O Estado de São Paulo (2020-06-07)

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B8 Economia DOMINGO, 7 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


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Berthier Ribeiro-Neto, diretor de engenharia do Google para a América Latina


Berthier Ribeiro-Neto chegou
na internet brasileira quando
tudo ainda era mato. Diretor
de engenharia do Google para
a América Latina, o mineiro
foi o primeiro funcionário da
gigante no País. Do início dos
anos 2000 para cá, ele viu a
evolução da ferramenta de bus-
cas, viu nascimento e morte
do Orkut e observou como nos
relacionamos com tecnologia.
Professor de computação na
UFMG, Berthier também é um
ativo observador da relação en-
tre humanos e tecnologia. Pa-


ra ele, caso uma pandemia co-
mo a do coronavírus tivesse
acontecido por volta de 2005,
a trajetória do Orkut e das re-
des sociais poderia ter sido ou-
tra. Mais que isso: ele acredita
que superaríamos as deficiên-
cias tecnológicas da época pa-
ra criar conexões. “Existem ne-
cessidades humanas mais fun-
damentais que independem da
tecnologia”, diz.

lAlgumas das gigantes de tecno-
logia do mundo atual não tinham
esse status no início dos anos


  1. Uma pandemia naquela
    época poderia ter alterado a his-
    tória de nomes como Google,
    Amazon, Facebook e Apple?
    O produto é fundamental para
    uma empresa, mas a semente
    não vai crescer se você não ti-
    ver o jardineiro. Toda execu-
    ção tem um componente de vi-
    são. A capacidade de projeção
    do futuro e a convicção para
    executar algo numa direção,
    sem hesitação, é o que define o
    resultado. Numa crise, a balan-
    ça fica mais favorável para as
    empresas que têm visionários.


Acho que essas empresas te-
riam chegado na frente de qual-
quer maneira, pois elas tinham
essas pessoas.

lQue tendências tecnológicas
poderiam ter surgido numa pan-
demia naquela época?
Uma das coisas que acontece-
ram tardiamente na internet
foram os aplicativos de men-
sagem, que surgiram de-
pois do smartphone.
Mas acredito que isso
era possível lá para


  1. E seria feito por
    voz. Afinal, os contatos
    já estavam no apa-
    relho. Como se-
    ria sem um
    app? O compli-
    cador seria en-
    trar em acordo
    com os grandes
    fabricantes de


celulares da época, como a
Nokia. Mas imagina todos os
celulares da Nokia na época te-
rem um serviço do tipo?

lO sr. acompanhou a história do
Orkut. Ele foi um sucesso no Bra-
sil, mas não cresceu globalmen-
te. Com uma pandemia, o rumo
poderia ter sido outro?
Não sei. Mas se houvesse si-
nais de que o Orkut pode-
ria virar uma plataforma
global, o Google teria se
mexido. O Orkut nasce
em 2004, mas começa a
ter muitos usuários
em 2005. O Goo-
gle tinha aberto
capital no ano an-
terior, o foco da
empresa ainda
era o motor de
buscas. A recei-
ta estava ali.

lQue tipo de conteúdo digital
estaríamos consumindo?
Acredito que as lives seriam su-
cesso também naquela época.
A incerteza de uma crise des-
sas gera uma ansiedade monu-
mental e isso causa problemas
de saúde mental. Esses even-
tos e shows são importantes.
Elas dão uma oportunidade pa-
ra se conectar.

lMas as pessoas comuns esta-
riam fazendo lives? Os smartpho-
nes não existiam, as webcams
eram horríveis...
Fariam. A gente tem a necessi-
dade de compartilhar. Somos
uma espécie grupal. Se fica-
mos isolados, nos desestabili-
zamos emocionalmente. Num
momento de crise, de grande
dor, suplantaríamos as defi-
ciências tecnológicas para pro-
duzir conexões. / B.R.

Bruno Romani


O movimento de isolamento
social causado pelo novo co-
ronavírus confinou muita
gente em casa, mas diversas
restrições foram aliviadas pe-
la tecnologia. A comunicação
instantânea conecta amigos
e colegas de trabalho, enquan-
to aplicativos de entrega e si-
tes de comércio eletrônico
permitem que o consumo
prossiga. Serviços de strea-
ming de vídeo e música garan-
tem alguma distração. Mas e
se a pandemia atual tivesse
chegado no início dos anos
2000, quando os pilares da in-
ternet atual ainda estavam se
formando?
Uma boa dica para entender
como seria esse universo parale-
lo vem justamente de quem pri-
meiro sofreu com o coronaví-
rus: a China. Entre 2002 e 2003,
o país asiático já tinha sido para-
lisado por outra epidemia, a da
Sars. Os chineses ficaram tran-
cados em casa para se proteger
e o movimento acabou impul-
sionando o comércio eletrôni-
co interno – o que deu muscula-
tura para uma pequena empre-
sa local se tornar um gigante glo-
bal: o Alibaba.
Aqui no Brasil, porém, o cená-
rio foi diferente: eram tempos
em que apenas 12,8% das casas
tinham acesso a internet, segun-
do a primeira pesquisa TIC Do-
micílios, realizada em 2005 pe-
lo Núcleo de Informação e Co-
municação (NIC.br). Do univer-
so de casas conectadas, só 40%
tinham uma conexão de banda
larga. O resto? Internet discada.
A maioria dos brasileiros conse-
guia mesmo acessar a rede pela
escola, no trabalho, na casa de
terceiros ou nas lan houses, que
começavam a decolar na época.
“No início dos anos 2000,
quem estava em quarentena era
a internet”, diz Carlos Affonso
Souza, diretor de Instituto de
Tecnologia e Sociedade do Rio
de Janeiro (ITS-Rio). Ele faz re-
ferência ao fato de que, além da
conexão ser rara, ela também
acontecia quase sempre por um
computador de mesa (desk-
top), muitas vezes compartilha-
do pela família toda. “A gente
precisava ir até onde a internet
estava. Hoje, a rede nos acompa-
nha o tempo todo”, diz.
Para Souza, os dias numa qua-
rentena em 2004 ou 2005 passa-
riam a impressão de serem mais
compridos, porque não estaría-
mos na internet sempre. “A per-
cepção de tempo é alongada
quando não estamos ansiosos e
bombardeados por informa-
ção”, afirma.


