobreviverá,nãoporquetemosespe-
rança,masporquetemosformas consolidadas
ecapacidadederenovação.Julgoquenemsabe-
mosaocertoaforçaquetemos.Eseéprecisoter
consciência dela,intuoquetambémserviráa
nossofavor“nãosaber”.Pensoqueébomser
umpoucoirresponsável, infantil.Éimportante
nãoterconvicçõesfortesdemais.

Poderiacitarassuasreferênciasliterárias?
Minhasreferênciasliteráriassãomuitas.In-
cluem,claro,jánaminhaformação,osgrandes
modernosbrasileiros:CecíliaMeireles,Manuel
Bandeira,Drummond,JoãoCabral.Maisrecen-
temente,ViniciusdeMoraes.Nãofaltouo
onipresente FernandoPessoa.Ehouveaprosa
deClariceLispectoreosensaiosdeRoland
Barthes.Masnadateria relevância semavozde
minhamãecantandoas cançõesdeMaysaou
deDoloresDuran.Minhagrandeinclinação,no
entanto,semprefoiplástica.Muitocedodesco-
brieameiPierodellaFrancescaeGiotto.E
minhaprimeiraexperiência comaartemoder-
naaconteceuquandovi areproduçãodeum
óleodeMatisse.

Quaissãos euslivrosdecabeceira?
Minhacabeceirapassoumuitotempoocupada
comapoesiadeSophiadeMelloBreyner
Andresen,sobrequemacabodeescreverum
ensaio.Sempreestoulendoalgumensaio.
Tenhomevoltadoagoraparaotemadapai-
sagem,desenvolvidoquasequeintegralmente
porestudiososfranceses.Ememantenho
curiosoacercadapoesiaquese escreve hoje.No
momento, leioTalvezprecisemosdeumnome
paraisso,deStephanieBorges.

QualafunçãodopoetanoBrasilcontemporâneo?
Umpoetatemhojeafunçãoquesempreteve:
escreverpoemas.Issosignificaumaescuta do
mundo.Éumaapostaabsolutanaliberdadee
nadignidadedascoisas.

POEMASELECIONADO






Foto


Eisoretrato semnenhumretoque:
agoraéotempodacançãoimóvel
sobasombradoteurostoassimquieto
oqueeraosol agoraésonoetédio
oquevibravaagoraévidroopaco
agoraéotempodoversoestragado
pelailusãodenosbastarmosnele
amadrugadase apagounapele
omeucaminhoagoraéumgestoseco
éoteusilêncio quemedizéotempo
deumcéudesertocéusemcéuocerto
éfecharmosas portasesquecermos
ahoraégrandeagoraenossepara
porletrasmortescomoumdicionário
entreosteusdedosforam-seas cidades
ehámuitaspedrasnosmeusolhosáridos.
Esteretrato semnenhumretoque.

●●RETRATOS COMERRO
●●De EucanaãFerraz
●●Companhiadas Letras
●●126 páginas
●●R$ 49,90

EucanaãFerraz


‘‘Escrever poemas significa umaescutadomundo’’


ANDRÉDIBERNARDI
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EucanaãFerraz, sobreRetratoscomerro:“ Otítulo funcionacomo uma imagem guia; depoisde escolhido,nãoconsigotrocá-lo”

GUANABARATEJO/DIVULGAÇÃO
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