O Estado de São Paulo (2020-06-06)

(Antfer) #1

H8 Especial SÁBADO, 6 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


‘FIZ TUDO QUANTO


PROGRAMA DE TV. BATI


PERNA DE NORTE A SUL


DO PAÍS. VALEU A PENA’


A


editora Todavia acaba de en-
trar em alto estilo no merca-
do de livros eletrônicos,
com uma coleção de ensaios medi-
tados e produzidos durante a pan-
demia por intelectuais do calibre
da economista Laura Carvalho e
dos cientistas políticos Marcos No-
bre e Conrado Hubner. São e-
books com, em média, 100 páginas
(ou telas), todos fulcrados no ina-
creditável governo Bolsonaro e à
venda em plataformas como Ama-
zon e Apple. O primeiro da série,
Ponto-Final, de Nobre, está na rede
desde o último dia 29.
No fim deste mês, a editora Cami-
nhos lança Guerra Cultural e Retóri-
ca do Ódio: Crônicas do Brasil, de
João Cezar Castro Rocha, em for-
mato tradicional. Castro Rocha é
professor de literatura comparada
da Unerj (Universidade do Estado
do Rio de Janeiro) e um obstinado
estudioso do iracundo obscuran-
tismo bolsonarista desde quando
todo mundo só tinha olhos para a
Lava Jato e a agenda econômica do
Posto Ipiranga.
Os dois livros, inteligentes, bem
argumentados e sem ressaibo aca-
dêmico, nos ajudam a compreen-

der com consistência e sutileza o pesa-
delo que passamos a viver depois da
eleição do mais ignorante, grosseiro e
nefasto presidente da história da Re-
pública. São duas análises complemen-
tares, sem ordem preferencial de leitu-
ra, embora por enquanto apenas Pon-
to-Final, por sorte o de maior amplitu-
de, esteja disponível.
Nobre trata da guerra de Bolsonaro
contra a democracia em suas várias
instâncias, o que inclui, evidentemen-
te, sua guerra contra a cultura. Ainda
durante as eleições de 2018, Nobre ro-
tulou o futuro presidente de “o candi-
dato do colapso”, labéu paulatinamen-
te justificado nos primeiros 14 meses
de seu mandato. A pandemia pode
apressar a derrocada.
O capitão não governa, só sabe hosti-
lizar, ameaçar, agredir, cortar verbas,
destruir. “Ele transformou a devasta-
ção em estilo de governo”, diz Nobre.
Em seu governo, só o ódio não é fake.
Cercado de ministros civis e militares
de inauditas incompetência e sabuji-
ce, ele não preside, ele comanda uma
guerra. Civil. Prometida reiteradas ve-
zes. E é por isso que se empenha em
armar a população, como se dela, ar-
mada, precisasse para se proteger dos
70% que não o apoiam. Mas as milícias

precisam renovar seu arsenal, certo?
Por acreditar que “o xingamento
despolitiza”, não ajuda em nada a en-
tender o que estamos vivendo e nos
desobriga de pensar, Nobre é contra
tratar Bolsonaro como burro e de-
mente. Desobrigar de pensar é, a seu
ver, um dos grandes objetivos do pro-
jeto autoritário do capitão. Para ele,
a disputa política segue uma lógica
belicista e a cultura de morte que a
acompanha.
“É uma política de morte que consi-
dera conversa fiada a ideia de que a
disputa política se faz sobre um terre-
no comum compartilhado e comparti-
lhável”, acrescenta Nobre. Por inviabi-
lizar a convivência democrática, só a
necropolítica serve ao objetivo princi-
pal do presidente, que sempre foi des-

truir a democracia e, consequente-
mente, impor uma ditadura.
Ponto-Final, que não deveria ter es-
se hífen, é uma das expressões predi-
letas de Bolsonaro, principalmente
ao lidar com a imprensa, expediente
típico de quem exige ter a última pala-
vra e impor o silêncio numa discus-
são. Coincidência ou não, ganhou es-
se nome a lei que em 1986 paralisou
os processos contra agentes da dita-

dura militar argentina, mas acabou
declarada inconstitucional em 2005,
levando à prisão diversos de seus ver-
dugos. Nobre alerta: “É uma expres-
são traiçoeira, volta-se sempre con-
tra quem faz uso dela”.
Como é sabido e lamentado, não im-
pusemos sequer um ponto e vírgula à
ditadura de 64, o que por certo viabili-
zou a ascensão, para não falar da mera
existência do bolsonarismo e seu cul-
to ao torturador Ustra e dos zumbis da
linha dura frotista que presentemente
vagam pelo Planalto.
Em suas crônicas do Brasil intoxica-
do pela retórica do ódio, o prof. Castro
Rocha passa pela blitzkrieg orientada
em escala mundial por Steve Bannon,
o Dr. Mabuse das fake news, para logo
chegar à nossa jabuticaba digital, com
seus influenciadores de aluguel e seu
vasto exército de robôs, ora investiga-
dos pela PF e sitiados por uma CPMI.
No DNA do “gabinete do ódio” mis-
turam-se a velha Doutrina de Seguran-
ça Nacional e suas paranoias sobre
“inimigo interno”, o discurso revan-
chista e revisionista sobre o golpe de
64 fermentado no projeto Orvil (o
anagramático Livro Secreto do Exército
com que o general Leônidas Pires
Gonçalves tentou em vão abafar e de-
sautorizar os documentos e relatos
irrefutáveis sobre as arbitrariedades,
torturas e desaparecimentos de cor-
pos na ditadura, denunciados no livro
Brasil: Nunca Mais) e as alucinações

