O Estado de São Paulo (2020-06-07)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 7 DE JUNHO DE 2020 Especial H11


Faustino da Rocha Rodrigues ]


O julgamento das “bruxas” de
Salem é conhecido e já foi bas-
tante explorado pela historio-
grafia, literatura e cinema. Abor-
dá-lo como novidade é um desa-
fio. Ao escrever Eu, Tituba, Bru-
xa Negra de Salém – publicado
originalmente em 1986, mas lan-
çado em nova edição recente-
mente pela Rosa dos Ventos, se-
lo da Editora Record –, Maryse
Condé o aceita. E o faz evocan-
do um debate a englobar, sob
novo ângulo, o racismo e ma-
chismo vivido pela personagem
homônima.
O episódio de 1692 tornou-se
popular por meio da peça tea-
tral de Arthur Miller, As Bruxas
de Salém, encenada em 1953 e
transposta para o cinema
(1996) e, mais recentemente,
para a televisão. Nela vemos a
histeria coletiva da perseguição
às “bruxas” de um povoado da
Nova Inglaterra, EUA. No re-
cente estudo publicado por
Stacy Schiff, As Bruxas – Intriga,
Traição e Histeria em Salém, a au-
tora sugere que Miller preocu-
pou-se com uma representação
real do episódio. Ao concen-
trar-se nos fatos, deixou de lado
uma série de documentos, co-
mo cartas e mandatos judiciais,
por exemplo. Realmente, são
fontes escassas e de difícil aces-
so, mas que contribuem para re-
dimensionar a perseguição de
Salém e, principalmente, para
entender as injustificáveis moti-
vações dos perseguidores. Sem
isso, conforme Schiff sugere, o
trabalho de Miller, a despeito
do valor literário, tende a se res-
tringir ao caráter de um relato.


Definitivamente, As Bruxas
de Salém reproduz os aconteci-
mentos reais, as perseguições e
julgamentos, sustentando uma
grande qualidade estética, insi-
nuando a injustiça e loucura de
toda uma comunidade colonial
que via o demônio por todos os
lados. Contudo, pensando em
2020, não atualiza o debate.
A escritora Maryse Condé, na-
tural de Guadalupe, tinha ape-
nas 16 anos quando a peça de
Miller foi encenada pela primei-
ra vez. Ao longo da vida, adqui-
riu notoriedade pela ficção his-
tórica e um pujante ativismo fe-
minista. Ganhou, em 2018, o
The New Academy Prize in Lite-
rature, uma premiação alterna-
tiva ao Nobel. Atualmente, vive
em Nova York, sendo professo-
ra emérita de francês e literatu-
ra românica na Universidade de
Columbia. Por seu ofício de pes-
quisadora, Condé adquiriu uma
familiaridade com o manuseio
de documentos para escrever
os seus romances. Foi nesse
contexto em que compôs a per-
sonagem Tituba, valendo-se de
fontes não utilizadas em traba-
lhos literários anteriores sobre
os eventos de Salém.
Desde o princípio Condé
anuncia que estamos diante de
um romance. De modo ousado,
tal como é reforçado no belo
prefácio de Conceição Evaris-
to, propõe uma releitura do ver-

gonhoso episódio da justiça nor-
te-americana. A autora propõe
um contato maior com a realida-
de dos acontecimentos, dialo-
gando com o fator causal e, dian-
te disso, tece com extrema habi-
lidade uma ficção que colore Ti-
tuba de uma humanidade fren-
te a sua vida.
Em Eu, Tituba... não há um mi-
nucioso relato da perseguição
de Salém, embora o depoimen-
to de Tituba seja apresentado.
No livro, a ficção desponta na
descrição de uma personagem
afetada pelas circunstâncias. É
com a narrativa em primeira
pessoa que Maryse Condé a ro-
mantiza, esmerando-se em rela-
tar sua saída de Barbados, con-
sequência do amor por um ho-
mem, passando pela admissão
do crime de bruxaria, até a sua
sobrevivência derivada do per-
dão no processo. Há, portanto,
um redimensionamento do im-
pacto do episódio na vida dos
envolvidos, sobretudo Tituba.
Magias, feitiços, diálogos
com os mortos, enfim, elemen-
tos característicos dos rituais
religiosos da cultura de matriz
africana, estão sempre presen-
tes. Compõem Tituba e guiam
seu comportamento não so-
mente em Barbados, no Caribe,
mas também quando se coloca
diante da loucura de seus senho-
res, na Nova Inglaterra.
Notamos, então, o choque de
culturas que leva a muitos dos
dilemas da protagonista. A no-
ção de bruxaria, originalmente,
não existe para ela, sendo in-
compreensível. Porém, tem de
admitir ser uma bruxa. Surgem
dúvidas e um imenso sentimen-
to de culpa. Tais dilemas são
conduzidos, na ficção, por meio
de questionamentos ao leitor.
Tituba conversa conosco por
meio de perguntas a espera de

