COVID- 19
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Médicos que atuam em Manaus,primeiracapital asofreresgotamento do sistema
de saúde, relatam rotina de morte, frustraçãoea prendizado em CTIs do Amazonas
Ocolapso
MARIAIRENILDAPEREIRA
“Agenteéacostumadocomum
certonúmerodeóbitos,normal de
umaUTI,enãocomessaloucuraque
virouistoaqui.Émuitagente morren-
dotododia”,desabafaomédicointen-
sivistaAnfremonMonteiroNeto.“A
gente viaumanecessidade,umavon-
tadedesalvar, decurar,evia afrus-
traçãodoóbito,damorteemsi”,acres-
centa ofisioterapeutaintensivista
JoãoPauloRibeiro.Elesestãoentreos
profissionaisdesaúdeháquasetrês
mesesmergulhadosnocaosdosis-
temadeatendimento emManaus–o
estadoregistrouatéontem49.
casosconfirmadosdadoençae2.
pessoasmorreram.Étambém,dis-
parado,oquetemamaiortaxade
mortalidadepor 100 milhabitantes:
51,6,contra15,5nopaís(dadosde4/6).
Manaus foi aprimeira capital
brasileiraaenfrentarocolapsodosis-
temadesaúdeemmeioàpandemiada
COVID-19.Ummêsdepoisdeoestado
registraroprimeirocaso,em13de
março,osprontos-socorroseunidades
deterapiaintensiva(UTI)já estavam
lotados.Nãohaviamais leitos,faltavam
insumos,equipamentosdetrabalhoe
profissionaisespecializados.
OintensivistaAnfremontrabalha
emdoishospitaisdeManaus,umpú-
blicoeumprivado.Sentiunapeleo
poder de contágio doque estava
enfrentando:foi,elemesmo,umdos
primeirosinfectadospelovírus.“Para
mimfoiespecialmentecomplicado,
porqueadoecimuitocedo.Entreide
licença.GraçasaDeusnãofoinada
grave,mas,quandovoltei,ocaosjá
estava instalado”,recordaoespecialista
emcardiologiaemedicinaintensiva.
“Aspessoasnão
chegarematerum
atendimento
digno.Morriam
ali,namaca,
esperando”
■Anfremon MonteiroNeto,
médicointensivista
“Tudooqueagente
haviaaprendido,
estudado,parecia
quenãodava,não
valiaparaadoença”
■JoãoPaulo Ribeiro,
terapeutaintensivista
Paraprofissionaisdasaúdecomo
JoãoPaulo,nalinhadefrente,ospri-
meiroscontatoscomadoençaforam
desafiadores.“Oinício foimuitodifícil.
Tudooqueagente haviaaprendido,
estudado,parecia quenãodava,não
valiaparaadoença”,conta.Aimprevi-
sibilidadedaCOVID-19surpreendeu
muitosoutros.“Sãodoentesmuito
complexos.Àsvezes,vocêmelhorao
pulmão,equandovocê vê,eles pioram
dapartecardíaca.Quandovocê corrige
apartecardíaca,elespioramdorim.
Quandovocêvê,estátudoruim,não
conseguemais recuperaras pessoas”,
explicaAnfremon.Contudo,aexpe-
riência demesesintensosdeluta trou-
xeaprendizado.
“Nomomento docolapsofoimui-
todramático,porqueagentetinha
queimprovisarmuito,masfomos
nosadaptando.Eagente temconse-
guidobonsresultadospelopouco
tempoquetivemosparanospreparar
paraisso,levandoemconta onosso
desconhecimento,emtermosmun-
diais,dadoença”,avaliaAnfremon.O
médicodizqueamelhoranoprog-
nósticodadoençaveio pormeiode
tentativas, erroseacertos.“Sóque,
nessemeiotempo,muitagente se foi,
semqueagente pudesseoferecero
melhoratendimento possível, infeliz-
mente.”lamenta.
ParaJoãoPaulo,apalavra-chaveda
evoluçãonalinhadetratamento con-
traonovocoronavírusestánotraba-
lho,noesforçointegradoentreequi-
pes.“É oenfermeiro,éomédico,éofi-
sioterapeuta,éotécnicoemenferma-
gem,éopsicólogo,éoassistente so-
cial, éonutricionista,éofonoaudiólo-
go,éoserviçogeral... Umaequipetoda
buscandoosucessocontraessapan-
demia”,afirma.
