Estado de Minas (2020-06-05)

(Antfer) #1

  1. ESTADO DE MINAS () Sexta-feira,5dejunhode^2020 .3


MIGUELCONDE


CARLOSMARCELO


Vidaspóstumas


Escritoracanadenseepesquisadora norte-americanarevelamcomo


traduziram paraoinglêsobras memoráveisde MachadodeAssis


eGraciliano Ramos,que acabam deserlançadasnos EUA


O“brasileiroencrencado”de
SãoBernardo,comooescritorala-
goanoGracilianoRamosdefiniu
alinguagemdessequeéumde
seusmais conhecidosromances,
estáchegandoaosleitoresnorte-
americanosnumanovatradução
queacabadeserlançadanosEUA
dentrodaprestigiosasériede
clássicosdaNewYorkReviewof
Books.Adifícil tarefadeverterpa-
ra oinglêsaprosaarrevesadade
PauloHonório,memorável pro-
tagonistaenarradordolivro,fi-
couacargodaescritoraedrama-
turgaPadmaViswanathan.
Leiturassobrecandomblée
compilaçõesdeMPBlançadaspe-
lo cantorDavidByrne(ex-Talking
Heads)foramosprimeirospon-
tosdecontatodessacanadense,
nascidaem 1968 numacidadezi-
nhanaColúmbiaBritânica,com
aculturabrasileira.Oplanodees-
creverumapeçateatralsobrea
repressãopolíticanoConeSula
trouxeem 1999 aoBrasil,onde
elaaprimorouseuportuguês.
AntesdeencararSãoBernar-
do,Viswanathanjáhavia traduzi-
doumcapítulodeVidassecase
oscélebresrelatóriosescritospor
GracilianoRamosquandoera
prefeitodePalmeiradosÍndios,
querevelaramaomeioliterário
brasileiroaverveirônicadoautor.
TraduzirSãoBernardofoicomo
tomarabrigonaprosadeum
mestre,elaconta nestaentrevista
pore-mail,emquediscute ode-
safiodeverterparaoinglêsesse
clássicodaliteraturabrasileira.


GracilianoRamos se utilizou mui-
todafaladodiaadiaemSãoBer-
nardo,oque pode ter aguçadoo
realismodo livroparaosleitores
de 80 anos atrás,mas agoraal-
guns trechossoam quaseindeci-
fráveis mesmoparaumfalante
nativo, ou pelo menosum do Rio
deJaneiro, comoéomeucaso.Co-
mo foicriar um registroeminglês
que fosse fiel aesse aspecto do li-
vrosem,noentanto,afastaroslei-
toresdeprimeiraviagem?
Defato,nãoseise foimais assus-
tadoroutranquilizadorquando
medeiconta dequeolivronão
eradifícil deentenderporconta
domeuportuguês,apenas,mas
tambémporsuadistância emre-
laçãoaomundodamaiorparte
deseusleitores.Casoissote con-
soleumpouco,jáeraassimna
épocaemqueoromancefoies-
crito!GracilianoRamosdelibera-
damente incorporouaolivroex-
pressõesnordestinasobscuras,
coletadascomempregadosdafa-
zendadoseupaiouclientesda
sualoja,emPalmeiradosÍndios.
Numacartaàsuaesposa,Heloisa
Ramos,eledissequeestavatradu-
zindoolivro“doportuguêspara
obrasileiro”,mas comissoelenão
queria dizeralinguagemdasclas-
seseducadasdoSuldopaís,mes-
mo queelascompusessema
maioria dosseusleitores,esim
“umbrasileiroencrencado,mui-
todiferentedessequeaparece


