O Estado de São Paulo (2020-06-09)

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B4 Economia TERÇA-FEIRA, 9 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


O


isolamento imposto pela


pandemia da covid-19 tem


motivado várias reflexões.


Numa dimensão individual, a neces-


sidade de distanciamento físico nos


obrigou a reorganizar os métodos


de trabalho, trouxe as famílias de


volta ao convívio e nos provocou no


sentido de rever prioridades. Nesse


processo, muitos resgataram uma


leitura (ou quem sabe várias) rela-


cionada a alguma grande peste que


assolou o mundo – na realidade ou


na ficção. Relemos Gabriel Garcia


Marques, Albert Camus, José Sara-


mago e tantos outros.


No cinema, revimos O Sétimo Selo


ou, para os que são mais novos, Con-


tágio ou algum outro filme que nos


remeta a essa situação inesperada e


surreal que vivenciamos hoje. Mas


nem mesmo as obras mais perturba-


doras conseguem refletir a nossa


atual situação, que teima diariamen-


te em ir além de várias dessas trágicas


descrições ficcionais.


Nossas mazelas são maiores e mais


profundas e se expõem agora como


nunca. A primeira delas se refere à


nossa inaceitável condição social, on-


de a desigualdade de renda se escanca-


ra na assimetria dos impactos econô-


mico, social e de saúde a depender da


classe de renda. Isso gerou, felizmen-


te, uma mobilização filantrópica sem


precedentes da sociedade civil e ques-


tionamentos sobre a eficácia da nos-


sa rede de proteção social. Espere-


mos que também se reflita em foco


naquele que é o nosso principal pro-


blema estrutural e ganhe prioridade


na elaboração de políticas públicas –


e não só as de complementação de


renda.


Pelo lado dos orçamentos públicos,


quedas inéditas de arrecadação e mu-


danças nas prioridades – com os gas-


tos de saúde assumindo protagonismo



  • impõem um desafio adicional onde o


desequilíbrio já era grande. Receitas e


despesas terão de ser revistas à luz de


uma nova realidade econômica, mas


também com base nessas novas priori-


dades e no aprofundamento da crise.


Não deixa de ser uma oportunidade pa-


ra corrigir problemas estruturais. Mas


só para os gestores que se dispuserem


a abraçá-la.


Mas é no atendimento de saúde que


ainda estará, por algum tempo, o prin-


cipal foco. Afinal, a epidemia no Brasil


já deixa um rastro trágico de cerca de


700 mil casos de contaminação e mais


de 36 mil óbitos e ainda continua a se


expandir. Embora tenha se espalhado


de forma heterogênea pelo território


brasileiro, é sabido que o avanço ainda


está acelerado em algumas regiões e a


atual subnotificação deve multiplicar


esses números por muito. Ou seja, a


realidade é muito pior. Por isso, e por


alguns outros motivos, o mundo nos


observa com um misto de pena e te-


mor. Deveriam reconhecer o controle


conquistado e as vidas poupadas até


aqui por Estados como São Paulo e


distinguir a falta de coordenação do


governo federal, do esforço e planeja-


mento de vários governadores e prefei-


tos.


Mas o Brasil é um só aos olhos do


mundo. E quem fala pelo País é o presi-


dente da República, que ainda hoje


não reconhece a gravidade da pande-


mia, se recusa a seguir as orientações


de higiene mundialmente consagra-


das, insiste na cura milagrosa de um


medicamento sem comprovação cien-


tífica de eficácia e manda, diariamen-


te, sinais contrários às recomenda-


ções de distanciamento social. Ou se-


ja, ao contrário de outros líderes que


em algum momento reviram seu ceti-


cismo, movidos que foram pelas evi-


dências, o presidente Jair Bolsonaro


continua negando os fatos. E agora


ameaça mudá-los.


A história tem inúmeros casos em


que mudar os fatos foi uma saída vergo-


nhosa para quem não quer reconhecê-


los para evitar o constrangimento do


erro. Aqui no Brasil estamos a viver es-


sa triste repetição. Desde a semana pas-


sada, por uma determinação do presi-


dente da República, os dados referen-


tes à covid-19 tiveram sua divulgação


atrasada para evitar que fossem notí-


cia. Agora, sob o pretexto de que há


fraudes ou manipulação dos dados, as


informações estão sendo revistas. Ti-


vesse o governo federal exercido o


seu papel de organizar o processo


de coleta, dar transparência às infor-


mações, garantir uma política am-


pla de testagem e coordenado ações


nacionais de combate à pandemia,


teríamos mais clareza em relação


aos dados e menor incerteza sobre o


número correto de contaminados e


mortos. Mas, bem sabem os que li-


dam com as ações de resposta, se há


problemas com os dados eles estão


no campo da subnotificação – e não


o contrário.


