O Estado de São Paulo (2020-06-07)

(Antfer) #1

Aliás,


Bruna Meneguetti ]


Há uma comuna no Norte da Itá-
lia chamada Curon Venosta, na
província de Bolzano, uma re-
gião montanhosa quase na divi-
sa com a Áustria que se tornou
local turístico. Sua maior atra-
ção é um campanário semissub-
merso, a única edificação que so-
brou após uma represa construí-
da na região engolir todo um vila-
rejo. A paisagem bonita e as parti-
cularidades do local podem fa-
zer com que esse detalhe passe
apenas como uma curiosidade
para a maioria das pessoas, que
tendem a assimilar a história
com o olhar frio de quem está no
futuro. Porém, não é isso que
Marco Balzano propõe no ro-
mance histórico Daqui Não Saio.
“Se a história daquela terra e
da represa não me tivesse pareci-
do desde logo capaz de abrigar
uma história mais íntima e pes-
soal (...), se ela não me parecesse
de imediato ter um valor mais
geral para falar de descaso, fron-
teiras, violência do poder, impor-
tância e impotência da palavra,
eu não teria encontrado interes-
se suficiente para estudar aque-
les acontecimentos e escrever
um romance”, explica o escritor
no posfácio do livro. Assim, a par-
tir de visitas e pesquisas na re-
gião, Marco Balzano criou a per-
sonagem Trina, que, no roman-
ce, narra a própria história para
Márica, sua filha desaparecida.
É por meio da narrativa de Tri-
na que vamos entendendo os
pormenores que coligiram na re-
presa e como esses detalhes fize-
ram com que sua construção fos-
se inevitável. O relato começa
em 1923, quando Mussolini obri-
ga a população da cidade a usar
somente o idioma italiano e en-


via pessoas do sul da Itália para
ocupar cargos na região, toman-
do empregos dos cidadãos de Cu-
ron. Apesar de o local fazer parte
da Itália, a maior parte de seus
habitantes falava – e ainda fala –
alemão, porque a província de
Bolzano era da Áustria até a 1ª
Guerra Mundial, quando o terri-
tório foi anexado à Itália.
Dessa forma, as mudanças de
idioma fizeram com que a cida-
de fosse uma das primeiras a sen-
tir o peso do fascismo. Segundo
Trina, “Mussolini mandou reno-
mear estradas, rios, monta-
nhas”, além
de ‘italiani-
zar’ os no-
mes de to-
dos da re-
gião. Nesse
cenário, a
narradora,
que estuda-
va para ser
professora,
começa a
sua relação
com as pala-
vras. Esse
tema per-
correrá to-
do o livro de modo a mostrar que
a leitura e escrita podem ser dádi-
vas e dar poder às pessoas.
Após aprender italiano, Trina
começa sua resistência contra o
fascismo ao aceitar o convite de
um padre para dar aulas de ale-
mão às crianças. Também é esse
o momento em que a religião co-
meça a aparecer com força na
narrativa. “Disse que, se quisés-
semos de fato lecionar, que fôs-
semos às catacumbas. Ir às cata-
cumbas significava dar aulas
clandestinamente. Era ilegal e
significava multas, espancamen-
tos, óleo de rícino”, explica a per-
sonagem à filha em seu discurso
em segunda pessoa.
O primeiro ponto alto de ten-
são do livro é justamente relacio-

nado às aulas. A amiga de Trina,
que ela convence a se tornar pro-
fessora, é exilada no dia do casa-
mento da narradora. “Teve trata-
mento pior que o de uma p (...),
foi obrigada a desfilar pelas ruas
com algemas nos pulsos”, conta
ela, que quase não conseguiu su-
bir ao altar devido ao abalo emo-
cional que sentia. A partir de en-
tão, o livro se intensifica e os pro-
blemas se agravam, mudando a
vida pacata no campo.
Até esse momento, a represa
era apenas uma ameaça antiga
ao povo. Ela havia sido anuncia-
da pela primeira
vez em 1911, po-
rém o marido de
Trina, Erich, sabe
que voltará a ser
lembrada a partir
do momento em
que a guerra es-
tourar, em 1939.
Isso porque Mus-
solini mandou
construir um po-
lo industrial em
Bolzano, de for-
ma que a provín-
cia e sua deman-
da de energia cres-
cem. Para Erich, os fascistas sa-
biam que logo os homens de Cu-
ron iriam combater na guerra,
achavam que eles não passavam
de camponeses e que era “a hora
certa para aproveitar”.
Em 1940, as palavras em italia-
no que Trina é capaz de ler tra-
zem outra má notícia: é expedi-
da a licença para a construção da
represa. Esse, assim como ou-
tros avisos, são sempre coloca-
dos em italiano, impedindo que
a maioria das pessoas os pudes-
se ler. “As línguas tinham se tor-
nado marcas raciais. Os ditado-
res as tinham transformado em
armas e declarações de guerra”,
reflete a personagem.
Enquanto a ascensão de Hi-
tler acontece, a cidade, assim co-