noslivrosdagente dacidade,um
brasileirodematuto,comuma
quantidadeenormedeexpres-
sõesinéditas,belezasqueeunem
mesmosuspeitavaqueexistis-
sem.”Então,aotraduzir,euprocu-
reiaproximar ouafastarosleito-
resotantoquantoelepróprio o
faz.Quandoeudescobriaque
umaexpressãoseria desconheci-
daparaamaioria dosbrasileiros,
euinventavaumaequivalenteou
traduzialiteralmente.Ondeele
usaexpressõesfamiliares,tentei
substituí-lasporoutrasdeuso
corrente nosEstadosUnidos(ou,
pelomenos,tenteiemtermosge-
raisusarexpressõesfamiliares
comtantafrequência ouinfre-
quência quantoele).Algunsas-
pectosdolivrosãoobscurossem
quesejaporcausadoidioma—
porexemplo,quandoos persona-
gensdiscutempolítica—enesses
casoseutenteicriaramelhorre-
presentaçãopossível daposição
decadaumsemlevarainterpre-
taçãomais longedoqueotexto
meparecia permitir.Mas euesta-
vaprincipalmentepreocupada
emreproduziravozdolivro,eco-
moapremissadahistória éque
tudoaquiloéescritooucontado
porumúniconarrador,issome
deuumeixoemtornodoqualto-
doorestopodiagirar.

Uma das palavras mais frequentes
dolivroé“mil-réis”,amoedabrasi-
leiradaépoca. Dinheiroéaprinci-
palpreocupaçãodePauloHonório,
eeumepergunto se esse éumas-
pecto do livroque pode torná-lo
maisatraenteparaopúbliconorte-
americano.Atéquepontovocêacha
que omundo deSãoBernardopa-
receráfamiliaraosleitoresdosEUA?
Leitoresnorte-americanosvão
encontrarbonsparaleloscom
PauloHonórionoThomasSu-
tpendeAbsalão,Absalão,deWil-
liamFaulkner,outalveznoGats-
bydeF. ScottFitzgerald—ho-
mensdeorigensobscurasmovi-
dospelodesejoporbensmate-
riaisepelopoderquevemarebo-
quedisso.Esseshomenssobem
navidaatéimporrespeito.Mas
sabemque,emalgumamedida,
semprelhesfaltarárespeitabili-
dade.Pensandonisso,nãotenho
certezadequeodinheiroemsi
mesmosejaaúnicapreocupação

dePauloHonório,emboraseja
umadas principais.Asestratégias
dessecapitalistaimpiedosome
parecemantesvoltadasàcons-
truçãodeinstituições,oquesig-
nificadizer,arefazeromundo.O
romance,afinal decontas,levao
nomedafazenda—essafazenda
ondeeletrabalhoucomoempre-
gadoanalfabeto,edaqualeleto-
mapossedepoisdelevarodono
acontrairváriosempréstimos
comele. PauloHonório nãose ir-
rita apenasqueodono,herdeiro
dapropriedade,nãosedêaotra-
balhodecuidardela.Maisdoque
isso,PauloHonório vêopotencial
daterraequerfazeroqueforpre-
cisopararealizá-lo.Ele trabalha
duroplantandoumpomar,pavi-
mentandoumaestrada,cons-
truindoumarepresa,educandoa
si mesmocommanuaisdeagri-
cultura,atédesenvolver opiniões
firmessobreasdiferentesraças
deboisegalinhas:“Pramim”,ele
diznolivro,“SãoBernardoerao
lugarmaisimportante domun-
do”,seufeudoeseurefúgio,um
lugarsobreoqualeletemcontro-
le absolutoecujaprosperidadee
belezaelepodeacreditarserem
delepróprio também.

