O Estado de São Paulo (2020-06-07)

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H4 Especial DOMINGO, 7 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Alice Ferraz*


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M


arço foi o mês em que ofi-
cialmente entramos em
quarentena no mundo oci-
dental e quando a pandemia se tor-
nou nosso assunto diário. Nossa vi-
da passou, então, a ser moldada pelo
movimento que “ele”, o vírus, faria.
Mais agressivo, a curva da doença
sobe e nós recuamos e nos esconde-
mos. A curva desce, nos pergunta-
mos: podemos ir à praia? Andar na

rua? Tentamos adaptar nossas rotinas.
As segundas-feiras não têm mais cara
de segunda, nem fins de semana têm o
mesmo gosto de pausa e divertimento.
Os dias ficam parecidos sem o referen-
cial estabelecido por anos de hábitos
cotidianos.
Seguimos buscando esse novo nor-
mal – que de normal só tem a palavra,
porque até ele se transformar em nor-
mal mesmo, a vida vai passando. Busca-

mos construir a nova rotina possível
no mundo da pandemia. Sempre disse
que tinha pavor de rotina, passava
mais da metade do ano viajando e acha-
va que isso era prova do que dizia. Acha-
mos que sabemos.
Me dei conta de que não era verdade,
que minha falta de rotina era cheia de
rotinas que nem percebia e amava. Pas-
sar metade do ano viajando era minha
rotina, passar metade do ano em ho-
téis pelo mundo também era. Encon-
trar as mesmas pessoas em cada local
que visitava e, assim, retomar as con-
versas de onde tínhamos parado, os
cheiros das cidades e dos rios de cada
um desses lugares. Sim, era a minha
rotina e, agora, entendo isso.
Em meio à constante sensação de

que algo está fora do lugar, pensa-
mos que “nada pior pudesse aconte-
cer”, mas podia e, aliás, já vinha
acontecendo. Durante os últimos
dias, isso ficou ainda mais claro. Em
um momento em que me sinto mais
conectada com o mundo, o racismo
estrutural se fez ainda mais visível
para mim e para boa parcela da popu-
lação mundial.
O mundo virtual, que nos conec-
tou por intermédio de milhões de
aparelhos celulares, trouxe essa se-
mana um feed com uma única notí-
cia: um pedido de reflexão. Vejo ne-
le uma oportunidade de mudança
nas minhas ações, nas suas ações.
Hora de fazer algo que vá além das
palavras.

Alice Ferraz


Somos um País de 210 milhões
de habitantes. A maior parte
(54%) é formada por negros. Se
levarmos esses números para a
moda, veremos que são poucos
os estilistas que não se classifi-
cam como brancos. Essa porcen-
tagem diminui quando analisa-
mos o número de estilistas ne-
gros a desfilar em uma semana
de moda, a ter sua própria mar-
ca ou a trabalhar em empresas
consagradas do segmento em
cargos de criação. Isso nos faz
questionar a real oportunidade
dada a esses profissionais na mo-
da e os motivos que barram as
eventuais trajetórias de suces-
so. Para entender melhor sobre
essa realidade, conversamos
com dois estilistas negros brasi-
leiros de diferentes gerações.
Isaac Silva, 30 anos, nasceu e
foi criado no interior da Bahia,
no município de Barreiras. Inte-
grante do calendário oficial da
moda brasileira, a São Paulo
Fashion Week, tem sua loja pró-
pria em São Paulo e comerciali-
za suas criações no mercado on-
line. Isaac tem consciência que
ocupa um lugar privilegiado no
mundo da moda. Sua vocação
apareceu cedo, quando ele nem
tinha 10 anos, ao ver a costurei-
ra amiga da mãe realizar a mági-
ca de criar uma roupa por meio
de alguns tecidos. “Pensava
que, se estudasse e me esforças-
se, teria um trabalho na moda,
mas não foi assim. Quando en-
xerguei que o mercado era racis-
ta e não iria me absorver por ser
negro, fui estudar e buscar refe-
rências para ver como era possí-
vel mudar aquilo.”
O jovem estilista não desis-
tiu. Estudou e encontrou no-
mes como o de Ann Lowe
(1898-1981), uma das primeiras
estilistas negras a entrar para a
história da alta-costura ameri-
cana. Ela criou o vestido de noi-
va da então primeira-dama ame-
ricana Jacqueline Kennedy pa-
ra o seu casamento com John F.
Kennedy em 12 de setembro de



