O Estado de São Paulo (2020-06-08)

(Antfer) #1

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H8 Especial SEGUNDA-FEIRA, 8 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Morris Kachani


Edith Eva Eger era uma bailari-
na de 16 anos quando o Exérci-
to invadiu seu vilarejo na Hun-
gria. Seus pais foram enviados
à câmara de gás, mas ela e a ir-
mã sobreviveram. Edith foi en-
contrada pelos soldados ameri-
canos em uma pilha de corpos
dados como mortos.
Já descrita como a “Anne
Frank que não morreu”, Edith,
hoje aos 92 anos, morando em
um vilarejo na Califórnia suges-
tivamente chamado de Paradi-
se, discorre sobre sua experiên-
cia em Auschwitz, e toda a traje-
tória de superação e auto-co-
nhecimento que a seguiu em vi-
da, no best seller A Bailarina de
Auschwitz.
Não à toa, a obra aparece no
topo da seleção de leituras suge-
ridas durante a pandemia por
ninguém menos que Bill Gates.
Este livro já foi lançado no
Brasil pela Sextante. E agora no
segundo semestre, a editora
prepara o lançamento de um se-
gundo livro de Edith, O Presen-
te, apresentando uma visão
mais conceitual sobre os conhe-
cimentos adquiridos pela auto-
ra, que é doutora em psicolo-
gia, e ainda atende a pacientes,
aplicando o que aprendeu no
campo de concentração em
suas terapias.
Bailarina desde criança – e
ela continua dançando, “por-
que a vida é sobre a dança” –, já
recebeu de Mengele a ordem
para dar piruetas ao som da val-
sa Danúbio Azul, para seu delei-
te. Ganhou um pedaço de pão
em troca... Nesta entrevista ela
também descreve como foi vol-
tar a Auschwitz, cinco décadas
depois, para um seminário do
qual participou, em uma cidade
vizinha.


lQue lições da sua experiência
na Segunda Guerra Mundial po-
dem nos inspirar nesse momento?
Eu posso te inspirar a enten-
der que não é o que está acon-
tecendo que importa. O que
importa realmente é a maneira
como você vê as coisas. Então,
eu gostaria de ser sua oftalmo-
logista e lhe dar uma perspecti-
va diferente. De que não exis-
tem problemas no mundo.
Não há problemas, há apenas
desafios. E não há falhas, há
apenas transições. Quando tu-
do é tirado de você... Vou lhe di-
zer que você ficando trancado
em você mesmo e aprende.
Mas, ao em vez de se concen-
trar no que não temos e recla-
mar sobre isso, basta dizer que
está na hora... Está na hora! Pos-
so ler outro livro que não tinha
tempo antes. Posso passar mais
tempo com meu filho e fazer al-
gumas perguntas mais profun-
das, como por exemplo: como
você pode se comprometer
com a melhoria da humanida-
de? É apenas o jeito como nós
vemos as coisas.
Também vou lhe dizer que
tenho muito orgulho de ter
uma herança judaica porque
meus ancestrais não desisti-
ram. É por isso que estou aqui,
e acredite, eles não tiveram vi-
da fácil. E no entanto, eles dis-
seram: “isso é temporário e po-
demos sobreviver”.
Então é assim que espero po-
der guiar as pessoas a se move-
rem para dentro de si mesmas,
porque essa é a única coisa
que você terá por toda a vida.
Todos os outros relacionamen-
tos terminarão. A dependência
gera depressão. Se você espe-
rar que alguém o faça feliz,
nunca será feliz. Seja apenas I-
N-T-E-I-R-A, uma pessoa intei-
ra, corpo, mente, espírito, tra-
balhando, amando, brincando.
Tenha equilíbrio em sua vi-
da. Então, quando você se le-
vanta de manhã, olha no espe-
lho, diga: Eu me amo, porque
amor próprio é autocuidado.
Não é narcisismo.