pornofascistas daquele astrólogo
da Virginia, o Svengali ideológico
de várias Trilbis que (de)-
compõem o governo Bolsonaro.
O professor Castro Rocha recons-
titui, nas necessárias minúcias, a
evolução dessa lavagem cerebral
marcada pelo ressentimento e a
ideia fixa de que comunistas plane-
jam dominar e destruir o Brasil infil-
trados nas universidades, na mídia,
nas artes – em toda cultura, enfim.
Essa ladainha expiatória, cediça e
em descrédito desde a Guerra Fria,
já lastreou um bocado de ditaduras
de extrema direita, inclusive aqui, e
continua sendo o cantochão dos
bolsonaristas, com eco na cúpula
do governo, que enquanto alardeia
não pretender um golpe (ou auto-
golpe), esmera-se em instrumenta-
lizar todas as instituições do Esta-
do a seu favor.
A função precípua da guerra cul-
tural bolsonarista poderia ser, mas
não é, a imposição dos valores de
sua grei, que inexistem ou são anula-
dos por falas e atos de seu líder, cujo
único desígnio, vale insistir, é a des-
truição sistemática das instituições.
Para o professor, “chegou a hora de
dizermos com todas as letras que é
um governo de extrema direita, ape-
nas interessado num projeto autori-
tário de poder cuja finalidade última
é eliminar todo aquele que pense de
forma diversa”.

Danilo Casaletti
ESPECIAL PARA O ESTADO


Ao longo de quase 50 anos de
carreira, a maranhense Alcione
nunca parou, mas já estava há
um bom tempo sem lançar um
álbum de músicas inéditas –
nos últimos anos, ficou na estra-
da com o show Eu Sou a Mar-
rom, de caráter retrospectivo,
para comemorar seus 70 anos.
Nada que lhe cause ansiedade.
A cantora sabe que tem seu pú-
blico consolidado – o qual, se-
gundo ela, gosta de ouvir can-
ções românticas.
Não por acaso, são elas que
dão o tom de seu novo trabalho,
Tijolo por Tijolo (em edição físi-
ca e digital pela Biscoito Fino),
título emprestado da canção
que abre o trabalho, de autoria
de Serginho Meriti e Claudemir.
Em entrevista por telefone ao
Estado, Alcione conta que de-
senvolveu um jeito próprio de
selecionar as centenas de can-
ções que recebe dos composito-
res, logo que anuncia que está
preparando um novo projeto.
“Imagino a plateia cantando co-
migo – esse é meu termôme-
tro”, revela.
Usando esse critério, ela sele-
cionou músicas de colaborado-
res antigos, como Altay Veloso,
Paulo César Feital, Roque Fer-
reira e Telma Tavares, e gravou
Jorge Vercillo pela primeira vez.
Com saudade do palco, ela se-
gue atenta ao que acontece no
País e no mundo. “Já passou da
hora de o preconceito de cor e
de religião acabar. Todo mundo
merece respeito”, diz, sobre os
recentes protestos nos Estados
Unidos e no Brasil.


lTijolo por Tijolo chega sete
anos depois de seu último traba-
lho com músicas inéditas. Por
que demorou tanto tempo?
Tem que demorar! Não posso
dar minha cara, todo ano, por
aí com um novo trabalho. Lan-
ço algo, deixo o repertório
ecoar, faço bastante shows.
Aliás, como eu amo cantar ao
vivo, estar
com o públi-
co. Ando com
muita sauda-
de de um pal-
co. No come-
ço da carreira,
era obrigató-
rio lançar um
disco por ano. Mas, agora, não
preciso disso.


lNa época do lançamento
do single com a canção que
dá nome ao disco, você disse
que ela representava muito
sua carreira. Teve de
batalhar muito?
Sim, tudo foi feito com bata-
lha. Outro dia, achei uma foto
em que eu estava no programa
do Bolinha (o apresentador Ed-
son Cury, morto em 1998). Fiz


tudo quanto foi programa de
TV, ia a todas as emissoras de
rádio. Bati perna de norte a
sul do País. Valeu a pena.

lComo você escolhe o
repertório?
Os compositores me mandam


  • hoje vem via WhatsApp – e
    eu ouço exatamente tudo. O
    que me guia na escolha é o
    meu instinto,
    algo que de-
    senvolvi ao
    longo da car-
    reira. Sei o
    que vai pegar
    o público. Ou-
    ço e imagino
    a plateia can-
    tando comigo – esse é meu ter-
    mômetro.


lO álbum é constituído
essencialmente por músicas
românticas. É o que você tem
preferido cantar?
Sim, e é o que meu público
gosta de ouvir.

lNo disco há uma canção em
homenagem ao Pelé, chamada
O Homem de Três Corações.
Vocês são amigos?