respostas de quem lê. As dúvi-
das não são respondidas no pró-
prio enredo.
A despeito dos dilemas, a nar-
rativa não é pesada. Contraria-
mente, eles anulam as imposi-
ções típicas da linguagem pan-
fletária do debate político com
pausas comedidas, insinuando
grande profundidade – não é
sentenciadora, impositiva e
conclusiva. Progressivamente,
damo-nos conta da calma e leve-
za na escrita, distante da asserti-
vidade de uma visão previamen-
te definida. O leitor é convida-
do à reflexão pela exigência de
sua interpretação dos fatos.
A relação de causa no episó-
dio de Salém é fundamental pa-

ra a condução do romance. O
diálogo permanente com o lei-
tor, também. Por meio dele,
Condé compartilha a responsa-
bilidade, transcendendo o as-
pecto puramente descritivo. As
motivações dos acusadores sus-
pendem quem lê a obra de Con-
dé, exigindo-lhe uma análise
dos fatos a partir de Tituba. Dia-
logamos, assim, com o racismo
e o feminismo e sua incidência
na formação da personagem.
O romance prossegue após o
julgamento e a tentativa de Titu-
ba reconstruir sua vida. No re-
torno a Barbados nos depara-
mos com a marca da injustiça
ao ser constantemente categóri-
ca: “Não fiz nada de errado”. Po-

rém, o sentimento de culpa co-
mum às vítimas pela imposição
dos acusadores a persegue
quando se dá conta da confis-
são ao longo do processo. Ela é a
única das perseguidas a admitir
o “crime de bruxaria”. Entretan-
to, o que importa é: em que cir-
cunstâncias ela o confessa?
Tituba não poderia ser impul-
siva, detentora de uma razão a
conduzir o leitor, de modo a es-
perar sempre, na página seguin-
te, a imposição nas falas quanto
à sua condição. O fato de sem-
pre lhe ser presente a culpa, a
ansiedade, a dor na consciência
materializada na confissão fei-
ta no tribunal, o seu amor por
Indien, entre muitas outras coi-
sas, conforma a personagem.
Condé demonstra como o im-
pacto da colonização na forma-
ção do sujeito é inevitável. Titu-
ba, mesmo quando se anuncia
como uma lenda no retorno a
sua terra, sente-se culpada pela
confissão. Nesse caso, não há
apelo, um resgate quase cego da
cultura negra como algo reden-
tor. Embora seja heroína, ela,
inevitavelmente, estará marca-
da pela culpa.
A proposta de Maryse Condé
é uma releitura dos episódios
de Salém, com a apresentação
de temas atuais, como feminis-
mo e combate ao racismo, de
forma bastante humanizada. A
autora se isenta da criação de
um heroísmo fácil – Tituba po-
deria ter se tornado uma lenda
pura da resistência negra, por
exemplo. A Record é feliz em re-
publicá-la. Reler, neste caso, é
fundamental. Com as lentes de
hoje, necessário.

]
É JORNALISTA, CIENTISTA SOCIAL E
PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DE MINAS GERAIS.......

Aliás,


MÁRTIR

Literatura*


ENTRE AS ‘BRUXAS’ DE


SALÉM, A VÍTIMA NEGRA


‘Eu, Tituba’, de Maryse Condé, é reeditado no momento em


que protestos contra o racismo dominam cenário mundial


Dirce Waltrick do Amarante ]


Chega agora ao Brasil, em tradu-
ção de Lubi Prates, a poesia com-
pleta da norte-americana Maya
Angelou (1928-2014), pseudôni-
mo de Marguerite Ann Johnson,
uma das vozes negras mais im-
portantes do século 20. Angelou
foi poeta, romancista, atriz, ro-
teirista, jornalista, cantora, dan-
çarina e professora. Acima de tu-
do, foi uma grande ativista, que
denunciou em suas obras o que é
ser negro em uma sociedade ex-
tremamente racista como a nor-
te-americana. Atuou ao lado de
duas grandes personalidades na
luta pelos direitos dos negros,
Martin Luther King Jr. e Mal-
colm X. Dedicou o poema Seu
Dia Acabou a Nelson Mandela, lí-
der que deixou herdeiros, os
quais atenderão “generosamen-
te aos gritos/ De Negros e Bran-
cos,/ Asiáticos, Hispânicos,/ Dos
pobres que vivem penosamen-
te/ No chão do nosso planeta”.
Em Eu Sei Por Que o Pássaro
Canta na Gaiola (1969), a primei-
ra de uma série de autobiogra-
fias escritas por Angelou, confes-
sa que “é horrível ser negra e não
ter controle sobre a minha vi-