Aescrita eoletramento também
sãotemascruciaisnolivro. Sãoins-
trumentosdepoderquePauloHo-
nório,adespeitodetodaasuafor-
çabrutaeambição,nuncachegaa
dominarde fato.Ociúme que ele
sente da esposa,Madalena, pare-
ce estar ligadoàrelaçãodela com
livros ecom osaber.Deinício,ele
seincomodacomosartigosdejor-
nal que ela escreve, edepois fica
obcecadoporsuascartas.Essasre-
laçõesentregênero, escritaepo-
der emSãoBernardotiveram al-
gum peso na maneiracomo você
viuseuprópriotrabalhodetraduzir
anarrativadePaulo Honório?
Comeceiessatraduçãonummo-
mentoestranhodaminhavida,
comoescritoradeficção.Meuse-
gundoromancetinhasidofinalis-
tadeumgrandeprêmio,oque
fezcomqueelerecebesseuma
atençãoinesperada,antesdesub-
mergirdenovo, comoromances
tendemafazer,oquemepermi-
tiuvoltaràminhavidadesem-
pre,comumasensaçãodegrati-
dãoederessentimentoaomes-
motempo. Então,buscarabrigo
porumtemponaprosadeum
mestre,emespecialumqueeu
acreditavatersidoinjustamente
ignoradonocânoneliterário in-
ternacional,pareciaoremédio
perfeito.Aotraduzirasváriasca-
madasdeironiadolivro,tendo
noçãodaincrível minúcia com
queGracilianohaviaesculpido
cadasentença,eusentiaqueesta-
vaprestandoumserviçoaele ea
seulegado,masquetalveza
maiorbeneficiadafosseeumes-
ma.Traduzi-lotambémmedeu
umanoçãomais abrangente dali-
teraturabrasileira,emtermosge-
rais.AAcademiaBrasileiradeLe-
trassóelegeusuaprimeirainte-

SãoBernardo, porPadma Viswanathan


MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS,


PORFLORA THOMSON-DEVEAUX


SÃO BERNARDO,PORPADMA VISWANATHAN


‘‘ÉINCRÍVEL A


MINÚCIA ESCULPIDA


EM CADA SENTENÇA’’


“FUIFISGADAPELAINESPERADA


MODERNIDADE EOUSADIA”


grante mulher,RacheldeQueiroz,
em1977,emboraelajá tivessere-
cebidooPrêmioMachadodeAs-
sispeloconjuntodasuaobra 20
anosantes,comoseosdistintos
senhoresdaAcademiativessem
menosdificuldadedereconhecer
suaobradoquesuapessoa.O
próprio GracilianoRamosconfes-
souque,até lerRacheldeQueiroz,
nãoacreditavaqueumamulher
pudesseserescritora.Eleadmi-
routantooromancedeestreia
dela(Oquinze)que,apesardever
onomeeafotodaautora,pensou
quefossemsóumdisfarceusado
porumhomem.(Taispreconcei-
tosaindanãose dissiparamdeto-
do:recentemente,quandoeues-
tavapenandoparamontaruma
bibliografiaparaumcursosobre
ficçãobrasileiratraduzidaparao
inglês,umcolegameencami-
nhouumestudofeitoem 2012
pelaprofessoradaUnBRegina
Dalcastagnèmostrandoquedos
autorescontemporâneospubli-
cadospelasprincipaiseditoras
brasileiras,73%eramhomens,e
93%,brancos.)
Portanto,nãopossodeixardeme
perguntaroqueGracilianoRa-
mospensaria deumamulhertra-
duzindoseutour-de-forcedoho-
je;chamaríamosde“masculini-
dadetóxica”!Tenhoquedizer,po-
rém,queconsiderosuacaracteri-
zaçãodeMadalenanãoapenas
sensível, masnuançada.Adescri-
çãodarelaçãoentreelaePaulo
Honórioéquaseinsuportavel-
menteemocionante,eemnão
pequenamedidadevidoaomo-
docomotrata darelaçãodoletra-
mentocomclassesocial,cone-

