O Estado de São Paulo (2020-06-08)

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O ESTADO DE S. PAULO SEGUNDA-FEIRA, 8 DE JUNHO DE 2020 Especial H7


Carl Zimmer / NYT


Muitas pessoas estão lendo arti-
gos científicos pela primeira
vez nesses últimos dias na espe-
rança de entender a pandemia
do novo coronavírus. Se você é
um deles, saiba que o artigo
científico é um gênero literário
peculiar com o qual pode se le-
var um tempo até se acostumar.
E também se lembre de que não
são tempos típicos para publica-
ções científicas.
É difícil pensar em outro mo-
mento da história em que tan-
tos cientistas voltaram sua aten-
ção para um único assunto com
tanta rapidez. Em meados de ja-
neiro, artigos científicos come-
çaram a aparecer com os primei-
ros detalhes sobre o novo coro-
navírus. Até o fim daquele mês,
a revista Nature ficou maravilha-
da com a publicação de mais de
50 artigos. Esse número aumen-
tou nos últimos meses a uma
taxa exponencial, condizente
com uma pandemia.
No início de junho, o banco
de dados da Biblioteca Nacio-
nal de Medicina do Estados Uni-
dos já conta com mais de 17 mil
artigos publicados sobre o novo
coronavírus. Um site chamado
bioRxiv, que hospeda estudos
que ainda precisam passar pela
revisão de pares, contém mais
de 4 mil artigos.
Até recentemente, poucas
pessoas, além dos cientistas, te-
riam posto os olhos nesses arti-
gos. Meses ou anos após serem
escritos, eles acabariam em edi-
ções impressas escondidas em
uma prateleira de biblioteca.
Mas agora o mundo pode surfar
na maré crescente de pesquisas
sobre o novo coronavírus. A
grande maioria dos artigos so-


bre o assunto pode ser lida gra-
tuitamente online.
Mas o simples fato de os arti-
gos científicos estarem mais fá-
ceis de localizar não significa
que eles sejam fáceis de enten-
der. Lê-los pode ser um desafio
para uma pessoa leiga, mesmo
com algum conhecimento de
ciência. Não é apenas o jargão
que os cientistas usam para con-
densar muitos resultados em
um pequeno espaço. Assim co-
mo sonetos, sagas e contos, os
artigos científicos são um gêne-
ro com regras próprias não es-
critas e que se desenvolveram
ao longo de gerações.
Os primeiros trabalhos cien-
tíficos parecem mais cartas en-
tre amigos ao relatar hobbies e
esquisitices. A primeira edição
de Philosophical Transactions of
the Royal Society, publicada em
30 de maio de 1667, incluía bre-
ves textos com títulos como
“Uma descrição do aprimora-
mento dos óculos ópticos” e

“Uma descrição de um bezerro
monstruoso muito estranho”.
Quando os filósofos natura-
listas enviavam suas cartas para
os periódicos científicos do sé-
culo 17, os editores decidiam se
valia a pena publicar ou não.
Mas, após 200 anos de avanços
científicos, os cientistas vitoria-
nos não podiam mais ser espe-
cialistas em tudo. Os editores
de periódicos passaram a en-
viar artigos a especialistas exter-
nos que entendiam os detalhes
de um ramo específico da pes-
quisa melhor do que a maioria
dos cientistas.
Em meados do século 20, es-
sa prática evoluiu para uma
prática conhecida como revi-
são por pares. Um periódico pu-
blicaria um artigo somente de-
pois que uma comissão de espe-
cialistas externos decidisse que
era aceitável. Às vezes, os reviso-
res rejeitavam o trabalho com-
pletamente; outras vezes, exi-
giam o ajuste de pontos fracos –

que poderia ser feito tanto com
uma revisão do artigo ou com
pesquisas adicionais.
Uma lição que aprendi é que
pode ser trabalhoso capturar a
história por trás de um artigo.
Se eu ligar para os cientistas e
simplesmente pedir que eles
me digam o que fizeram, eles po-
dem me oferecer uma narrativa
fascinante da exploração inte-
lectual. Mas, ao ler os trabalhos,
nós, leitores, temos que montar
a narrativa por nós mesmos.
Parte do problema pode ser
devido ao fato de muitos cien-
tistas não receberem treina-
mento suficiente para escre-
ver. Como resultado, pode ser
difícil descobrir com precisão
qual pergunta um artigo está
abordando, como os resulta-
dos a respondem e por que isso
realmente importa.
As exigências da revisão por
pares – satisfazendo as deman-
das de vários especialistas dife-
rentes – também podem dar ain-

da mais trabalho para com-
preender o que está escrito. Os
periódicos podem piorar a situa-
ção exigindo que os cientistas
cortem seus artigos em blocos,
alguns dos quais passam a fazer
parte de um arquivo suplemen-
tar. Ler um artigo pode ser co-
mo ler um romance e perceber,
apenas no fim, que os capítulos
14, 30 e 41 foram publicados se-
paradamente.
A pandemia de coronavírus
agora apresenta um desafio ex-
tra: há muito mais artigos do
que alguém jamais poderá ler.
Se você usar uma ferramenta co-
mo o Google Acadêmico, pode-
rá se concentrar em alguns dos
trabalhos que já estão sendo ci-
tados por outros cientistas.
Eles podem fornecer os resu-
mos dos últimos meses da histó-
ria científica – o
isolamento cau-
sado pelo novo
coronavírus, por
exemplo, o se-
quenciamento
de seu genoma, a
descoberta de
que ele se espa-
lha rapidamente
de pessoa para pessoa, mesmo
antes que os sintomas surjam.
Artigos como esses serão cita-
dos por gerações de cientistas
que ainda nem nasceram.
No entanto, a maioria dos ar-
tigos não será citada. Quando
você lê um artigo científico, é
importante manter um ceticis-
mo saudável. O fluxo contínuo
de artigos que ainda precisam
ser revisados por pares – conhe-
cidos como pré-prints ou pré-
impressões – inclui muitas pes-
quisas fracas e alegações enga-
nosas. Alguns são retirados do
ar pelos autores. Muitos nunca
vão fazer parte de um periódico
acadêmico. Mas alguns deles es-
tão ganhando manchetes sensa-
cionalistas antes de queimar na