De toda a literatura que ressurge


agora nos tempos de isolamento, a


que mais nos reflete talvez seja En-


saio sobre a Cegueira e seu mar de


pessoas vulneráveis, contaminadas


por uma cegueira branca. Numa tris-


te alusão à epidemia, à nossa condi-


ção social e à cegueira a que querem


nos condenar, peço licença aqui pa-


ra reproduzir Saramago e finalizar


afirmando que “Penso que não cega-


mos, penso que estamos cegos. Ce-


gos que veem. Cegos que, vendo,


não veem”.


]


ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA


OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE


EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO


DA COLUNISTA


E-MAIL: [email protected]
ANA CARLA ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

ABRÃO


A história tem inúmeros


casos em que mudar os fatos


foi uma saída vergonhosa


‘Ensaio sobre a cegueira’


Eduardo Rodrigues / BRASÍLIA


A volta ao trabalho de uma par-


cela maior das atividades econô-


micas só poderá ser feita com


planejamento para a segurança


dos trabalhadores, alerta o pro-


curador-geral do Ministério Pú-


blico do Trabalho (MPT), Alber-


to Bastos Balazeiro.


Assim como as empresas que


mantiveram o funcionamento


na pandemia precisaram traçar


planos de contingência, o órgão


cobrará dos empregadores pla-


nos de retorno na retomada do


trabalho. “Tenho uma convic-


ção. Ambiente de trabalho não


se lida com improviso. Indepen-


dentemente das determina-


ções das autoridades sanitárias


de cada Estado, as empresas de-


vem apresentar planejamento


de riscos. Estamos fazendo le-


vantamento por setor sobre ex-


periências internacionais. Va-


mos fazer notas que orientem


sobre a continuidade da utiliza-


ção de equipamentos de prote-


ção”, afirmou Balazeiro ao Esta-


dão/Broadcast.


O órgão de fiscalização dividi-


rá as diretrizes para o retorno


ao trabalho em três conjuntos.


O primeiro trará orientações ge-


rais que devem servir para a


maioria das atividades, seguin-


do metodologias que foram usa-


das em outros países que já co-


meçam a tentar voltar à norma-


lidade. O segundo conjunto de


diretrizes estará relacionado


com o estágio da pandemia em


cada região do País. Por fim, ha-


verá determinações específicas


para alguns setores cujo traba-


lho tem características que exi-


gem cuidados maiores.


“Para quase todas as peque-


nas e médias empresas será sufi-


ciente um plano que abarque as


diretrizes gerais. As atividades


de comércio e serviços em geral


não têm tanta especificidade.


Mas outros setores cuja ativida-


de acarreta concentração de tra-


balhadores ou de público preci-


sarão seguir diretrizes específi-


cas”, detalha Balazeiro.


Da mesma forma, as exigên-


cias do MPT são distintas para


empresas localizadas em cida-


des com maior ou menor quanti-


dade de casos e transmissão co-


munitária de covid-19. “Não se


pode falar em adoecimento ge-


neralizado e retorno generaliza-


do. O retorno também tem de


ser gradual e olhando realida-


des locais.”


Balazeiro promete ainda


que a fiscalização do órgão não


se limitará ao retorno inicial


das atividades econômicas. En-


quanto o País não estiver livre


da pandemia – seja pela cria-


ção e distribuição de uma vaci-


na, seja pela chamada imunida-


de de rebanho (contaminação


gradual, mas ampla da popula-


ção)–, o MPT buscará garantir


a segurança dos trabalhado-


res. “Se um empregado ficar


doente, o empregador terá de


afastar quem também teve con-


tato com esse trabalhador.”


Desde o início da atual crise,


o MPT tem agido ativamente na


negociação de acordos em di-


versas categorias, bem como


tem fiscalizado o cumprimento


de medidas de redução de jorna-


da e salário ou suspensão de


contrato, que já atingiram qua-


se 10 milhões de trabalhadores.


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Douglas Gavras


O avanço da covid-19 no Bra-


sil já provocou um efeito de-


vastador no mercado de tra-


balho. Os dados do IBGE


apontam que o desemprego


saltou de 11,2% no trimestre


até janeiro para 12,6% em


abril. Mas, segundo projeção


do Itaú Unibanco, o número


é, na verdade, bem pior.


As medidas de distanciamen-


to social impostas para se ten-


tar limitar o avanço da doença


também têm reduzido o nível


de procura por trabalho, fazen-


do com que o desemprego pare-


ça menor do que é.


Já com ajustes sazonais, a ta-


xa de desocupação, pela Pesqui-


sa Nacional por Amostra de Do-


micílios (Pnad) Contínua, do


IBGE, era de 12,1% no trimestre


até abril. Segundo análise da


equipe de macroeconomia do


Itaú Unibanco, na verdade, o de-


semprego estaria em 16%, caso


o volume de pessoas procuran-


do trabalho tivesse se mantido


no mesmo nível de antes do iní-


cio da quarentena.