ciosonoseujeitodeorquestrar
essastorturasedescreversuas
maquiavelicesqueeunãopude
senãomedivertirajudando-oa
contarascoisasdojeitoqueele
queria. Deixe-meacrescentar,po-
rém,quehánolivrováriasexce-
çõesnotáveisaessacrueldade.
PauloHonório se esforçaumbo-
cadoparareencontrarsuaantiga
mãeadotiva,porexemplo,eao
conseguireleatrazparaafazen-
daeainstalanumacasinhalá. De
modosemelhante,eleresgatae
protegeumantigofigurãoda
província, seuRibeiro,quefoipor
assimdizeratropeladoetornado
obsoletopelastransformaçõesdo
século20,atéacabarnapobreza.
Comambos,elenuncaésenão
ternoerespeitoso.Porcontraste,
comaesposaeleéterrível,em
parteporenxergá-lacomouma
propriedade,comoafazenda,
masumaqueelenãotemcomo
controlardetodo.Éoarrependi-
mentodeleemrelaçãoaomodo
comotratouMadalena, noentan-
to,quemotivaaescrita dolivro,e
as notasdemelancoliadessearre-
pendimentoreverberamnalou-
curadeHonório nodesfecho.

MiguelConde éjornalista,editorde
resenhasdo site WordsWithout
Bordersevisitante acadêmicona
Universidadede Oxford

Entrevista publicadaoriginalmente no
site WordsWithoutBorders.
Leia aínt egraeminglêsem
http://www.wordswithoutborders.org/dispatches

ESPECIAL PARA OEM

WANDERMELOMIRANDA

Professoreméritoda Faculdadede Letras da UFMG, autordeCorposescritos:
GracilianoRamoseSilvianoSantiago;prepara biografiadoescritor alagoano

ComoSãoBernardose situa na
obradeGraciliano?
Éomomentodeplenarealiza-
çãoficcional,queabrecaminho
paraasoutrasobras-primasque
escreverá.Olivroestámuito
acimadamédiadeseuscon-
temporâneos.Oromancistade-
monstradomínioincomumda
técnicaedalinguagem,quese
revelamdeváriasmaneirasno
livro,entreelasareflexãosobre
ofazerliterárioàmedidaquea
narrativavaisendoescrita.A
diferençaqueinstauranocon-
textodo romancedos anos
1930 éumdosmuitostraços
caracterizadoresdasuaexcelência.Gracilianoconsegueunir,sem
soluçãodecontinuidade,reflexãosobreoatodeescrever, aguda
introspecçãopsicológicaetratamentodensodaquestãofundiária
nordestina, apartirdaabordagemdeumarelaçãointerpessoalque
trazparaoprimeiroplanodanarrativa,aquestãodaalteridade.Ela
se destacanãosónarelaçãodeMadalenaePauloHonório,mas tam-
bémnacríticaàmodernizaçãoexcludente queoavançotecnológi-
codafazendaS. Bernardoindica.Foinecessário esperaraté1 955 para
aparecerumromancequeseassemelhaaS.Bernardo,masnocon-
textolatino-americano:PedroPáramo,domexicanoJuanRulfo.

Quaisas principaiscaracterísticasdo estilodo escritor ecom quê
um tradutor deve ter cuidadoao verter paraoutroidioma?
Amaiordificuldadedatraduçãosedeveàsexpressõesouvocábu-
losregionaispresentesnolivro,aoritmomuitoespecíficodafrase
eàmontagemtextualextremamentecomplexaesofisticadana
suaaparentesimplicidadeeclareza.Lembre-sedequeemcartaà
esposaHeloisa,emnovembrode1932,Gracilianopodeanunciar:
“S.Bernardoestá pronto,masfoiescritoquasetodoemportuguês
[...]Agoraestásendotraduzidoparaobrasileiro,umbrasileiro
encrencado,muitodiferente dessequeaparecenoslivrosdagente
dacidade,umbrasileirodematuto,comumaquantidadeenorme
deexpressõesinéditas,belezasqueeumesmonemsuspeitavaque
existissem”.Opai,Octávio,ChicoeJoséLeitelhe“servemde
dicionário”eapublicaçãodolivro“servirámuitoparaaformação,
ouantesparaafixaçãodalínguanacional”,ressalta.Econcluicom
aperguntaquesetornarácélebre:“Quemsabesedaquiatrezen-
tosanoseunãosereiumclássico?”.

