O Estado de São Paulo (2020-06-06)

(Antfer) #1

Ubiratan Brasil


Primogênito de uma família de
11 filhos, o escritor Gabriel Gar-
cía Márquez (1927-2014) era,
entre todos, o menos loquaz –
enquanto os demais se expres-
savam com facilidade, Gabo,
como era conhecido, preferia
escutar e sorrir. “Mas, quando
ele falava, era o momento de
todos ouvirem com atenção
porque Gabriel resumia em
três palavras o que nós diría-
mos em mil”, relembrou, certa
vez, Jaime, o irmão caçula. “Ele
gostava mesmo era de escre-
ver: por meio de seus livros, Ga-
briel passava um entendimen-
to do mundo e dos sentimen-
tos que lhe colocavam como
um verdadeiro gênio.”
E, se a consagração interna-
cional (além do prêmio Nobel
de Literatura de 1982) foi con-
quistada pelo valor de sua lite-
ratura, García Márquez se di-
zia, acima de tudo, um jornalis-
ta. “Não quero ser lembrado
pelo romance Cem Anos de Soli-
dão, nem pelo Nobel, mas pelo
jornalismo”, dizia ele, que en-
tendia tal atividade como
“uma necessidade biológica
da humanidade”.
Uma prova dessa profissão
de fé à imprensa pode ser en-
contrada em O Escândalo do
Século, seleção de 50 artigos,
publicados entre 1950 e 1984,
e que a editora Record lança
até o fim de junho. Trata-se
de um conjunto de textos es-
colhidos entre os que a pró-
pria Record editou em 2006,
distribuídos em cinco volu-
mes. Dessa vez, o garimpo foi
feito pelo editor Cristóbal Pe-
ra e a edição contou com a
introdução de outro grande
jornalista, Jon Lee Anderson.
“Gabo foi jornalista; o jorna-
lismo foi, de certo modo, seu pri-
meiro amor, e, como todos os
primeiros amores, o mais dura-
douro”, escreve Anderson. “Foi
essa profissão que lhe deu as ba-
ses para se tornar escritor, coisa
de que ele sempre se lembrou;
sua admiração pelo jornalismo
chegou a ponto de levá-lo a pro-
clamar, em algum momento,
com sua característica generosi-
dade, que esse era ‘o melhor ofí-
cio do mundo’.”


García Márquez, de fato, cons-
truiu uma bem nutrida trajetó-
ria na imprensa, escrevendo so-
bre temas áridos, como política
e economia, além de críticas ci-
nematográficas e comentários
sobre o trabalho de colegas ilus-
tres. A estreia aconteceu justa-
mente em 21 de maio de 1948,
quando iniciou a coluna Punto y
Aparte, no jornal El Universal, de
Cartagena. Já nessas linhas, o
autor colombiano ensaia o for-
mato de escrita que o tornaria
famoso como romancista.
Foi em 1950, aliás, que ele se
conscientizou de qual cami-
nho deveria seguir para se con-
sagrar como um grande escri-
tor. Não houve visões repenti-
nas nem mudanças súbitas de
estado de espírito – Márquez
apenas voltou à terra de infân-
cia, onde, em meio às fortes
lembranças, descobriu a força
de sua escrita. Colaborou, ain-
da, o contato com seus mes-
tres de ofício no jornal El Heral-
do, para o qual se transferiu, e
também seu grupo intelectual
em Barranquilla.
O Escândalo do Século, portan-
to, começa com a escrita de um
colombiano jovem e boêmio,
prestes a decolar como escri-
tor, e segue até 1984, quando já é
um autor maduro e consagra-
do. “É uma antologia que nos
revela um escritor de escrita
amena em suas origens, brinca-

lhão e desinibido, cujo jornalis-
mo pouco se distingue de sua
ficção”, observa Anderson.
“Em Tema para um Tema, por
exemplo, ele escreve sobre a di-
ficuldade de encontrar um as-
sunto apropriado para come-
çar um artigo. ‘Há quem trans-
forme a falta de tema em tema

para um artigo de jornal’, diz.
Para deleite de seus leitores
mais fiéis, há textos que trazem
pistas sobre sua ficção – é o caso
de A Casa dos Buendía (Anota-
ções para um Romance), que ofe-
rece trechos encantadores co-
mo esse: “Quando Aureliano
Buendía voltou ao povoado, a
guerra civil havia terminado.
Talvez não restasse ao novo co-
ronel nada que lembrasse a ás-
pera peregrinagem. Restavam-
lhe apenas o título militar e
uma vaga inconsciência de seu
desastre. Mas lhe restava tam-
bém a metade da morte do últi-
mo Buendía e uma ração inteira
contra a fome. Restavam-lhe a
nostalgia da vida doméstica e o
desejo de ser dono de uma casa