“Os dados mostram a destrui-


ção de emprego informal e for-


mal, mas isso não significa ele-


vação da taxa de desemprego”,


lembra Luka Barbosa, econo-


mista do Itaú Unibanco. “Para


que alguém seja considerado de-


sempregado, precisa estar pro-


curando colocação ou estar dis-


ponível para trabalhar. E o isola-


mento social prejudica dimen-


sionar esse número.”


Com o isolamento, a taxa de


participação caiu três pontos,


de um patamar de 62% em feve-


reiro para 59% em abril. Isso


quer dizer que menos pessoas


puderam procurar trabalho.


Além disso, o início do paga-


mento do auxílio emergencial


de R$ 600, para trabalhadores


desempregados e informais de


baixa renda, reduziu a procura.


Segundo Barbosa, a pande-


mia acaba mascarando os núme-


ros, já que muitos brasileiros


que perderam o emprego e esta-


riam procurando uma nova va-


ga desaparecem da conta. “Ho-


je, trabalhamos com um cená-


rio em que o desemprego sobe e


fecha o ano na casa dos 17%. À


medida que a economia reabrir,


em ritmos diferentes, a depen-


der da situação em cada cidade,


uma parte das pessoas volta a


procurar emprego.”


O mecânico Valmir da Silva,


de 51 anos, é uma dessas pes-


soas que, apesar de terem perdi-


do o emprego, estão fora do cál-


culo. “Não dá para procurar ou-


tro emprego agora. É sair de ca-


sa, correr o risco de ficar doente


e voltar sem nada”, diz. A repor-


tagem conversou com o mecâni-


co na fila de uma agência da Cai-


xa, onde estava havia 12 horas à


espera de informações sobre o


auxílio emergencial.


Baque. Um levantamento com


mais de 2,5 mil empresas, de pes-


quisadores do Instituto Brasilei-


ro de Economia da Fundação


Getúlio Vargas (Ibre/FGV),


aponta que os efeitos da pande-


mia foram mais ferozes no se-


tor de serviços e na construção


civil. Quase metade das empre-


sas desses segmentos ouvidas


precisou demitir por conta dos


efeitos da covid-19. “Opções


que foram dadas pelo governo,


como a suspensão de contratos


e a redução de salários em até


70%, não são suficientes”, ava-


lia Viviane Seda, coordenadora


das Sondagens do Ibre.


Ela ressalta que a perda de


renda dos trabalhadores acaba


tendo um efeito maior sobre o


corte de vagas em setores não


essenciais. “Nas atividades imo-


biliárias, no turismo e lazer, a


recuperação será mais lenta.”


Os dados do primeiro trimes-


tre do Produto Interno Bruto


(PIB), divulgados recentemen-


te pelo IBGE, ajudam a traçar


um cenário difícil para os próxi-


mos meses: por conta dos efei-


tos da pandemia, o consumo


das famílias caiu mais de 2% e


puxou o resultado do PIB do


País para baixo (-1,5%).


Nesse cenário, a intenção de


contratação para o terceiro tri-


mestre caiu 29 pontos porcen-


tuais em comparação com o tri-


mestre anterior, segundo pes-


quisa do ManpowerGroup. As-


sim, 21% das empresas ouvidas


afirmam que irão reduzir o qua-


dro de funcionários.


“O Brasil vinha demonstran-


do sinais de uma tímida recupe-


ração em termos de empregabi-


lidade, que acabou sendo frea-


da pela pandemia. Temos perce-


bido, no entanto, forte deman-


da por contratações entre os se-


tores essenciais, como alimen-


tação, farmacêutico, logística e


saúde” diz Nilson Pereira, do


ManpowerGroup Brasil.


Desocupação pode ter fechado trimestre até abril em 16%, mas queda na procura por oportunidades de trabalho faz taxa parecer menor


lCautela


China desbanca Brasil em comércio com a Argentina em abril. Pág. B6}


FELIPE RAU/ESTADÃO–30/4/

lTermômetro


“O retorno (ao trabalho)


tem de ser gradual e


olhando realidades locais.”


Alberto Bastos Balazeiro


PROCURADOR-GERAL DO MINISTÉRIO


PUBLICO DO TRABALHO


FELIPE RAU/ESTADÃO–29/5/

Para Ministério Público


do Trabalho, além das


exigências sanitárias,


empresas devem ter


planejamento de risco


Volta ao trabalho terá de seguir


um plano de segurança, diz MPT


Retomada gradual. Fiscalização do MPT seguirá diretrizes


Covid-19 mascara dados de desemprego


“Os dados mais recentes já


conseguem mostrar a


destruição de emprego


informal e formal, mas o


isolamento social prejudica


dimensionar esse número,


porque as pessoas


simplesmente saem da


força de trabalho.”


Luka Barbosa


ECONOMISTA DO ITAÚ UNIBANCO


Grupo de risco. ‘É sair de casa para procurar trabalho, podendo adoecer e ainda voltar sem nada’, diz o mecânico Valmir

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