Padma aponta paralelosde
Paulo Honóriocompersonagens
de FaulknereFitzgerald

FloraThomson-DeVeaux:
encanto comacomplexidade
das personagens femininas
de Machado

BrásCubas,odefuntoautor
queescreviacom“apenadaga-
lhofaeatintadamelancolia”,
acabaderessuscitarnovamente.
Destavez, nãopormeiodeseu
criador,JoaquimMaria Machado
deAssis(1839-1908),maspelas
mãosdatradutoranorte-ameri-
canaFloraThomson-DeVeaux.
Coubeàpesquisadora,quese de-
bruçousobreaobradoescritor
brasileiroparaasuatesededou-
torado,verterparaoinglêsas “ra-
bugensdepessimismo”doper-
sonagemeternizadopormeiode
suasmemóriaspóstumas.Com
otítulodeTheposthumousme-
moirsofBrásCubas,aobra-pri-
madeMachadodeAssis(“Um
dosmaioresautoresnegrosdas
Américas”,destacaomaterialde
divulgação)foilançadanoinício
dasemananosEUApelacoleção
PenguinClassics,umadasmais
tradicionaisdomundo.Outra
tradução,realizadaporMargaret
JullCostaeRobinPatterson,sai
embrevepelaeditoranova-ior-
quinaNorton.
Noprefácio daediçãodaPen-
guin,oescritorDaveEggersdes-
tacaohumordolivroesaúdao
trabalhodeFloraThomson-De-
Ve auxporcapturarotomde
Machado,“aomesmo tempo
mordazemelancólico,autolace-
rante eromântico.” Elainicioua
traduçãoem 2017 ,maspesqui-
souaobrapordoisanosparao
doutoradoemestudosportu-
guesesebrasileirospelaBrown
University.“Costumodizerque
foiumprocessoque,nototal,le-
voucincoanos.Eunãoteria de-
dicadoessesanosdaminhavida
se nãotivesseaconvicçãodeque
eraparatraduzirumromance
queatravessaépocas”,comentou
Floranaúltimaterça-feira,aore-
ceberosprimeirosexemplares
desuatradução.Atirageminicial
esgotou no primeiro dia de
lançamento.
MoradoradoRiodeJaneiro
hátrêsanos,atradutora,nascida
emCharlottesville, estevepela
primeiraveznacidadeem2011.
“ReconheçooRiodoMachado
naspessoas,nasinterações,o
tempotodo.Napaisagem,isso
pode requerer um exercício
maisoumenosconscientede
abstrairintervençõesurbanas
contemporâneas”,acreditaFlora,
quetrabalhacomodiretorade
pesquisasnaprodutoradepod-
castsRádioNovelo:“Tenhomui-
tasaudadedeandardeônibus
noCatete,naGlória,noCentro–
olhandodoprimeiroandarpra
cima,dáparafingirtranquila-
mentequeseestánoRiode,se
nãoodeBrásCubas,entãotalvez
odoConselheiroAires.”
Flora Thomson-DeVeaux,
quetemapalavra“traquinas”co-
moumadesuasfavoritasnas
páginas deMachado,nãochegou
ausaromesmoexpedientedo
escritor:“A dmiroquemtemesse
talento,mas soumais decolocar
umanotaenormedefimdeli-
vroexplicandoasminúciasdas
traquinagens machadianas”.
Alémdeestudaraspersonagens
femininasdeMemóriaspóstu-
mas,atradutorarevela fascínio
poroutramulhermachadiana:
“Sempreficoumpoucoassom-
bradapelafiguradaminhaxará,
aFloradeEsaúeJacó,quevaiso-
frendoedefinhando,paralisada
pelaindecisão.Éumatragédia
potencialcujo perigoostraduto-
resconhecemmuitobem”.
AntesdaentrevistacomFlo-
ra Thomson-DeVeaux,umaviso
aoleitor.Asúltimas palavrasdes-
teparágrafopertencemaBrás
Cubas,“umdefunto,quesepin-
touasieaoutrosconformelhe
pareceumelhoremaiscerto”,se-
gundoMachadodeAssis:“Aobra
emsi mesmaétudo:sete agra-
dar,finoleitor,pago-medatare-
fa;setenãoagradar,pago-te
comumpiparote,eadeus”.