tranquila, aconchegante, sem
guerra, que tivesse um portal al-
to para receber o sol e uma rede
no quintal, estendida entre
duas forquilhas”.
“Os leitores de sua ficção en-
contrarão em muitos desses tex-
tos uma voz reconhecível, a for-
mação dessa voz narrativa por
meio de seu trabalho jornalísti-
co”, atesta Cristóbal Pera. “Co-
mo afirma Jacques Gilard, ‘o jor-
nalismo de García Márquez foi
principalmente uma escola de
estilo e constituiu o aprendiza-
do de uma retórica original’.”
Na década de 1950, Gabo
acompanhou incidentes locais
para escrever reportagens in-
vestigativas – não meramente
informativas, mas com uma es-
trutura que vai além de apenas
enumerar fatos. Um traço mar-
cante dessas reportagens é o su-
til desvio de interpretação ofe-
recido pelo escritor – se é rigo-
roso com os dados, apresentan-
do milimetricamente todos os
detalhes da história, ou se, por
outro lado, lança mão de metá-
foras, García Márquez apresen-
ta uma leitura variada dos fa-
tos. Cada informação, compro-
vada ou não, conquista uma
parcela de verdade.
É de tirar o fôlego, por exem-
plo, a leitura do longo texto que
dá título ao livro, O Escândalo do
Século: trata-se de um compila-
do de crônicas publicadas entre

17 e 30 de setembro de 1955, no
El Espectador, de Bogotá. Ali,
García Márquez detalha, com
precisão cirúrgica, o caso de
Wilma Montesi, jovem de 21
anos, filha de um carpinteiro
em Roma, que foi encontrada
morta, por afogamento – evi-
dências indicavam assassina-
to e envolviam o filho do chan-
celer italiano.
García Márquez acompa-
nhou todos os fatos, foi em bus-
ca de minúcias, ciente de que
estava diante de uma grande
história. Como Truman Capo-
te fizera na exaustiva pesquisa
para A Sangue Frio (ele jurava
ter feito investigações em mais
de 8 mil páginas), García Már-
quez não despreza nenhuma in-
formação e dialoga com a exati-
dão obsessiva. O título traz o
exagero que tende à literatura
e o subtítulo é uma pérola:
“Morta, Wilma Montesi pas-
seia pelo mundo”.
“Como leitor e editor de Gar-
cía Márquez, escolhi textos em
que se mostre latente essa ten-
são narrativa entre jornalismo e
literatura, em que as costuras
da realidade se estendam por
seu incontrolável impulso nar-
rativo, oferecendo aos leitores
a possibilidade de desfrutar
uma vez mais do ‘contador de
histórias’ que foi García Már-
quez”, observa Cristóbal Pera.
E há outros exemplos desse
estilo, como observa Anderson:
“Caracas Sem Água e Só 12 Horas
para Salvá-lo são clássicos do
emergente estilo jornalístico
de Gabo, no qual a narração, re-
construção minuciosa de dra-
mas da vida real, é veiculada em
tom de suspense, às vezes qua-
se hitchcockiano, e com um de-
senlace que só se revela no fim”.
A editora Record pretende
lançar ainda outra obra de Ga-
briel García Márquez, Maria dos
Prazeres e Outros Contos, sele-
ção de seis histórias curtas ilus-
tradas, prevista para agosto.

QUARENTE


REPÓRTER


GABO


Livro com textos jornalísticos de Gabriel


García Márquez revela devoção à imprensa


ESCÂNDALO
DO SÉCULO
Autor:
Gabriel García
Márquez
Editora:
Record
(352 págs.;
R$ 59,90)

NA


MARCOS HERMES

NA


Música


Alcione lança ‘Tijolo sobre Tijolo’ PÁG. H8


DOCUMENTÁRIO GABO/REPRODUÇÃO

NA WEB


Leia o texto ‘Meu
Hemingway
Pessoal’

estadao.com.br/e/gabo
6

Autor. Textos para
jornais trazem
rigor na apuração

Repórter. Textos do livro foram escritos entre 1950 e 1984

EDGARD GARRIDO/REUTERS – 6/3/2014

%HermesFileInfo:H-1:20200606:H1 SÁBADO, 6 DE JUNHO DE 2020 (^) O ESTADO DE S. PAULO

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