lQue lições você recomendaria
para as pessoas?
As lições que recomendo são
principalmente para prestar
atenção ao seu diálogo inter-
no, a maneira como você fala
consigo mesmo. Ser realista,


mas não idealista. Ok, existe
maldade no mundo. Sabe, to-
dos nós temos um Hitler den-
tro de nós e ao mesmo tempo
temos bondade e gentileza. E
em um campo de concentra-
ção, tudo o que tínhamos era
um ao outro. E tivemos que
nos comprometer a formar
uma família de presos. Se você
fosse apenas “eu, eu, eu”, você
não conseguiria sobreviver em
Auschwitz.
Acho que agora estamos to-
talmente divididos. E é muito
caótico. É um bom momento
para se reagrupar e, tomar
uma decisão. Então seja um
bom pai para você. Seja uma
boa mãe para você. Ame a si
mesmo todas as manhãs e to-
me uma decisão. Como você
vai se sentir naquela noite?
Ninguém pode afetar você
sem que você permita.

lComo você está lidando com a
pandemia?
Estou adorando porque sou in-
trovertida e me dá mais tempo
para ficar comigo mesma. E es-
sa é uma companhia muito
boa, acho que a melhor. Sou in-
trovertida, mas sei que pes-
soas extrovertidas têm mais di-
ficuldade. Gosto da ideia de
olhar para dentro e ver como
você descobre seu espírito, sua
alma, que estava com você
quando você nasceu. E vai es-
tar com você quando você mor-
rer. Foi o que minha irmã me
falou quando me disseram que
meus pais estavam queimando
em uma câmara de gás. Minha
irmã disse que o espírito nun-
ca morre. Foi assim que entrei
em Auschwitz em maio de


  1. O espírito nunca morre.
    E estou aqui para lhe dizer
    que fui capaz de, com a ajuda de
    Deus, transformar ódio em pie-
    dade. Eu tive pena dos guardas.


lAgora aqui no Brasil, nós so-
mos o epicentro global da pande-
mia, muitas pessoas estão mor-
rendo. Há negligência das autori-
dades e temos um problema po-
lítico muito sério. Como lidar
com isso?
Como você diz às pessoas?

Obrigado por sua opinião.
Nunca duvide da verdade de al-
guém. Eu sei que parece esqui-
zofrênico. Todo mundo tem di-
reito a liberdade de expressão,
mas isso não significa que vo-
cê esteja certo ou errado. Você
está certo para você. Aliás te-
mos que desistir da necessida-
de de estar certo, especialmen-
te no casamento.

lComo lidar com formas negati-
vas de influência social sobre o

indivíduo?
Possivelmente dizendo algo co-
mo, “eu gostaria de saber se tal-
vez eu pudesse compartilhar
com você a maneira como vejo
as coisas”. Mas nunca discutir
com essa pessoa. Nunca. Se
eles lhe disserem que o Holo-
causto nunca existiu, por
exemplo. Então você repete,
repete, repete, até que as pes-
soas acreditem. Nosso maior
inimigo é isso que vivencia-
mos agora – as pessoas ouvem
as outras pessoas e não ques-
tionam a veracidade. Você tem
que questionar a autoridade, a
veracidade. E acho que é uma
oportunidade para desenvol-
vermos algum tipo de diálogo
em que eu possa ser eu e você
possa ser você.
Alguém mandou uma foto
para mim muitos, muitos anos
atrás, que dizia o que minha
mãe me ensinou: “Não sabe-
mos para onde estamos indo.
Nós não sabemos o que vai
acontecer. Basta lembrar, nin-
guém pode tirar de você o que
você coloca em sua própria
mente”. E foi exatamente as-
sim que aconteceu.
Tudo que vinha de fora não
era nada. A prisão está em nos-
sa própria mente. Isso é ciên-
cia. O jeito que você acorda de
manhã. A maneira como você
vai ao banheiro, a maneira que
pensa, altera toda sua biologia.

lComo lidar com o medo?
Como você gerencia o me-
do? É preciso antes de tudo,
ser realista. E não idealista.
Porque se você é um idealista
e não encontra exatamente o
que está procurando, ficará