Quais as suas primeiras reações e
os primeiros encantoscom aleitu-

passagensmachadianasparao
livro,eissoplantouumasemen-
te:entreinodoutoradonomes-
moanoeresolvidedicaresse
tempo, essesanosdepesquisa,
aopreparodeumanovatradu-
ção.EscolhiMemóriaspóstumas
justamenteporquefoiumdos
romancesqueapresentaramdi-
ficuldadesnocontextodoproje-
toanterior,epelaforçadofascí-
nioquemeinspiraraaindana
graduação.
Emúltimaanálise,éimpossível
desligaravontadedefazeruma
novatraduçãodavontadede
analisarasanteriores.Doatode
lerumatraduçãoporumaótica
crítica,nemquesejaumacrítica
construtiva, nasceodesafio:en-
tão, comovocêfaria diferente?E
qualquerretraduçãoresponsá-
velvaiimplicarumareleitura
cuidadosa das interpretações
queaprecederam.

Quais passagens do livrotrouxe-
rammaior dificuldade?Eassuas
passagens favoritas?
Nasemanaantes dolançamento
datradução,resolvifazeruma
“contagemregressiva”atravésde
umexercício simples:tododia,
sorteavaumapáginaaleatória
doromance(paragarantiraalea-
toriedade,recorriaumgerador
denúmerosdoGoogle) paraco-
mentarnasredessociais.Eujá
sabiaquemesmoaspassagens
demais “simplicidade”aparente
escondemarmadilhas terríveis,e
esseexercício comprovouqueli-
teralmentequalquerpáginado
romanceguardadificuldades
fascinantes.Masparacitaruma
frasemaisemblemática,sofri
muitoparatraduzirdeforma
sintéticaainversão“eunãosou
propriamente umautordefun-
to,masumdefuntoautor.” É
umabelabrincadeira.Minha
soluçãofoi“I amnotexactlyan
authorrecentlydeceased,buta
deceasedmanrecentlyanau-
thor.” Quantoàspassagensfa-
voritas,sãoinúmeras,maspos-
sodizerqueaexperiênciade
traduzirOdelírioetentarrepro-
duziraspassagenssurreaisfoi
quasepsicodélica.

Como aescrita de Machadode As-
sis reflete aépoca em que oescri-
torviveu?
Dápararesponderdeváriosân-
gulos.Osromancesestãonum
diálogoclarocomquestõesda
época–sociais,filosóficas,cultu-
rais–, dasquaisalgumaspodem
estarmais presentesparaoleitor
dehojedoqueoutras.Oquea
escrita menosrefleteéoestiloda
época.OportuguêsdoMachado,
peloseurigoresuaaproximação
com aoralidade,envelheceu
muitíssimobem.