Pelé é um ídolo para mim. Fi-
quei muito feliz de fazer essa
homenagem para ele. Quando
o Altay Veloso (o autor, ao lado
de Paulo César Feital) me man-
dou a música, logo gravei uma
versão voz e violão e enviei pa-
ra o Pelé. Ele adorou, me man-
dou um vídeo para agradecer.

lFoi uma encomenda sua?
Não, Altay mandou para mim.
Em toda a minha carreira, só
duas músicas foram feitas por
encomenda (segundo ela, Obri-
gada e Estrela Luminosa). O res-
to veio até mim. Veja, Não Dei-
xe o Samba Morrer caiu no meu
colo, foi um sucesso e virou
uma marca minha. Nada foi en-
comendado.

lEm abril, o rapper americano
Snoop Dogg publicou um vídeo
ouvindo uma música sua, Você
me Vira a Cabeça. O que achou
quando viu?
Comigo acontecem coisas do
arco da velha (risos). Vê se po-
de! Quando eu imaginei que
ele ouvia minhas músicas,
que tinha algo com o meu tra-
balho? Admiro-o muito. Foi
engraçado vê-lo curtindo

aquele charutão com a minha
música ao fundo.

lVocê gravou uma canção cha-
mada Em Barco que Navega Ma-
landro, Não Navega Mané (de
Serginho Meriti e Claudemir),
que brinca com a ideia de quem é
mané, de quem é malandro. Tem
muito “mané” no Brasil?
Ah, tem! Esse presidente da
Fundação Palmares (Sérgio Ca-
margo, que, durante uma reu-
nião, classificou o movimento ne-
gro como “escória maldita”, con-
forme revelou o Estado), por
exemplo, é um mané. Ele nem
merece que eu fale nele. Não pe-
ço justiça para ele, peço clemên-
cia. Se tem um Deus lá no céu,
(ele) não há de ficar impune.

lVocê é espiritualizada. Como
analisa o que está acontecendo
no mundo atualmente?
Eu respeito e obedeço ao sagra-
do. Acredito em Deus e sou da
umbanda, filha de Xangô e Ian-
sã. É bom acreditar em algo su-
perior para não andar nas tre-
vas. Tudo o que está aconte-
cendo, essa pandemia, veio pa-
ra nos ensinar algo. Alguma
coisa vamos aprender.

lOs seguidores da umbanda
dizem que este ano é de Xangô.
O que isso significa?
É um ano em que a pessoa tem
que cuidar de si, da família e
dos amigos. Veja o que aconte-
ceu nos Estados Unidos, essas
marchas (uma reação à morte
do ex-segurança George Floyd).
Os policiais ajoelhando e se
confraternizando com os mani-
festantes. Isso é Xangô! E as in-
justiças que acontecem lá tam-
bém ocorrem aqui no Brasil. Já
passou da hora de o preconcei-
to de cor e de religião acabar.
Todo mundo merece respeito.

lO Miguel Falabella estava
escrevendo um musical chama-
do Marrom para comemorar
seus 50 anos de carreira.
Como anda o projeto?
Está em construção. Espero
que essa pandemia não atrase
tudo (Alcione diz não poder re-
velar quando será a estreia). Fa-
labella é um craque e vai fa-
zer um lindo trabalho ao lado
do Jô Santana (produtor do es-
petáculo). Não participarei,
apenas vou assistir. Será um
pouco estranho ver minha vi-
da e carreira no palco, mas

acho esse projeto magnífico.

lExiste uma fita demo que vo-
cê fez em 1972 para a gravado-
ra Eldorado, antes de sua carrei-
ra se consolidar. Nela, você
canta músicas como Yesterday,
Bebete Vãobora e Travessia. O
produtor Thiago Marques Luiz
tem um projeto de lançar essa
gravação. O que você acha?
Eu lembro de ter gravado, fi-
quei honrada com o convite
da Eldorado. Na época, eu era
cantora da noite, mostrei tu-
do o que sabia fazer. Mas não
acho que esse material tem
que ser lançado agora. Essa
gravação não representa o
que eu sou hoje, a cantora
que me tornei.

Sérgio Augusto


ESCREVE AOS SÁBADOS

Entrevista*


“O PÚBLICO


É O MEU


TERMÔMETRO”


‘Tijolo por Tijolo’


traz o embalo das


canções românticas


l]


Só o ódio não é fake


TIJOLO POR TIJOLO

Livro reconstitui a evolução da
ideia fixa de que comunistas
planejam dominar o Brasil

Alcione, cantora

MARCOS HERMES
Marrom. Musical sobre sua
vida não tem data de estreia

Biscoito Fino
R$ 41,90
Free download pdf