mo a casa de Trina, vai se esva-
ziando. A primeira a ir embora é
Márica, na época com apenas
dez anos. “Você não merece co-
nhecer aqueles dias de escuri-
dão. Não merece saber quanto
gritamos seu nome”, narra Tri-
na após toda a família se mobili-
zar e desistir das buscas pela ca-
çula. A decisão da filha vira um
sofrimento que, claramente, a
mãe jamais será capaz de supe-
rar. Já durante a guerra, Erich é
obrigado a lutar no front e Trina
também sente o distanciamen-
to do filho, que tornou-se nazis-
ta. Em dado momento, recebe
mulheres que batiam em sua por-
ta com as cartas dos maridos es-
critas em italiano.
“Não havia muito para ler, por-
que a censura cortava quase tu-
do. (...). Então, para me livrar de-
las, inventava (...) Encerrava
com frases de amor idiotas, as-
sim as esposas voltavam para ca-
sa animadas. Uma delas, chama-
da Cláudia, abria uns olhos deste
tamanho e exclamava: ‘o front o
tornou romântico’”.
Além de trazer um alívio na
narrativa e mostrar novamente
a importância de entender as
palavras, o trecho pode trazer
outro detalhe: a oralidade usa-
da indica que talvez a obra este-
ja sendo narrada em voz alta e
que a filha de Trina tenha retor-
nado após a velhice da mãe para
ouvir a história da família. Essa
hipótese é reforçada ao longo
do livro, primeiro pelo fato de o
relato ser dirigido a Márcia e se-
gundo porque Trina sempre cai
na tentação de queimar suas re-
cordações e escritos de tempos
em tempos. No entanto, esses
detalhes serão sempre hipóte-
ses impossíveis de ser confirma-
das pelo leitor.
Mesmo quando todo o perigo
da guerra parece ter passado e o
filho de Trina deixa de cultuar
Hitler, a narradora ainda se sen-

te vivendo sobre as rédeas do
fascismo, porque, em 1946, as
escavações da represa são reto-
madas, ignorando a população
de Curon, que tanto sofreu pa-
ra garantir o seu pedaço de
chão durante a guerra. Naquele
período, Trina e outras tantas
pessoas tiveram que abando-
nar suas casas, torcendo para
que o próprio lar ainda estives-
se lá quando retornassem. De-
pois de acompanharmos todas
as dificuldades que Trina e sua
família enfrentam é que nos tor-
namos capazes de entender ver-
dadeiramente porque a cons-
trução da represa no local é de
uma violência brutal.
Apesar de ressaltar a ajuda de
padres na defesa de seu povo,
como nos vários momentos em
que são fundamentais durante a
resistência contra o fascismo, o
nazismo e a represa, Trina não
deixa de tecer críticas à fé, que
provocava imobilidade nas pes-
soas da cidade. De acordo com a
personagem, o trabalho do res-
ponsável pelas obras “nunca so-
fria com crises, porque crescia
onde houvesse confiança inerte
no destino, fé absolutória em
Deus, descaso daqueles que só
têm sede de tranquilidade”. No
entanto, é possível entender
quem Trina critica: após enca-
rar uma guerra, o povo da cida-
de quer apenas acreditar que te-
rá um longo momento de paz.
Por isso, as pessoas demoram a
entender que a represa as deixa-
rá sem casa se não agirem logo.
Esse entendimento da natureza

humana que o livro propõe po-
de ser uma resposta para tantos
momentos históricos em que a
população preferiu simples-
mente fechar os olhos a admitir
algo que estava óbvio.
Na narrativa, esse é o momen-
to em que o poder das palavras
volta com carga total. Trina aju-
da a escrever para diversas auto-
ridades, até mesmo ao papa,
com o intuito de impedir a repre-
sa. “Naqueles dias parecia que
as palavras podiam mover mon-
tanhas. Que o erro mais grossei-
ro tinha sido não as interrogar,
não as procurar, não as fazer fa-
lar antes”, narra ela. No entan-
to, os esforços se mostram inú-
teis, mostrando que as palavras
também têm um limite até onde
podem chegar. As pessoas ape-
nas parecem perceber que preci-
sam agir em peso quando a cons-
trutora fecha as comportas da
represa sem avisar ninguém e,
no dia seguinte, a população
acorda com meio metro de água
nas casas. No entanto, é tarde.
Resta apenas exigir casas novas
para aqueles que serão desabri-
gados e sustento ao governo du-
rante o tempo em que não pude-
rem ter outra propriedade.
No fim, como muitas vezes
acontece, as autoridades ven-
cem, mas a represa produz pou-
co. “É muito mais barato com-
prar energia das centrais nu-
cleares francesas”, explica Tri-
na, contando que até a raiva
amaina, rendendo-se “a algu-
ma coisa maior cujo nome não
conheço”. Ironicamente, a úni-
ca edificação que sobra da cida-
de é o campanário citado no co-
meço do texto, um resquício da
resistência da fé, pois o pedido
ao papa apenas resultou na or-
dem de poupar a torre.

]
É AUTORA DE ‘O ÚLTIMO TIRO DA
GUANABARA’ (ED. REFORMATÓRIO)’

CONTRA O AUTORITARISMO


DENÚNCIA

Literatura*


Romance histórico de Marco Balzano retrata o povoado de Curon Venosta, que


resistiu à opressão de Mussolini e foi submerso pela construção de uma represa


GLAVO/PIXABAY/BERTRAND BRASIL

Torre. O campanário de Curon Venosta, em Bolzano, é uma atração turística hoje, mas esconde uma longa história de resistência popular ao avanço do fascismo italiano no século 20


DAQUI
NÃO SAIO
Autor: Marco
Balzano
Trad.: Ivone
Benedetti
Ed.: Bertrand
210 páginas
R$ 44,90

Autor. Marco Balzano usa a ficção para ilustrar drama real

BERTRAND BRASIL

UM DIA, A POPULAÇÃO DO
VILAREJO ACORDOU COM
MEIO METRO DE ÁGUA
EM SUAS CASAS

MUSSOLINI OBRIGOU A
CIDADE, QUE FALAVA
ALEMÃO, A USAR
SOMENTE O ITALIANO

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H10 Especial DOMINGO, 7 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

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