  1. “Na época, as revistas dis-
    seram que Ann era costureira. A
    falta de reconhecimento era
    por ela ser negra, mesmo sendo
    ela uma das grandes estilistas
    de uma geração”, diz Isaac.
    O estilista brasileiro, que tem
    entre suas clientes as atrizes Ca-
    mila Pitanga e Thais Araújo, rea-
    lizou o figurino do mais recente
    trabalho lançado pela cantora


Elza Soares. As peças desenha-
das por ele representam uma
moda jovem e ativista, que desa-
fia o preconceito racial com
uma coleção repleta de referên-
cias afro-brasileiras e indígenas.
De uma geração talvez com
ainda menos representativida-
de e oportunidade no mercado,
Luiz Claudio Silva, 46 anos, no-
me à frente da ótima Apartamen-
to 03, nasceu em Minas Gerais,
onde trabalhou por anos com
serviços gerais, incluindo limpe-
za de banheiro em uma empresa
que projetava cozinhas em Belo
Horizonte. Durante o almoço,
ele cobria o atendimento tele-
fônico e desenhava, por vonta-
de e talento. Foi ali que uma cole-
ga, branca, viu os desenhos que
fazia e o convidou para ajudá-la
nos projetos das tais cozinhas.
Vilma abriu a primeira porta e
Luiz entrou. “Sabia que tinha
menos chances por ser negro,
mas aquela oportunidade fez
nascer uma esperança de que po-
deria trabalhar com moda, meu
sonho de criança.”

Filho de costureira, Luiz fez
supletivo e faculdade, ganhou o
prêmio de moda Smirnoff, em
2000, e hoje é um dos grandes
nomes na semana de moda de
São Paulo. “Quando recebi meu
primeiro prêmio, um amigo me
disse: ‘Parabéns, mas você sabe
que acaba aí, né? Não existe ne-
gro na moda’.”
Mas Luiz continuou firme em
seu caminho. “Moda é sobre
criação, design e formas, e não
sobre a cor de quem cria”, diz.
Na estética da Apartamento 03,
marca que assina como diretor
criativo, Luiz traz um olhar mas-
culino para criar a roupa femini-
na. Não à toa, sua alfaiataria,
com modelagens perfeitas e ele-
gantes, é destaque nas cole-
ções. Hoje, Maria Bethânia e Fa-
fá de Belém são amigas e clien-
tes. As criações dele vestem
também as cantoras Iza e Lud-
mila, enquanto Luiz segue dese-
nhando, criando e acreditando
que teremos mais oportunida-
des para as próximas gerações
de negros brasileiros.

Luiz Claudio Silva. Nome à frente da Apartamento 03, produz
alfaiataria impecável com modelagens e shapes bem definidos

GUSTAVO MARX

RETRATOS DA MODA


BRUNO SANTIAGO

Isaac Silva. Estilista baiano, dono da grife homônima,
cria roupas tanto para o dia a dia quanto moda festa


RACISMO


NA MODA?


Os estilistas Isaac Silva e Luiz Claudio Silva contam sua


trajetória em um mercado com pouca representatividade


Look. Coleção
Inverno 2019 da
grife Apartamento
03, assinada por
Luiz Claudio

LUCIANA PREZIA

Ângela Brito. Natural de Cabo Verde, produz uma moda ligada à
memória e à identidade. Sua grife homônima foi criada em 2014

Um pedido


de reflexão


GUSTAVO MARX

RACISMO


NA MODA?


Coleção. Acredite
no Seu Axé, da grife
comandada pelo
estilista Isaac Silva

JULIANA AZEVEDO
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