obscuridade.
Mas apenas porque um artigo
passa na revisão por pares não
significa que esteja acima de vi-
gilância minuciosa. Em abril,
quando pesquisadores france-
ses publicaram um estudo suge-
rindo que a hidroxicloroquina
poderia ser eficaz contra a co-
vid-19, outros cientistas aponta-
ram que ele era pequeno e não
foi desenvolvido com rigor. Em
maio, um artigo muito maior
foi publicado no Lancet, suge-
rindo que o medicamento pode-
ria aumentar o risco de morte.
Uma centena de cientistas im-
portantes publicou uma carta
aberta questionando a autenti-
cidade do banco de dados em
que o estudo se baseou.
Ao ler um artigo científico,
tente pensar sobre isso da mes-
ma maneira que
outros cientis-
tas. Faça algu-
mas perguntas
básicas para jul-
gar seu mérito. É
baseado em al-
guns ou milhares
de pacientes? Es-
tá misturando
correlação e causalidade? Os au-
tores realmente apresentam as
evidências necessárias para che-
gar a suas conclusões?
Um atalho que às vezes pode
ajudá-lo a aprender a ler um arti-
go como um cientista é fazer
uso criterioso das mídias so-
ciais. Os principais epidemiolo-
gistas e virologistas têm posta-
do threads interessantes no
Twitter, por exemplo, explican-
do por que eles acham que no-
vos artigos são bons ou ruins.
Mas sempre verifique se você
está seguindo pessoas com pro-
fundo conhecimento, e não ro-
bôs ou agentes de desinforma-
ção que vendem bobagens de
conspiração sem sentido. /
TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

CIENTÍFICO


COMO LER UM


Trata-se de um gênero literário peculiar que exige rigor na


leitura e um ceticismo saudável para não ser enganado


Caderno 2


ESTUDO


Crônicas de SP*


FLUXO DE ARTIGOS
DEVE SER REVISADO

POR COLEGAS
CIENTISTAS

E


u queria te dizer que tenho
alergia a gatos. E que meus
olhos ficam vermelhos e que
quase não consigo respirar quando
estou perto deles. E que, sim, acho
que vou morrer de gato.
Mas, ao invés disso, escrevo que o
seu gato é uma graça, que o nome de-
le é perfeito e que tenho vontade de
apertá-lo.

Eu queria te dizer que tenho alergia a
gatos. E que minha garganta fecha e que
começam a aparecer manchas verme-
lhas e que sinto uma coceira frenética
pelo corpo.
Mas, ao invés disso, pesquiso remé-
dios na internet, receitas caseiras e sim-
patias. Escrevo que entre Tom e Jerry
sou #TeamTom, que Garfield é genial,
que o Gato de Botas é uma metáfora per-

feita e que no sorriso do Gato de Alice
está a resposta para todos os nossos dile-
mas morais.
Eu queria te dizer que tenho alergia a
gatos. E que também penso em você pe-
la manhã, despenteada e tomando café
em uma xícara engraçada.
Penso em você separando suas tintas,
escolhendo cores e enfrentando o bran-
co da tela com coragem e inspiração. De
onde ela vem, a inspiração?
Penso em você conversando com a
família por videochamada, perguntan-
do se estão todos bem e colocando o
cabelo atrás da orelha com a mão. Você
conta as novidades – e ouve tantas ou-
tras. E quantas novidades cabem em
uma pandemia?

Penso em você abrindo as janelas do
apartamento, fazendo as contas de
quantos dias está em isolamento, la-
mentando os projetos que pararam e a
grana que não entrou. Vem um frio na
barriga, mas você não chora, não se aba-
te. Tem muita vida aí dentro. Esse é
apenas um breve interlúdio. O próxi-
mo ato será melhor – você repete men-
talmente.
Eu queria te dizer que tenho alergia a
gatos. E também que se, nessa quarente-
na, a gente estivesse juntos eu estaria
com sintomas muito parecidos com os
da covid-19.
Mas, ao invés disso, penso em seus
olhos de espanto vendo um foguete
sendo lançado e sua indignação com o

joelho do policial no pescoço de
George Floyd. Penso em sua vonta-
de de ir para rua (e para a lua), seu
impulso de lutar. E tenho inveja. E
queria te abraçar.
Eu queria te dizer que tenho aler-
gia a gatos. E que você deve ser muito
mais corajosa do que eu. Com certe-
za você é.
Mas, ao invés disso, fico remoendo
o dia em que eu quase te beijei. Qua-
se. E esse quase foi a melhor coisa de
2020.
Tem planos para quando tudo isso
acabar e a vida voltar ao normal?
Mas preciso te dizer que eu tenho...
Tenho alegria a gatos. É isso mesmo
que você entendeu: alegria a gatos.

FORCE 11

GILBERTO AMENDOLA

l]


É que eu tenho


alergia a gatos


Original. O ‘Philosophical
Transactions of the Royal
Society’, do século 17
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