Orkut e blogs. Para quem esta-
va online, é possível que boa par-
te do tédio fosse preenchida no
Orkut – a rede social do Google
havia sido criada em 2004 e, no
ano seguinte, já estourava em

popularidade no Brasil. “É pos-
sível que até notícias falsas so-
bre a pandemia, que hoje estão
no WhatsApp, aparecessem em
comunidades como “Verdades
sobre a quarentena”, diz Souza.

Mais que isso: o Orkut pode-
ria estar vivo até hoje, caso hou-
vesse um interesse global pela
plataforma em meio à quarente-
na. “Se houvesse sinais disso, o
Google poderia ter se mexido”,
diz Berthier Ribeiro-Neto, dire-
tor de engenharia da empresa
na América Latina. Mas a conta
não era tão simples na época.
No início dos anos 2000, o Goo-
gle ainda lutava para fazer sua
ferramenta de buscas ser algo
rentável. O foco da empresa es-
tava nisso – e não numa rede
social com recadinhos.
O serviço, porém, não seria o
único canal de expressão no iso-
lamento. “Os blogs estavam co-
meçando a perder fôlego, e a
pandemia poderia ter revertido
isso”, diz Mike Pearl, autor do
livro The Day It Finally Happens
(O dia em que finalmente aconte-
ce, em tradução livre), que trata
da possibilidade de aconteci-
mentos bizarros como o fim de
antibióticos efetivos. “Escrever
um texto e distribuir para os
amigos seria mais prático do
que mandar e-mails. Haveria
posts virais e uma geração de
blogueiros famosos sobre a pan-
demia”, diz ele.

Áudio, vídeo e foto. Para Ribei-
ro-Neto, também abusaríamos

das imagens e dos vídeos, a des-
peito da baixa resolução. “So-
mos uma espécie grupal, que se
desestabiliza quando passa mui-
to tempo isolada. Num momen-
to de crise e dor, suplantaría-
mos as deficiências tecnológi-
cas para produzir conexões”,
diz ele. Teria sido a chance para
que câmeras digitais rudimenta-
res – como a Powershot, da Ca-
non – se tornassem mais popula-
res. E, com elas, os sites de fo-
tos, como o Fotolog e o Flogão.
Para muita gente, uma qua-
rentena no início dos anos
2000 talvez fosse basicamente
um período de conexão por
voz. As videochamadas ainda

eram restritas. O Skype, por
exemplo, só foi criado em 2003.
Os primeiros notebooks com
câmera embutida começavam a
chegar às lojas em preços proibi-
tivos e as webcams tinham reso-
lução sofrível. “Em contraparti-
da, nessa época era estranho
não ter uma linha de telefonia
fixa. Meus pais não me manda-
vam SMS ou e-mails para assun-
tos de família. Eles ligavam”,
diz Pearl.

O último adeus. Se por um la-
do, uma quarentena no início
dos anos 2000 poderia ter força-
do um movimento de acesso à
tecnologia, por outro ela pode-
ria ser o canto do cisne da vida
offline para muitos. “As pes-
soas com mais dinheiro esta-
riam parcialmente conectadas,
e as mais pobres, offline. Mas
acredito que os mais ricos aci-
ma de 35 anos estariam offline.
Acho que as pessoas assistiriam
muita TV”, diz Pearl.
“Talvez a quarentena de 2005
fosse a última chance que o
mundo analógico teria para im-
pedir a vitória acachapante do
digital. Talvez, muitos voltas-
sem para os livros”, diz Souza,
do ITS-Rio. “E, quando fôsse-
mos à internet, valorizaríamos
o conteúdo que fomos buscar.”

6

Como seria viver uma quarentena


com a internet dos anos 2000?


lConexão discada

Ferramenta. Essencial hoje para passarmos pelo isolamento social, a rede era bem diferente no começo do século; especialistas


analisam como poderíamos ter usado a tecnologia e quais rumos ela teria tomado se a crise da covid-19 tivesse chegado antes


ALEX SILVA/ESTADÃO-21/5/03

Expressão.
Orkut e
câmeras
digitais
(acima)
teriam
ajudado na
comunicação

YURIKO NAKAO/REUTERS-26/8/08

“No começo dos anos 2000,
quem estava de quarentena
era a internet, presa a
computadores de mesa.”
Carlos Affonso Souza
DIRETOR DO INSTITUTO DE TECNOLOGIA
E SOCIEDADE DO RIO DE JANEIRO

12,8%
era a taxa de acesso à internet
dos domicílios brasileiros em
2005 – 40% com banda larga

REPRODUÇÃO-30/6/14

Acesso. No anos 2000, as lan houses eram aliadas para navegar pela internet com velocidade mais alta; teriam virado desculpa para furar a quarentena?

JF DIORIO/ESTADÃO-6/6/2019

‘Numa crise, a balança fica mais


favorável aos visionários’


ENTREVISTA

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