“OsistemadesaúdedoAmazonasé
peculiar,porqueterapiaintensiva,por
exemplo,sóexistenacapital”
■Roberta Lins Gonçalves,
do Comitêde EnfrentamentoàCOVID-
da UniversidadeFederal do Amazonas
Separaquemtrabalhadentrodos
hospitaisdeManausasensaçãoédere-
lativocontrole, comaquedanonúme-
rodecasosnacapital,osboletinsdiá-
rios daCOVID-19demonstramqueasi-
tuaçãoseguecrítica,equeaindanãoé
momento derelaxar.Depoisdeatingir
opiconacapital,adoençacomeçoua
se espalhar pelointeriordoestado.
ParaRobertaLinsGonçalves, douto-
ra emciênciasbiológicas,professora,
pesquisadoraeintegrante doComitêde
Enfrentamento àCOVID-19daUniver-
sidadeFederaldoAmazonas,essanova
configuraçãodealastramento dovírus
éfator depreocupação,jáqueos muni-
cípiosdointerioramazonensenãodis-
põemdeestruturanemprofissionais
qualificados.“Osistemadesaúdedo
Amazonas épeculiar,porqueterapiain-
tensiva,por exemplo,sóexistenacapi-
tal.Então,issogeraumademandamui-
to grande”,comenta apesquisadora.“A
gente imaginaqueamortalidadepode
ficarmaior,porqueessesindivíduosdo
interiorvãotermenosacesso,principal-
mente àatençãoterceirizada,queéa
ventilaçãomecânica,leitosdeUTIepro-
fissionaisdequalidade”,avalia.
Alémdasquestõesgeográficas,ela
destacacomofatordedesvantagemno
combate àpandemiaos problemas crô-
nicosdasaúdenoestado.“Seagente
pensarqueamédiadeleitosdeUTIno
país,quejá eramuitobaixa,eraemtor-
node 12 paracada 100 milhabitantes,
noAmazonas,écercadeseisparacada
100 mil.Eoestadoaindasofrecoma
falta deprofissionais qualificados,em
todasas especialidade”,comenta.
“Émuitotriste.Euperdiparente,
perdi umtio.Perdi amigosdeturma,
perdi colegas detrabalho.Adoençaé
real,elaexisteeémuitoruim”,desaba-
fa ointensivistaAnfremon.“A realida-
deéessaqueestásendopassadanamí-
dia.Éessaqueestápassandonatelevi-
são,nãotemoutrarealidade”,conclui o
fisioterapeuta JoãoPaulo.
TantoqueoBrasilchegouàcondição
desegundopaíscommais casosdeCO-
VID-19nomundo,tendose tornado,na
quinta-feira,oterceiroemnúmerode
mortes.Aúnicaformadeconteroavan-
ço dovíruscontinuasendooisolamen-
to.Paraquemvive arotinadetrabalhar
nalinhadefrente docombate àdoença,
comoosmédicosdoAmazonas,“ficar
emcasaӎmaisqueumarecomenda-
ção–éumpedidodesocorro.
vistopor dentro
Devoltaaotrabalhonasegunda
quinzenadeabril, Anfremonacompa-
nhou,nalinhadefrente,omomento
críticoemduas esferasdeatendimen-
to.“Nosetorprivado,agente tinhaseis
leitos,essenúmerosubiupara17,mas
houve ummomento emquetinhacin-
co,seispacientesespalhadospelohos-
pital.ErampacientesdeUTI,masnão
havialeito”,conta.NoHospitalUniver-
sitárioGetúlioVa rgas,ondecoordenaa
UTI, omédicoconta queocaossónão
se instalouporqueaentradadedoen-
tesécontrolada.“Nosprontos-socorros,
quelidamdiretamente comacomuni-
dade,osrelatosquetivemosfoide
mortandade.Aspessoasnãochegarem
ater umatendimento digno.Morriam
ali,namaca,esperandoatendimento.
Porfalta derecursomesmo”,comenta.
Quarenta edoisdiasapósoregistro
daprimeiramorte,em5demaio,oes-
tadoatingiaumrecorde: 102 óbitosem
24 horas.Trabalhandoemtrêshospi-
taisdesdeoinício dapandemia,ofisio-
terapeuta intensivista João Paulo
acompanhouaescaladadadoençade
dentrodofuracão.Ele convivediaria-
mentecomocansaço,saudadedafa-
míliaevontadedesalvarvidas.“Confes-
so quenãoseiondeagente buscatan-
ta força.Àsvezes,saiodecasanasegun-
da-feiraesóvejomeusfilhoseminha
esposanaquinta. Éumarotinaexausti-
va,mas aomesmotempoprazerosa”,
dizoprofissional,mineirodePassos
(Sul deMinas),quetrabalhahá10anos
nacapitalamazonense.
Cemitériona capitaldo Amazonas: taxademortalidade
por 100 mil habitantes associadaao novo coronavírus
no estadoédisparada amais alta do país
MICHAELDANTAS/AFP
ARQUIVOPESSOAL/DIVULGAÇÃO
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