Oqueconsideramaismarcantenas
personagensfemininasdoescritor?
Porqueasdescreve,emseuartigo,
como “fontes perenes de ambigui-
dade”?
Essefoiumdosaspectosqueme
surpreenderamquandofuiob-
servarasdivergênciasentreas
traduçõesdeMemóriaspóstu-
masdeBrásCubas:ostradutores
muitasvezes“discordavam”so-
breogestual,acaracterização,e
aintencionalidadeatribuídasàs
personagensfemininas.Elassão
construídascompoucaspincela-
das,egrandeparteda“feitura”
dasmulheresdoromancena
verdadecabeaoleitor–ouao
tradutor,nocaso.Porexemplo,
quandoaMarcelaabanaacabe-
ça “comumar delástima,”ostra-
dutores interpretam acarga
emocional portrásdogestode
maneirasmuitodiferentes–po-
deterumtoquedeescárnio,ou
vergonha, outristeza.Comisso,
agente podesuporqueamesma
coisaacontecesilenciosamente,
nacabeçadosleitores.Sóestudei
afundoascaracterizaçõesdos
personagensdesteromance,e
podeserqueomesmoaconteça
compersonagensmasculinos
nosoutroslivros.Maspossodi-
zerenquantoleitoraqueasmu-
lheresdoMachadosãoeterna-
mentesurpreendentes,esem-
premais complexasdoqueuma
primeiravistapodesugerir.

ra deMemóriaspóstumasdeBrás
Cubas?
MeuprimeiroencontrocomMe-
móriaspóstumasdeBrásCubas
foinosegundoanodafaculdade,
quefoitambémmeusegundo
anodeestudodalínguaportu-
guesa.Já estavaplenamente fas-
cinadapeloestudodoBrasil,e
achoquedealgumaformasenti
queestavanahoradeencarar
ummestredaliteraturabrasilei-
ra.Lembro-mebemdeestarno
meuquarto,nodormitórioda
faculdade,eficarespantadíssima
logonocomeçocomas imagens
amalucadas,asalfinetadasno
leitor,osarcasmoferoz.Minha
primeiraimpressãoeradeque
nãoparecia serumromancedo
século19,oqueachoqueéuma
reaçãocomum–masoproces-
sodeconviverprofundamente
comolivroduranteatradução
memostrouoquãoimpregna-
dootextoestádasquestõesda-
quelaépoca.Ganhamosmuito
aolerMemóriaspóstumasple-
namente contextualizado,epor
issofizquestãodeincluirnotas
defimdelivronaediçãodami-
nhatradução.

Você estudoueescreveu sobreas
três traduçõesanteriores do livro
no artigo“Reading Machado
throughthelooking-glass:casestu-
diesfromthetranslationsofMemó-
riaspóstumas”.Porquedecidiufa-
zerasua própriatradução?
Oartigo,naverdade,éumsub-
produtodaminhatesededouto-
rado,quesedebruçousobreas
trêstraduçõesanteriores,além
deincluiraminhatraduçãodo
romancecomoumdoscapítu-
los.Tudocomeçouem2014,
quandofuicontratadaparatra-
duzirumlivrosobreaobrade
Machado,docríticoeprofessor
JoãoCezardeCastroRocha–saiu
eminglêscomoMachadodeAs-
sis:towardapoeticsofemula-
tion.Olivroérecheadodecita-
çõesdaobramachadiana, como
seimaginaria.Meuplanoerade
citaras traduçõesanglófonas pu-
blicadas,semprequepossível,
masemmuitoscasosacabei
vendoqueastraduçõesexisten-
tesnãose “encaixavam”naaná-
lisedoprofessor,quetemum
olharmuitoatentoparaasmi-
núciasdotexto.
Issonãosignificavaqueas tradu-
çõesestivessemerradasequeo
críticoestavacerto,simplesmen-
te apontavaparaofatodequeas
traduçõesexistentesnãocon-
templavamtodaagamadepos-
sibilidadesdeleituradoBruxo.
Issodevepareceróbvio,masfoi
umaconstataçãoimpactante.
Fuiobrigadaaretraduzirmuitas

xõesemocionais,eaprópria
constituiçãoda subjetividade.
Traduzirissofoiumabênção.