da”. Seus poemas mantêm esse
tom confessional e de denúncia.
Em Estados Unidos da América,
por exemplo, o leitor conhece
um lado obscuro de um país co-
nhecido por ser a terra onde os
sonhos se realizam: “O ouro de
sua promessa/ nunca foi extraí-
do// O limite de sua justiça/ não
está bem definido// Suas colhei-
tas abundantes/ a fruta e o grão//
Não alimentaram os famintos/
nem aliviaram sua dor profun-
da// Suas promessas orgulhosas/
são folhas ao vento// Sua orienta-
ção segregacionista/ é amiga da
morte de negros”.
A poesia de Angelou ecoa mui-
tas outras vozes negras que, co-
mo a dela, carregariam a “culpa”
das “correntes da escravidão”,
cujo “barulho do ferro caindo ao
longo dos anos”, diz o poema Mi-
nha Culpa, teria tapado os ouvi-
dos dos negros com “cera amar-
ga”, impedindo que eles ouvis-
sem o apelo de seus irmãos ven-
didos e de outros desaparecidos.
Uma culpa que não recai sobre
os ombros dos brancos, mas dos
negros, que se cobram por não
ter gritado mais alto quando de-
veriam tê-lo feito. Em outro poe-
ma, os versos destacam que “En-
quanto houver algo pelo que cho-
rar/ Haverá pelo que morrer/ Es-
sa é a responsabilidade de to-
dos”; contudo, diz a voz por trás
dos versos, “eu acreditarei na
ajuda dos progressistas para
nós/ Quando eu vir um branco
carregar a arma de um negro”.

Uma das características da es-
crita de Angelou é a clareza, pois
a poeta escreve como se desejas-
se chegar ao maior número de
leitores possível. Afinal, ela acre-
dita que esteja falando por aque-
les que não têm voz, por negros e
negras que não têm a oportuni-
dade de se expressar ou, quando
se expressam, não são ouvidos.
Angelou, ao contrário, fala para
ser ouvida. É interessante pen-
sar em Angelou como porta-voz
dos silenciados, uma vez que ela
mesma teria ficado sem voz de-
pois de ter sido, aos oito anos de
idade, violentada pelo compa-
nheiro de sua mãe, o qual depois
foi assassinado, provavelmente

por alguém de sua família. A en-
tão menina imputou à sua voz,
que denunciara o abuso, a culpa
pela morte do criminoso, e, por
isso, emudeceu por aproximada-
mente cinco anos, com medo de
que sua fala tivesse sido a respon-
sável pela tragédia familiar. Nes-
se período de silêncio, dedicou-
se à leitura e à observação da vi-
da à sua volta.
Aos 17 anos teve um filho e pas-
sou a exercer todo tipo de ocupa-
ção para sustentá-lo, entre elas a
prostituição. Em Trabalho de Mu-
lher, Angelou parece descrever
esse período de sua vida, que
não é muito diferente da expe-
riência vivida, ainda hoje, por

muitas mulheres: “Eu tenho
crianças para cuidar/ As roupas
para remendar/ O chão para es-
fregar/ A comida para comprar/
Depois, o frango para fritar/ O
bebê para secar”.
A propósito de sua relação
com os homens, esta não foi
apenas negativa. Angelou teve
muitos companheiros que dia-
logaram com ela e a apoiaram.
Nos seus poemas, todas as suas
experiências com o sexo opos-
to, boas e más, vêm à tona. Em
Desprendidos, Angelou fala que
damos boas-vindas ao Barba
Azul e nosso pescoço a estran-
guladores e que “Nós ama-
mos,/Esfregando nossa nudez

com mãos enluvadas,/Inverten-
do nossas bocas em beijos de
língua,/ Beijos que não tocam e/
não se importam em tocar se/ o
amor é interno”.
Já num outro poema, Para um
Marido, talvez dedicado ao escri-
tor, ensaísta e ativista social Ja-
mes Baldwin, com quem teve
um relacionamento bastante
instigante, lê-se, de uma forma
acolhedora, diferentemente dos
versos citados acima, que “Para
mim, você é a África/ No seu ama-
nhecer mais brilhante./ O verde
do Congo e/ O tom salobro do
cobre,/ Um continente para
construir/ Com a força do Ne-
gro./ Eu me sento em casa e vejo
isso tudo/ Através de você”.
Poesia Completa é um livro ne-
cessário em tempos de retroces-
so. Embora a tradução seja deli-
cada e fluente, faltou ao volume
uma introdução que pudesse am-
parar o leitor que desconhece a
figura ímpar de Maya Angelou.
Também faltaram as datas em
que os poemas foram escritos.

]
É AUTORA, ENTRE OUTROS, DE ‘CEM
ENCONTROS ILUSTRADOS’ (ED.
ILUMINURAS) E ‘MINHA PEQUENA
IRLANDA’ (RAFAEL COPETTI EDITOR)

A POÉTICA ANTIRRACISTA DE MAYA ANGELOU


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