muito cínico, sarcástico. Eu
gosto de humor filosófico.
Também peço às pessoas que
se livrem do “sim, mas”. Me dê
um “mas” e eu te dou um “e”,
como “sim, e, ...”. Sabe?
Além disso, você está evolu-
indo, e não rebobinando. Não
é para fazer a mesma coisa re-
petidamente. Essa é a defini-
ção de sanidade. Eu proponho
uma perspectiva diferente. Eu
estou falando com você como
uma profissional muito sofisti-
cada, e também uma sobrevi-
vente. É preciso aferir também
a importância do QI e do EQ
(inteligência emocional) nesse
momento. Isso é muito impor-
tante.
Muitas pessoas vão de escola
em escola mas não aprendem
sobre inteligência emocional. E
se você é casado com alguém
que talvez não saiba como ir a
uma mercearia e pegar um pa-
cote de macarrão do qual nun-
ca ouviu falar, ou qualquer ou-
tra coisa, uma lata de feijão ou
o que quer que seja, de alguma
maneira, é importante desco-
brir as coisas. E é por isso que
estou dizendo que não há pro-
blemas; há desafios.
Falando em casamento, eu
gosto do modelo no qual o ca-
sal trabalha junto como uma
equipe. Não existe trabalho
dos homens, tarefas das mulhe-
res. Não tem isso. Os dois la-
vam o carro, os dois vão para a
sala de parto, e ele tira a cami-
sa e abraça a sua garota. Estou
muito impressionada com o ca-
samento jovem e moderno. Vo-
cê sabe, é a moda mundial.
Mas há pessoas que acredi-
tam que você pode fazer qual-
quer coisa com uma criança
porque ela é sua posse. Eu co-
nheci um homem de 55 anos
que me disse que quando ti-
nha nove, o cachorro dele mor-
reu. E o pai dele chegou e dis-
se que homem não chora. Ele
pegou o filho, foi ao pet shop e
comprou outro filhote. Esse
homem me disse: com 55 anos
de idade, ainda lembro dessas
lágrimas desde os nove anos.
Portanto, não lamentamos o
que aconteceu, mas o que não
aconteceu.

lE como administrar nossa raiva?
Oh, é o oposto da depressão; é
expressão. Gritando. Vá para o
oceano, de carro. Você grita,
chora e depois ri alto o sufi-
ciente para se sentir melhor.

lSabe, ontem eu estava pensan-
do... Eu estava lendo novamente
seu livro, me preparando para a
entrevista. E percebi que não há
muita conversa sobre deuses ou
sobre religião, sobre fé.
De alguma forma ter fé é dife-
rente de acreditar. Quando
as pessoas dizem: “Eu acredi-
to. Acredito. Acredito. Acre-
dito”. Eu não presto muita
atenção nisso. Prefiro me
perguntar que tipo de vida
você leva. Me mostre, me
mostre. Mostre-me, porque
eu não me importo com ne-
nhum pensamento positivo,
a menos que você decida e o
coloque em ação. Espero que
você veja como é possível co-
zinhar uma refeição e levá-la
aos sem-teto. Sabe, acho que
amor não é o que você sente,
é o que você faz.

lVocê poderia narrar seus episó-
dios com Joseph Mengele?
Eu tive um sonho de ir à Améri-
ca do Sul e conhecer o Dr.
Mengele. Nesse sonho eu se-
ria uma jornalista americana,
e depois lhe diria que “eu ti-
nha 16 anos e você quase me
enviou para a câmara de gás.
Mas você me deu um pedaço
de pão”. Bem, nada disso acon-
teceu. Eu entendo que ele
morreu no Chile porque mui-
tos o procuraram e ele correu
para lá. Quando o conheci,
não sabia que ele era o Dr.
Mengele. Eu o conheci quan-
do estava me aproximando de-
le com minha mãe de um lado
e minha irmã do outro. E ele
perguntou: essa é sua mãe ou
sua irmã? E nunca me perdoei
por ter dito que era a minha
mãe. Então eu segui minha
mãe. E ele me agarrou. Eu nun-
ca esqueço aqueles olhos... E
disse, sua mãe vai tomar um
banho. E você verá ela depois.
E me jogou do outro lado.

Sobrevivente do Holocausto, com pais enviados à câmara


de gás, Edith Eger reflete o mundo em seus 92 anos de vida


A BAILARINA


DE AUSCHWITZ


Entrevista*


Edith Eva Egher, bailarina e escritora

JORDAN ENGLE

ARQUIVO PESSOAL

Leve. Ela diz que é preciso desistir de sempre estar certo

Em movimento. Ela diz que continua praticando seu balé porque aprendeu que, no final, “a vida é sobre a dança”
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