Talvez oaspecto mais palpável
da vozdePaulo Honórioseja sua
crueldade.Ele nãoéapenas
broncoouagressivo, mas de fato
sádiconamaneiracomo lida
comoutras pessoasenoprazer
que sente em estar no que pen-
sa ser otopo das situações. Co-
mo foilidar comumnarrador
tãodesagradável?
PauloHonório gostamesmode
fazercertaspessoassofrerem,
nãogosta?Sinceramente,porém,
elesóageassimcompessoasque
aseusolhosmerecem,pessoas
queeleconsideraarrogantesou
preguiçosas,e, comoalguémque
acabouficandotalvezumpouco
íntimademaisdele, confessoque
muitasvezeseucompartilhava
dessasopiniões.Eleétãominu-

Qual odiálogoqueMemóriasPós-
tumasestabelececomobrasdeou-
tros autores da época?
Éumdiálogodeigualparaigual.
Conformefuifazendoasnotas
daminhateseerastreandoas
alusõesliteráriasdentrodoro-
mance,ia tendoaimpressãode
queotextoestásempreseco-
nectandocomoutrostextos,eo
resultadoéquaseumagrande
teiadearanhaliterária.Machado,
enquanto leitoronívoro,estános
mostrandosua“biblioteca”o
tempotodo.Dáparaverqueen-
treaversãoquesaiunaRevista
Brazileiraeaversãopublicada
emlivro,ele atéretiroualgumas
alusões,talvezsesentindomais
seguro,commenosnecessidade
dedesfilaraerudição.

Oque pode despertar ointeresse
de leitores em inglês paraMemó-
riaspóstumas?
Achoqueoquedespertaointe-
ressedequalquerleitoréexata-
menteaquiloquemefisgouna
primeiraleitura:ainesperada
“modernidade”eousadiadeste
romancedoséculo19.Agora,es-
peroquecomestaediçãomais
contextualizada,esseprimeiro
momento deespanto sejasegui-
doporumsegundo,dever como
aobranãosótemraízesprofun-
dasnoespaço-tempodoBrasil
doséculo19,comotambémde
observarcomooMachadope-
gouamatéria-primadocontex-
todeleeteceureflexõesinacre-
ditáveis.Olhandoarecepçãodo
Machadoeminglêsaolongodos
últimos70anos,dáparaverque
acada“onda”detraduçõesma-
chadianaseleganhaumpeque-
nofã-clubedeleitoresquese
sentemquaseultrajadosdenão
terdescobertoomestreantes.
Esperoqueessatraduçãocontri-
buaparaengrossarasfileiras.

em.com.br


OUÇAOPODCASTDOPENSAR
SOBREASTRADUÇÕESDE
MEMÓRIASPÓSTUMASDEBRÁS
CUBASESÃOBERNARDO

“UMPRESENTE


GLORIOSO


PARAOMUNDO”


“Umaobra-primabrilhantee
umdosmaisespirituosos,di-
vertidoseatemporaislivrosjá
escritos(...).Éumahistóriade
amor–muitashistóriasde
amor,naverdade–eumaco-
médiadeclasse,boasmanei-
raseego,tambémumarefle-
xãosobreumanaçãoeuma
época,umolharimplacável
sobreaimortalidadee,ao
mesmotempo,umaexplora-
çãoíntimadapróprianarra-
tiva.Memóriaspóstumasde
BrásCubasétotalmenteorigi-
nalediferentedequalquerou-
tracoisaalémdosmuitosro-
mancespublicadosposterior-
menteequeparecemterse
inspirado,deformaconscien-
te ounão,nolivrodeMacha-
dodeAssis(...).Estatraduçãoé
umpresentegloriosoparao
mundo:brilha,canta;émuito
engraçadaeconseguecaptu-
rarotominimitáveldeMa-
chado,aomesmotempomor-
dazemelancólico,autolace-
ranteeromântico”.

Trechosdo prefácioescritopor Da-
ve Eggers,autorde romancesco-
moOcírculoeOs monstros,paraa
ediçãodaPenguin

PREFÁCIO


DAVEEGGERS

PAULASCARPIN/DIVULGAÇÃO

LEANDROCOURI/EM/D.A PRESS

AFP
Free download pdf